Falta de comunicação de resultados de autotestes gera subnotificação, apontam especialistas
Nova modalidade de testagem da Covid-19 passou a funcionar no país em fevereiro
O atual cenário epidemiológico de alta de casos de Covid-19 pode ser ainda maior, por conta de um fato novo de difícil mensuração: o uso de autotestes para diagnóstico da doença.
Especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirmam que os kits são uma ferramenta importante, mas que o modelo brasileiro de implementação não gerou um mecanismo eficaz de notificação. De acordo com os pesquisadores, isso cria faz com que os pacientes decidam cumprir o isolamento domiciliar por conta própria, sem que o resultado seja informado às autoridades sanitárias.
Médico sanitarista da Fiocruz Brasília, Cláudio Maierovitch avalia que o Brasil não promoveu uma incorporação adequada dos autotestes como instrumento de enfrentamento à pandemia. Ele destaca que a aceitação da ferramenta ocorreu em meio a pressões, em um cenário no qual o Sistema Único de Saúde (SUS) não conseguiu atender a demanda por testagem.
O primeiro kit de autoteste teve registro concedido pela Anvisa, no Brasil, em 17 de fevereiro.
“O Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acabaram criando obstáculos para o conhecimento de casos confirmados por autotestes. A impressão que dá, pela regulamentação feita, é que o autoteste foi tolerado, mas não incorporado como uma estratégia que integrasse o trabalho da saúde pública. Dessa forma, é tratado como interesse individual. A pessoa está com sintomas leves, está em contato com alguém, vai participar de uma atividade com outras pessoas, faz e guarda o resultado para si mesma, sem conexão com a saúde pública”, avalia Maierovitch.
O pesquisador destaca ainda que o avanço da vacinação, responsável por tornar brandos a maioria dos quadros clínicos, já havia criado maior dificuldade para conhecimento do número dos casos confirmados. Isto porque boa parte dos pacientes não apresenta sinais da doença ou deixa de procurar unidades de saúde em caso de sintomas leves.
Coordenador do Boletim InfoGripe e pesquisador do Programa de Computação Científica (PROCC/Fiocruz), Marcelo Gomes concorda com a opinião e destaca que não há dados ou estimativas oficiais sobre o impacto da não notificação de pacientes diagnosticados por meio de autoteste, utilizado no Brasil como um instrumento de triagem.
“Era de se esperar que uma parcela importante da sociedade não vá procurar uma fila, um posto, uma rede de saúde. Não é à toa que diversos países que adotaram a estratégia fizeram sistemas próprios para notificação, com QR code nas embalagens. O que tivemos no Brasil foi a migração dos testes feito nas farmácias, porque os autotestes saem mais baratos do que eles e do que o RT-PCR [diagnóstico molecular] em tempo real”, avalia Gomes.
Para Maierovitch, a própria confirmação do diagnóstico, por parte do paciente que realiza o autoteste, é um procedimento desnecessário, do ponto de vista da capacidade nacional de diagnósticos de casos de Covid-19.
“Esse é um teste idêntico aos de antígeno de farmácia e de laboratórios de todo o país. Portanto, eu entendo a necessidade de validação para questões formais, como ausência ao trabalho, para cumprir o isolamento e etc. Mas, para efeitos de notificação de saúde pública, isso não seria necessário”, avalia o pesquisador da Fiocruz Brasília.
Gomes destaca que, além de a vacinação ter afetado o perfil de casos confirmados de Covid-19, ao reduzir o número de quadros graves, o processo atuou também na mudança de comportamento do público: os brasileiros ficaram menos preocupados com o vírus, o que os afasta dos consultórios e clínicas.
“Com menos gente com sintomas, menos preocupação, e menor reação social. Quem tem sintomas, não quer saber se é resfriado, influenza ou um vírus qualquer. Espera uma semana, deixa passar e volta à vida normal”, conclui.
Procurada, a Anvisa reiterou que o autoteste, na política brasileira, não define um diagnóstico, que deve ser realizado sempre por profissional de saúde. “O caráter do autoteste é orientativo e o mesmo serve como triagem para orientar o usuário sobre o risco de transmissão do vírus e as medidas que podem ser adotadas”, afirmou a agência, por meio de nota.
A agência destacou ainda que o Plano Nacional de Expansão da Testagem para Covid-19 (PNE-Teste) “facultou à época de autorização que os fabricante oferecessem serviço de registro dos resultados, não sendo um serviço obrigatório”, conclui a nota. Questionado sobre o mesmo tema, o Ministério da Saúde ainda não se manifestou.