Maior ocorrência de epidemias pode ser a marca do início deste século, diz Nísia Trindade à CNN
Nos 150 anos de Oswaldo Cruz, presidente da Fiocruz aborda os principais desafios do país no contexto da saúde pública em entrevista exclusiva à CNN
Há 150 anos, nascia Oswaldo Cruz. O médico sanitarista, que se tornou símbolo da saúde pública no Brasil enfrentou desafios como a peste bubônica, a varíola e a febre amarela no início do século 20.
Com uma visão pioneira sobre pesquisa, ensino e gestão, o cientista deu os primeiros passos para a construção da instituição que hoje leva o seu nome e dá continuidade ao seu legado.
Com sede em Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) conta com instalações em dez estados brasileiros e no Distrito Federal. Ao todo, são 16 institutos científicos e tecnológicos, além de escritórios regionais e uma representação na África, localizada em Moçambique.
Com mais de 12 mil funcionários, a Fiocruz é responsável pela produção de vacinas, medicamentos e de pesquisa básica e aplicada sobre doenças de importância em saúde pública, como Covid-19, dengue, gripe, malária, febre amarela, sarampo, hanseníase e leishmanioses.
O portfólio de vacinas do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) é composto por 12 produtos, incluindo os imunizantes contra a Covid-19, febre amarela, poliomielite, e a tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola).
Em média, 120 milhões de doses são entregues anualmente ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde. Com a vacina contra o coronavírus, este número aumenta ainda mais. De 2017 a 2021 foram entregues mais de 701 milhões de doses de vacinas à população brasileira.
Considerado o maior laboratório farmacêutico oficial vinculado ao Ministério da Saúde, o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) fornece mais de 30 medicamentos essenciais ao Sistema Único de Saúde (SUS). A lista inclui fármacos para o tratamento do HIV e de doenças como malária, tuberculose e Parkinson, além de antivirais, vitaminas e imunossupressores.
O Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realiza pesquisa, desenvolvimento e inovação em 72 laboratórios, gerando conhecimento sobre transmissão, tratamento, controle e prevenção de diversos agravos, como Aids, tuberculose, malária, febre amarela, dengue, doença de Chagas, leishmanioses, leptospirose, hepatites, hanseníase e meningites, dentre outras.
Em entrevista exclusiva à CNN, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, aborda os principais desafios do país no contexto da saúde pública e discute o atual contexto de surgimento de novas emergências sanitárias; confira os destaques abaixo.
CNN: Covid-19, hepatite de causa desconhecida, varíola dos macacos: estamos vivendo um período com mais doenças?
Nísia Trindade Lima: O cenário descrito é preocupante por enumerar uma série de epidemias surgidas nos últimos dois anos. Antes da Covid-19, é importante lembrar, tivemos a epidemia de H1N1, em 2009, e a de Ebola, entre 2013 e 2016, a emergência sanitária de Zika, com a síndrome congênita tão grave, a mudança no padrão geográfico de ocorrência da febre amarela, sem falar nas epidemias de dengue que há mais de trinta anos impactam as cidades brasileiras e latino-americanas.
Muitos pesquisadores vêm afirmando que essa maior ocorrência de epidemias pode ser a marca deste início de século. Embora estejamos mais aptos a identificar essas emergências, não há dúvidas de que elas têm acontecido com mais frequência, devido a fatores sociais, com destaque para aglomerações urbanas e aumento de desigualdades, além do intenso fluxo de pessoas e de mercadorias, característico de uma economia globalizada. Na verdade, devemos falar de fatores socioambientais, ou determinantes socioambientais, termo consagrado na área de saúde coletiva.
Os efeitos das mudanças climáticas, com o aquecimento global, e do desmatamento impactam fortemente o cenário atual e o futuro, apontando para novos padrões de circulação de patógenos, reemergência de doenças já conhecidas.
Temos mais instrumentos científicos e tecnológicos para detecção de possíveis novas emergências e de resposta, com recursos advindos da ciência. Entretanto, a agenda científica e de políticas públicas para antecipar e preparar as sociedades precisa ser abrangente, envolver todas as áreas do conhecimento e superar a falsa dicotomia entre o biológico e o social.
CNN: Oswaldo Cruz enfrentou grandes problemas em saúde da sua época, como peste bubônica, a febre amarela e a varíola. Hoje, quais são os nossos principais desafios?
NT: Diante do cenário de pandemia e de provável surgimento de novas emergências sanitárias, precisamos tomar três tipos de medidas: as de resposta, reconstrução e preparação. A pandemia não acabou e precisamos seguir no seu enfrentamento por meio do avanço da vacinação no Brasil e no mundo, ao mesmo tempo em que a vigilância precisa acompanhar as mutações do vírus em um quadro de elevada transmissão. É preciso ainda reconstruir as sociedades, profundamente impactadas pelo vírus e que viram as desigualdades se aprofundarem ainda mais.
Finalmente, é necessário estarmos muito mais bem preparados para novas emergências, com a adoção de um conjunto de medidas, entre as quais destaco o fortalecimento dos sistema de saúde e de proteção social, no Brasil, o fortalecimento do SUS; investimentos contínuos em Ciência, Tecnologia e Inovação; e a descentralização da produção de bens de saúde em nível global, como vacinas, medicamentos e testes diagnósticos, inclusive para ampliar seu acesso, de forma mais equitativa.
CNN: Como o negacionismo impacta o enfrentamento de doenças no país e no mundo?
NT: Uma das medidas de preparação que considero essencial aborda a questão da confiança nas instituições. Trata-se da mudança do paradigma da comunicação da ciência para o estreitamento das relações entre ciência e democracia. O professor André Botelho, atual presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, tem excelente artigo sobre o tema. O argumento é o de que a ciência precisa estar a serviço dos desafios sociais, e por meio de um diálogo mais aberto. Isso significa manter a proximidade com o público, expor com nitidez as possibilidades, os limites e o tempo da ciência.
Para essa construção de confiança entre sociedade e instituições, entre as quais as científicas, é necessário que elas produzam bens públicos, e considero que também o conhecimento deva ser um bem público. O Brasil tem uma bela tradição de divulgação científica o que fica bem claro na atuação da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. Trata-se agora de aproximar ainda mais a divulgação científica de uma perspectiva dialógica, da comunicação pública e da defesa da relação virtuosa entre ciência e democracia.
CNN: No Brasil, nos últimos anos, vimos surtos de sarampo, febre amarela e dengue. Por que ainda é um desafio lutar contra agravos seculares no país?
NT: As doenças citadas têm causas diversas, mas, em comum, evidenciam como aspectos sociais e ambientais impactam a saúde. O sarampo havia sido eliminado no Brasil em 2016, mas retornou com a queda da cobertura vacinal nos últimos cinco anos. Temos agora o risco de que outras doenças ressurjam. A piora das condições de vida nos últimos anos é um dos elementos para a menor procura por vacinação.
Para ajudar a reverter esse processo, temos na Fiocruz o projeto Reconquista de Altas Coberturas Vacinais, coordenado por Bio-Manguinhos, e participamos ativamente da campanha Vacina Mais, promovida pelos conselhos de secretários e secretarias municipais de Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde e Fiocruz.
Por fim, a dengue, doença negligenciada, tem como alguns de seus fatores o saneamento básico precário de algumas regiões, consequência da rápida urbanização, e a insuficiência de programas de controle. Vemos que as condições sociais e ambientais ajudam a explicar a persistência dessas doenças.
CNN: Doenças negligenciadas como Chagas, leishmaniose, hanseníase, raiva e parasitoses ainda apresentam carga significativa no Brasil. Por que é difícil enfrentar o problema?
NT: Antes de tudo, é importante pensar em populações negligenciadas, e não apenas em doenças negligenciadas. Isso nos ajuda a entender o problema, na medida em que nos coloca a questão do acesso dessas pessoas aos serviços e produtos da saúde.
A concentração da produção de bens de saúde em países de renda alta, muitas vezes em um enfoque que não prioriza o interesse público, a inexistência ou insuficiência de proteção social e de sistemas de saúde com acesso universal e gratuito, como o SUS, na maior parte dos países, esses são alguns elementos que ajudam a explicar por que há ainda tantas pessoas que sofrem com doenças evitáveis e para as quais há cura.
CNN: Quando doenças que são endêmicas em países da África, como a varíola dos macacos, passam a afetar nações desenvolvidas, há uma mobilização diferente da comunidade científica. Como você avalia esse contexto?
NT: Esse problema está relacionado à pergunta anterior, visto que, além de populações negligenciadas, podemos ter regiões inteiras negligenciadas. Em algum momento, não muito distante, era consagrada a denominação dessas doenças como “tropicais”, justamente por ocorrerem nas regiões periféricas, o que, à luz da atualidade, não deixa de ser uma confissão da negligência regional.
É possível que a experiência trágica da pandemia tenha nos sensibilizado para o fato de que a saúde de um depende da saúde de todos. Quero crer que sim. Uma frase do sociólogo Klaus Eder tem me vindo à mente: ‘as sociedades aprendem, mas o mundo é difícil de mudar’. Espero que caminhemos para uma mudança.
CNN: Um fenômeno conhecido como ‘fuga de cérebros’ descreve a partida de pesquisadores do Brasil em busca de oportunidades em outros países. Qual a importância do investimento em pesquisa e em ensino neste momento no Brasil?
NT: Essa é uma de nossas preocupações na Fiocruz. Aposentadorias têm acontecido, sem a devida reposição. Se considerarmos o que disse nesta entrevista, precisamos não apenas repor, mas ampliar a participação de pesquisadores e promover a inclusão de jovens investigadores. Uma ampliação, tanto para responder às doenças negligenciadas, característica de países de renda baixa e média, quanto para nos prepararmos para o cenário de novas emergências sanitárias mais frequentes. É preciso fazer essa transição e só com a perspectiva de uma carreira reconhecida, com equipamentos e insumos adequados à plena realização de suas potencialidades faremos esses pesquisadores permanecerem.
Não se trata apenas de cérebros, mas de compromissos e valores de jovens que querem contribuir com o país em que cresceram. Esse elemento humano é insubstituível e acredito que seja uma preocupação das instituições científicas como um todo no país. Ao mesmo tempo, se verifica outro fenômeno, que antecede a fuga: a desistência da carreira científica devido às precárias condições e à falta de oportunidades de carreira, uma espécie de perda de cérebros, de potência criativa, no interior do próprio país.