‘Preço muito alto’: A exaustão de profissionais de saúde após um ano de pandemia
Insônia, problemas alimentares, saudade da família e medo da contaminação são alguns dos efeitos da tragédia na saúde mental de médicos e enfermeiros
O médico Luís Felipe Smidt é cardiologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Ele é hoje um dos responsáveis pelas internações clínicas de pacientes de Covid-19 e, nos primeiros meses da pandemia, foi plantonista no atendimento emergencial. Chega bem cedinho ao hospital para revisar a condição dos internados e trabalha duro noite adentro. Todos os dias.
Um ano depois do início oficial da pandemia, profissionais de saúde exaustos estão sendo convocados ao sobre-humano, numa rotina similar a de Smidt. Em vez de esperança, são confrontados com o agravamento da tragédia. Com o colapso iminente na saúde.
O Rio Grande do Sul tem mais de 98% de taxa de ocupação de leitos de UTI, o que levou o Supremo Tribunal Federal a determinar que o governo federal reative leitos no Estado. Alguns hospitais aboliram o revezamento de plantões entre os médicos — o local onde Smidt trabalha é um exemplo dessa situação. “A grande maioria da equipe abdicou de férias para contarmos com força total”, diz Smidt.
Foi instalado um container refrigerado nas dependências do hospital para acomodar corpos de pacientes vitimados pela Covid-19, caso necessário. O necrotério da instituição tem estrutura para, no máximo, três corpos por vez.
Testemunhar essa evolução da pandemia, com a sobrecarga de trabalho, o medo da contaminação e o distanciamento da família tem uma consequência nefasta na saúde mental desses médicos e enfermeiros. Um estudo da Universidade Federal da Paraíba entrevistou 710 profissionais de saúde de 21 estados brasileiros e do Distrito Federal sobre sono, dieta e outros hábitos.
Dois terços dos entrevistados tinham queixas relacionadas ao sono. Metade deles parou de praticar exercícios físicos e 78,5% reportaram alguma mudança alimentar, com pouco mais de 30% afirmando comer compulsivamente. Quase 30% aumentaram o consumo de bebidas alcóolicas.
Outra pesquisa, feita pela Associação Médica Brasileira (AMB) e publicada em fevereiro, mostrou que 92% dos profissionais viam colegas com algum sintoma de problema psíquico. A maior incidência foi de ansiedade (64%) e estresse (62%), mas sobrecarga, exaustão, mudanças bruscas de humor e dificuldade de concentração também foram relatados.
Exaustão é a palavra a que Smidt recorre para descrever sua condição doze meses depois do início da pandemia. Ele está pessimista. “Nosso combinado é de pensar sempre só nas próximas 24 horas. Em fases críticas como essa, para sermos otimistas, o comportamento das pessoas precisa mudar, e precisa ser a curto prazo. Não vejo isso acontecendo”.
O medo é real
A mesma intensa rotina de Smidt é seguida pelo médico Fabiano Nagel, chefe da Unidade de Gestão de Pacientes Críticos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Não raro são 12 horas seguidas de trabalho, sem tempo para comer ou beber água por longos períodos.
“Estamos física e emocionalmente esgotados. E ainda temos muitos afastamentos de profissionais que estão adoecendo por estresse, pelo excesso de trabalho ou por contágio da Covid-19”, explica Nagel, que é também coordenador do grupo de combate à Covid-19 do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul.
Os dois médicos contam que a média de sono deles é de, aproximadamente, 5 horas por dia. “Com frequência, acordo no meio da noite e, pelo menos de três a quatro vezes na semana, trabalho o dia todo. Eu e uma quantidade enorme de profissionais fazemos isso para dar conta da demanda”, acrescenta Nagel.
Por baixo do jaleco, há carne, osso, angústia e medo. Smidt aponta a dupla natureza do receio de se contaminar: “Assim como todo mundo, tenho medo de ter a doença ou que alguém da minha família pegue, mas também [tenho medo] de não poder ajudar meus pacientes nem prover para minha família.” Nagel vai além: “Eu já tive de entubar colega de profissão. Vários acabaram não sobrevivendo. O medo de adoecer é uma constante.”
Até 1º de março, o Ministério da Saúde havia registrado ao menos 484.081 casos e 470 mortes por Covid-19 entre profissionais de saúde. Os dados, no entanto, são menores que os contabilizados pelos conselhos de classe. Um levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) aponta 551 médicos mortos pelo vírus, enquanto o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) relatou 646 enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem vitimados pela doença.
Esse total é significativo quando se leva em conta o cenário global. Uma análise feita pela Anistia Internacional mostrou que ao menos 17 mil profissionais de saúde morreram por Covid-19 em 2020 — um número que a organização considera subestimado, uma vez que há governos que não fornecem números oficiais ou informam apenas parcialmente.
Rede de apoio
Para ajudar os profissionais da linha de frente que estão lidando com todas essas angústias e com a estafa, o Cofen disponibilizou uma plataforma de apoio à saúde mental via chat no site do órgão. Quem coordena esse programa é a enfermeira Dorisdaia Humerez, que comanda a comissão nacional de Saúde Mental do Conselho.
Ela conta que já trabalhava atendendo profissionais de enfermagem, mas que a pandemia gerou outro tipo de sofrimento. “Antes, grande parte das queixas de antes eram relacionadas ao processo de trabalho, à carga horária, ao salário…”, disse.
Há um ano, as queixas passaram a se concentrar no medo do contágio. “Muitos profissionais se afastaram, foram morar em outro lugar, achando que seria por pouco tempo. Ficaram meses sem encontrar filhos, pais”. Smidt deixou de visitar os avós. Nagel não vê a mãe há quase um ano.
Humerez conta que, depois de uma melhora na condição geral, o Cofen estava pronto para fechar a plataforma. Mas os atendimentos voltaram a se intensificar. Os profissionais estão com um sofrimento grande pela perda constante de pacientes. Ela ouve frases como “a gente está aqui quase que para abanar o paciente, porque não tem muito o que fazer”. “É um sentimento de que isso não vai acabar, que está piorando cada vez mais”, diz a enfermeira.
“Uma ligação ou uma videochamada antes da intubação é constantemente a última vez que o paciente fala com seus familiares, e nós levamos essas imagens dos pacientes para nossas casas”, diz Nagel sobre esse ambiente de sofrimento e despedidas. “Nossa cabeça nunca para. Não é como a vida era antes. Estamos pagando um preço muito alto.”
*Colaboração para a CNN