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    Esforços para frear Covid-19 podem causar 1 milhão de mortes por outras doenças

    Dados aparecem em um novo relatório da Associação Internacional de Aids (IAS, em inglês) publicado nesta semana

    Enquanto os serviços de saúde em todo o mundo continuam concentrando seus recursos no fim da pandemia de coronavírus, décadas de progresso conquistado na resposta ao HIV, tuberculose e muitas outras doenças estão sob ameaça. Os dados aparecem em um novo relatório da Associação Internacional de Aids (IAS, em inglês) publicado nesta semana.

    O grupo vai apresentá-los e falar de suas preocupações durante a 23ª Conferência Internacional de Aids, que começou nesta segunda-feira (6). Ao longo da semana, as autoridades vão destacar o impacto da
    pandemia nos programas de controle do HIV e de outras doenças em todo o mundo – acrescentando uma série de temores surgidos nos últimos meses.

    “Os esforços de distanciamento social e os confinamentos para controlar a disseminação [do novo coronavírus] interromperam os programas de prevenção e tratamento do HIV e suspenderam pesquisas vitais sobre o HIV”, afirmou o doutor Anton Pozniak, presidente da IAS, na semana passada.

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    Várias pesquisas já provaram esse fato, incluindo uma divulgada em junho pelo Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, uma organização não governamental de financiamento internacional. Ela constatou que em 106 dos países em que a ONG trabalha, 85% relataram interrupções nos serviços de combate ao HIV e 78% e 73% nos serviços de tuberculose e malária, respectivamente. Quase 20%
    relataram interrupções graves no tratamento das três doenças.

    Modelos da Organização Mundial da Saúde (OMS), da parceria Stop TB (contra tuberculose) e do Imperial College London previram que essas interrupções poderiam causar mais de 1 milhão de mortes a mais 
    causadas pelas três doenças.

    Projeções recentes encomendadas pela OMS e pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e
    Aids (Unaids), por exemplo, estimaram que uma interrupção de seis meses nos serviços somente na África Subsaariana poderia levar a 500 mil mortes adicionais por doenças relacionadas à Aids em 2021.

    Os números se somam às prováveis 470 mil mortes que teriam ocorrido, com base nos dados de 2018. Isso causaria um retrocesso de mais de 12 anos no controle do HIV.

    “Existe o risco de que os ganhos duramente conquistados da resposta à Aids sejam sacrificados na luta contra a Covid-19”, afirmou o diretor executivo do Unaids, Winnie Byanyima, em comunicado em maio, quando as projeções foram publicadas. “Mas o direito à saúde significa que nenhuma doença deve ser combatida à custa da outra.”

    Muitos especialistas na área acreditam que o combate ao novo coronavírus fez exatamente isso. “Com os serviços de atendimento móvel transferidos para a Covid-19, ninguém está fazendo testes de HIV”, contou Pozniak, da IAS, à CNN. Esses serviços não estão testando nada além da Covid-19, afetando não apenas a detecção do HIV, mas também da tuberculose, da malária e da maioria das outras doenças, incluindo as que podem ser prevenidas por vacinas.

    Centenas de milhares de mortes extras

    No mês passado, os modelos matemáticos divulgados pela parceria Stop TB estimaram que um confinamento global de dois meses, seguido de recuperação de dois meses – considerado o melhor cenário -, poderia resultar em mais de 1,8 milhão de casos extras de tuberculose em todo o mundo, e mais de 340 mil mortes extras até 2025. Mais uma vez: os números se somam aos já 10 milhões tipicamente infectados e 1,5 milhão que morrem a cada ano com base nos números de 2018 da OMS.

    Controlar a tuberculose significa saber quem são os infectados e colocá-los em tratamento, para beneficiar tanto os doentes como as pessoas da comunidade. Como o novo coronavírus, a tuberculose se espalha através de gotículas liberadas no ar por pessoas infectadas. Estima-se que alguém com uma infecção ativa possa infectar de dez a quinze pessoas em um ano, de acordo com os serviços da Movimento
    Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC).

    Os especialistas também esperam um aumento nos casos de malária. Modelos publicados no início de maio pelo Imperial Colege London estimaram que as mortes por malária poderiam dobrar este ano em comparação com 2019, atingindo mais de 760 mil óbitos, graças ao menor número de pessoas que têm acesso a mosquiteiros para protegê-las das picadas de mosquitos e ao acesso limitado a testes ou tratamentos quando infectadas.

    “Veremos o aumento da transmissão”, afirmou Pozniak, mas a extensão do dano só será descoberta mais tarde, “quando voltarmos a fazer testes de forma generalizada”. O presidente da IAS enfatizou que modelos como esses são estimativas, com base em muitas suposições – o que significa que pode ser melhor, mas também pode ser pior. “Pode ser pior do que eles dizem e isso seria desastroso”, afirmou. “Mas esperamos que os esforços que as organizações estão realizando atenuem qualquer perda.”

    Tais esforços incluem a criação de pontos de coleta em aldeias e vilarejos para medicamentos contra HIV e tuberculose, que precisam ser tomados diariamente por longos períodos, bem como mosquiteiros tratados com inseticida. Trabalhadores voluntários fornecem muitos dos serviços comunitários na África
    Subsaariana, mas o recrutamento de mais força de trabalho não é simples, pois a disponibilidade de equipamentos para protegê-los em campo também é limitada.

    Então, será que vai ser tão catastrófico? “É muito difícil dizer”, lamentou a autoridade em Aids. “Vamos retroceder cinco anos.”

    Os temores locais podem ser vislumbrados observando o Essuatíni, antiga Suazilândia, pequeno país sem litoral que tem os níveis mais altos de HIV no mundo. Estima-se que 27,3% de sua população vivia com HIV em 2018 (mais de uma em cada quatro pessoas), de acordo com o Unaids. Ao mesmo tempo, o país tem um número relativamente baixo de casos de Covid-19 em comparação com o resto do mundo, mas não com o continente africano. Desde 1º de julho, Essuatíni registrou 954 casos e 13 mortes foram reportadas até 5 de julho.

    A pandemia, no entanto, sobrecarregou o sistema de saúde e o vírus ainda está se espalhando. À medida que os recursos continuam a ser usados para combatê-lo, os especialistas em saúde estão extremamente conscientes das outras infecções que estão prontas para entrar em erupção.

    “Nosso foco principal nos últimos anos foi o HIV e a tuberculose”, contou o doutor Bernhard Kerschberger, diretor no país e chefe de missão da ONG humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF). Depois de anos de progresso no combate a essas doenças, ele teme um retrocesso – e dos grandes. “Talvez a gente retroceda cinco anos.”

    Desde que o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado no país em 14 de março, os isolamentos subsequentes e os temores sobre a contaminação pelo vírus mantiveram as pessoas afastadas das clínicas apoiadas pelo MSF – com o número de pacientes ambulatoriais caindo 50%. A população vive principalmente em áreas rurais, o que significa que a visita a uma clínica geralmente requer longas viagens de transporte público.

    Os serviços móveis de saúde fornecidos pelo MSF foram interrompidos, pois geralmente incentivam as multidões a se reunir em espaços públicos. Por tudo isso, os testes de HIV caíram 40% em abril e o número de pessoas que iniciaram o tratamento antirretroviral para a infecção diminuiu 50%, contou Kerschberger à CNN. “Estamos muito preocupados”, disse. Mas o verdadeiro impacto e a extensão do dano não serão sentidos por alguns meses, talvez anos.

    Aprendizados do ebola

    Algumas ideias sobre o provável impacto da pandemia podem ser obtidas com os resultados de epidemias anteriores em larga escala – como a de ebola que devastou a África Ocidental em 2014, infectando mais de 28 mil pessoas e causando mais de 11 mil mortes. A emergência durou dois anos e desviou recursos de infecções que já afetavam populações da região, como HIV e malária, principalmente na Libéria, Guiné e Serra Leoa.

    “Ao observar como as outras pandemias afetaram as comunidades, sabemos que teremos interrupções”, explicou Pozniak, da IAS. Um estudo de 2016 feito na Yale School of Public Health estimou que mais de 10 mil pessoas morreram de HIV, tuberculose e malária após a epidemia de ebola, com base em uma redução de 50% no acesso aos cuidados de saúde durante esse período.

    A pandemia deste ano e a epidemia de 2014 “são muito similares em certos aspectos”, comparou o doutor Emanuele Capobianco, diretor de saúde e assistência do IFRC (Cruz Vermelha). “Lembro que houve um
    aumento muito grande da malária, porque ela não estava sendo diagnosticada”, disse à CNN. Para melhorar o quadro, foram feitos testes na comunidade, permitindo o diagnóstico e o tratamento da malária com mais facilidade.

    Atualmente, a IFRC está envolvida no fornecimento de centenas de milhões de mosquiteiros tratados com inseticida em nível comunitário em 30 países, com uma meta de 250 milhões de redes até o final de 2020. Mas isso traz seus próprios desafios em relação à velocidade de entrega, a quantidade de equipamento de proteção suficiente para quem fornece as redes, e a garantia de que um pequeno número de pessoas venha buscá-las e faça distanciamento social nesses momentos. “O maior problema é a congregação de pessoas”, afirmou Capobianco.

    No entanto, entregar medicamentos antirretrovirais como suprimento de estoque, cobrindo as necessidades por dois a três meses, também requer um certo nível de supervisão para garantir que os
    medicamentos sejam tomados como se deve e que não sejam vendidos em uma hora de dificuldade financeira.

    “Sabemos que este é um momento muito delicado para a segurança financeira das famílias. Os medicamentos são uma mercadoria e podem ser vendidos”, ressaltou. “Trabalhadores comunitários que
    acompanham as famílias e as apoiam são importantes”. No entanto, enquanto os fatos ainda se desenrolam, “a interrupção é grave e as consequências serão sentidas por um longo tempo”, completou o diretor da Cruz Vermelha.

    Imunizações em pausa

    Outros desdobramentos incluem um aumento iminente de infecções que, de outra forma, seriam evitadas por meio de programas de rotina de imunização – como sarampo, poliomielite e rubéola – porque, embora seja possível criar pontos comunitários para simplesmente deixar medicamentos e redes para as pessoas pegarem, o mesmo não pode ser feito com as vacinas.

    “É mais complexo”, disse Capobianco, pois imunizar significa ficar próximo da criança que recebe a vacina [para injetá-la] e da mãe que a segura. “Há um elemento de proximidade física que não se pode evitar”, contou. “Não é impossível, mas precisa de mais planejamento.”

    A ONG global segue a orientação dos países em que trabalha e, em muitos deles, campanhas de imunização foram suspensas. A medida seguiu a orientação da OMS de março, que aconselhou adiar temporariamente as campanhas em locais que não apresentavam surtos dessas doenças.

    Dados divulgados pela OMS em junho mostraram que as imunizações de rotina foram impactadas em pelo menos 68 países em todo o mundo, afetando cerca de 80 milhões de bebês com menos de 1 ano. Porém, com os compromissos posteriores de financiamento, prometidos na Cúpula Global de Vacinas, em junho, e as novas orientações da OMS sobre como retomar com segurança as campanhas de imunização, espera-se mitigar a situação até certo ponto, segundo a agência.

    No entanto, infecções como o sarampo estão entre as mais contagiosas e surtos continuam a ocorrer, com mais de 22,5 mil casos de sarampo reportados globalmente à OMS em fevereiro, antes de o novo coronavírus ser declarado uma pandemia. Desde então, milhares de casos de sarampo foram relatados, mas as lacunas nos números dos relatórios tornam os dados menos confiáveis.

    De qualquer maneira, os casos de sarampo (assim como rubéola e difteria, para citar alguns) continuam ocorrendo. Os especialistas temem que, à medida que as restrições de confinamento terminem e as pessoas façam mais contato entre si, as crianças que não foram vacinadas fiquem extremamente vulneráveis – o que pode levar a surtos em massa.

    Nova vacina atrasada

    Se o quadro já não parece sombrio o suficiente, há mais. Novas oportunidades de controle de infecção também foram prejudicadas pela pandemia, já que a corrida para encontrar uma vacina necessária contra a Covid-19 desviou inevitavelmente os recursos daquelas que estavam em andamento para pelo menos outras 12 doenças, incluindo malária, vírus zika e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) – uma parente da Covid-19.

    É o caso, por exemplo, do Jenner Institute da Universidade de Oxford, que atualmente possui uma  candidata à vacina contra o novo coronavírus submetida a testes em humanos no Reino Unido, Brasil e África do Sul.

    “Todos os outros programas de vacinas no Jenner Institute foram atrasados pelo esforço com a Covid-19, tanto o trabalho pré-clínico quanto os ensaios clínicos”, relatou Adrian Hill, diretor do Jenner Institute e professor de genética humana, à CNN. “Nos últimos três meses, apenas o trabalho com a Covid-19 foi permitido durante o confinamento, e nosso estudo de Fase 3 da nova vacina da Covid-19 está usando toda a capacidade do nosso centro clínico.” Isso inclui funcionários e estudantes que foram transferidos de outros programas.

    Hill suspeita que o atraso na recuperação dos outros programas do centro será de cerca de seis meses, maior do que os atrasos resultantes da epidemia de ebola de 2014. De acordo com o diretor, a situação mais preocupante é da vacina contra a malária, que deveria iniciar um teste que poderia levar à sua licença. “O início deste teste está atrasado e, portanto, o potencial uso desta vacina contra a malária pode ser adiado pela Covid-19”, disse.

    Hill espera que a vacina contra malária de sua equipe ofereça uma proteção melhor do que a criada pela farmacêutica GSK, conhecida como RTS,S, que começou a ser lançada na África no ano passado, mas tem apenas 40% de eficácia.

    A OMS estimou o número mundial de casos de malária em 2019 em 228 milhões, com 405 mil mortes. “A mortalidade global pela doença tem sido semelhante à da mortalidade por Covid-19 nos últimos nove
    meses”, afirmou Hill.

    Encontrar uma vacina contra a Covid-19 é uma prioridade global. É o que os líderes mundiais esperam para acabar com a pandemia e restaurar a economia global. E, embora esse foco tenha atrasado significativamente o progresso contra outras doenças infecciosas, um aspecto importante é que a velocidade com que esta vacina está sendo desenvolvida pode estabelecer um precedente para as demais – se elas também forem priorizadas.

    Para Hill, a experiência destacou processos ruins de descoberta e de estruturas de financiamento em torno do desenvolvimento de vacinas.

    A Covid-19 mostrou que o desenvolvimento da vacina “pode realmente ir da descoberta de vírus a estudos de Fase 3 e fabricação de vacinas em larga escala em seis meses”. O processo geralmente leva 10 anos. “Provavelmente não poderemos ser tão rápidos para todas as novas vacinas”, destacou Hill. “Mas não se deve demorar 20 vezes mais do que o que foi feito com a Covid-19 para desenvolver vacinas que possam
    salvar mais vidas.”

    (Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).

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