Preconceito ainda é barreira em relacionamentos de pessoas vivendo com HIV
Avanço na medicina permite relacionamentos entre casais sorodiferentes, em que uma pessoa vive com HIV e a outra não sem que haja a transmissão do vírus
Há 12 anos, o administrador de empresas Lucian Ambros, 34, descobriu o diagnóstico de HIV, após uma relação casual.
À época, os conhecimentos que tinha sobre o vírus e a infecção eram limitados e ainda associados ao senso comum de promiscuidade ou do uso de drogas. Ele conta que a falta de acompanhamento psicológico adequado e o medo da exposição da própria sorologia o afastaram do tratamento.
O fato de ser visto buscando ou tomando os medicamentos antirretrovirais que controlam a infecção gerava ansiedade.
“Via as pessoas falando que tinha muitos efeitos colaterais e eu tinha medo disso e também de que alguém visse que eu buscava medicação ou tomando os medicamentos. Isso tudo acabou impactando meu tratamento, fiquei quatro a cinco anos sem fazer o tratamento e acabei tendo uma tuberculose depois que iniciei o tratamento”, relatou à CNN.
Lucian conta que iniciou o tratamento em 2014 e que há 8 anos vive com o vírus e com a carga viral indetectável. Carga viral é a quantidade de vírus presente no sangue de uma pessoa – ou seja, quanto mais cópias o vírus produz durante a infecção, maior é a carga viral no organismo.
O tratamento do HIV é realizado a partir do uso de medicamentos antirretrovirais, que impedem justamente o processo de replicação viral no organismo humano. Ao bloquear a produção de novas cópias do vírus, os medicamentos agem na redução da carga viral no sangue – etapa fundamental para ampliar a qualidade de vida.
Indetectável = Intransmissível (I = I)
Pessoas vivendo com HIV em tratamento e com carga viral indetectável há pelo menos seis meses não transmitem o vírus por via sexual. O termo Indetectável = Intransmissível (I = I) é adotado por cientistas e instituições de referência sobre o HIV em abrangência mundial.
Apesar disso, pessoas que vivem com HIV relatam dificuldades para se relacionar de maneira afetiva. O preconceito e a desinformação contribuem para tornar mais difíceis as oportunidades de relacionamentos, como conta Lucian.
“Durante todos esses anos, foi muito difícil me relacionar com pessoas após o diagnóstico de HIV. Até tive pequenos relacionamentos, mas alguns viraram abusivos, outros as pessoas saíram correndo quando eu contava da minha sorologia. Então isso acabou me fechando um pouco com relação a me relacionar com outras pessoas”, diz.
Doze anos após o diagnóstico, Lucian encontrou uma pessoa com quem compartilhar as alegrias de uma vida a dois. Há seis meses, ele namora o farmacêutico Pedro Cartezani, 38.
À CNN, Cartezani conta que tem histórico familiar com HIV, um tio, já falecido. “Eu não vivo com HIV, mas foi sempre algo que me acompanhou, incluindo medos, receios e insegurança e me envolver com alguém que pudesse ter o vírus”, diz.
Ele relata que o assunto da sorologia foi abordada pelo parceiro no primeiro encontro e que, percebendo as lacunas de conhecimento, Lucian lhe ofereceu informações e para leitura um livro de própria autoria “Guia quase completo como viver com HIV”.
“Através de conversas e leitura de seu livro, pude perceber que é possível ter um relacionamento, o casal sendo sorodiferente”, conta.
Meu conselho a todas as pessoas, independente do gênero e orientação sexual, é que a presença de algum detalhe na vida do outro é apenas detalhe quando tem-se conhecimento, companheirismo e amor
Pedro Cartezani
Importância do diálogo
Os avanços no tratamento do HIV são significativos e permitem ampliar a qualidade de vida. No entanto, a perspectiva social sobre o vírus não acompanha a evolução científica, na avaliação da médica infectologista Mirian Dal Ben, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
“A medicação tem muito pouco efeito colateral, consideramos hoje que o HIV é uma doença crônica se o paciente adere ao tratamento. Se por um lado, hoje temos essa opção de tratamento que a pessoa tem uma qualidade de vida e uma sobrevida normal, por outro lado ainda mantemos muito estigma”, afirma.
Diagnosticado com HIV em 2017, o psicólogo Guilherme Lima, 29, do Rio de Janeiro, afirma que falar sobre o assunto com outras pessoas trouxe maior segurança e qualidade de vida.
“Na época em que eu descobri o HIV, eu sabia o básico do básico”, conta à CNN. “A preocupação que eu tinha era justamente de saber como era a dinâmica e a vivência, inclusive através da experiência de outras pessoas. Recorri à internet para isso, YouTube, vídeos e isso inclusive me ajudou bastante”.
Ele conta que recebeu apoio de profissionais de saúde da clínica da família onde recebeu o diagnóstico e que iniciou o tratamento de imediato. “A vida afetiva de quem vive com HIV, de fato, é um imenso desafio. Viver com o vírus no espectro clínico é muito tranquilo”, diz.
A revelação da sorologia nesse tipo de contexto é o aspecto mais delicado e complexo por que surgem vários impasses: contar ou não, como contar, quando contar, como vai ser a reação da outra pessoa, como eu mesmo posso reagir diante dessa reação, então são muitas variáveis que torna isso naturalmente difícil
Guilherme Lima
Guilherme afirma que ao longo do tempo usou diferentes métodos em relacionamentos.
“Já aconteceu de eu contar no início, de eu esperar um pouco, de não contar. Pra mim, foi um aspecto desgastante, por que contar acaba sendo um investimento, pelo menos pra mim era nesse sentido. Eu contava quando eu via uma perspectiva de envolvimento maior”, relata.
Hoje, o psicólogo discute abertamente a vivência com HIV no perfil do Instagram e pelo TikTok.
“Um dos fatores que me fizeram abrir minha sorologia em rede social, publicamente, foi também isso. É um contar para não precisar contar. Eu já passei a deixar essa informação à vista de todo mundo. Então, as pessoas que se aproximavam de mim já vinham com essa informação. Isso foi uma das melhores coisas que eu fiz”, diz.
Guilherme vive um relacionamento sorodiferente e conta que o HIV tornou-se um assunto comum, de conversas cotidianas.
“Por eu viver indetectável, a gente acordou em diálogo se envolver sexualmente sem preservativo, já que não existe risco nenhum de transmissibilidade, então foi tudo conversado e feito com consciência”, afirma.
“O diálogo é fundamental, entendo que muitos casais vivem impasses também em torno disso. A conversa é uma chave importante para que as angústias e os medos sejam postos na mesa e possam ser resolvidos e administrados da melhor maneira possível”, conclui.