Ela escolheu a morte assistida na Suíça e contou ao mundo o porquê
Cindy Shepler optou pela eutanásia depois de conviver por décadas com doenças dolorosas; seu marido David reconta sua história de luta
Pouco depois das 11 da manhã de 16 de dezembro, 2019, Cindy Siegel Shepler deu seu último suspiro em um quarto espartano em Basileia, Suíça.
A norte-americana de 62 anos girou um botão no suporte de gotejamento intravenoso e em seguida adormeceu pela última vez.
Eu havia passado com ela e seu marido David as últimas três noites deles em sua casa em Knoxville, Tennessee, antes de partirem para Basileia. E falei com ela pela última vez cerca de 12 horas antes de ela morrer.
Cindy tinha sido forçada a desistir de uma poderosa carreira corporativa aos 35 anos e lutou por décadas com um punhado de doenças dolorosas. Ela passou grande parte da vida buscando novos tratamentos e advogando por pesquisas médicas, sabendo que nunca poderia se beneficiar de seus esforços.
Quando finalmente ficou claro que nenhuma droga poderia aliviar seu intenso sofrimento, Cindy escolheu a morte voluntária assistida, ou suicídio assistido, um procedimento que não é legal em seu estado natal.
Seu desejo final foi que eu contasse sua história, com a esperança de que isso ajudasse a causa de todos os norte-americanos que gostariam de ter acesso a esse tipo de morte com dignidade.
“Eu trabalhei tanto como voluntária”, ela me disse no penúltimo dia de vida. “Tem que significar alguma coisa. E você está me dando esse presente.”
O desejo de ajudar os doentes nos uniu
Nossa amizade era improvável.
Quando a conheci, ela tinha mais do que o dobro da minha idade. Era casada, judia, morava em um estado diferente e vivia praticamente o tempo todo dentro casa por causa de suas doenças. Eu estava na casa dos 20 anos, era solteiro, cristão e tentava passar meu tempo livre viajando pelo mundo. Mas compartilhávamos o mesmo diagnóstico: encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica (ME/CFS). Em 2017, depois que ela assistiu a um documentário que eu havia dirigido sobre a doença, Cindy conseguiu meu número de telefone e me ligou para procurar ajuda em um projeto de advocacy. “Eu sou sua maior fã”, disse.
Nos dois anos e meio seguintes, a admiração se tornou mútua. Ela era uma das pessoas mais animadas que eu já conheci, e me enlevou com seu espírito. A cada texto que eu escrevia para a CNN, ela me mandava mensagens do tipo “Ryan, você percebe como isso é incrível? Isso pode dar o Pulitzer para você!”
Doenças dolorosas
Dois temas principais surgiram de sua história de vida: ela sofria frequentemente, mas também estava sempre nas fronteiras da mudança social.
Ao crescer na década de 1960 em Knoxville, Tennessee, foi uma das primeiras garotas da cidade a ter uma bat mitzvah. Mais tarde, ela fez um ano sabático na faculdade antes de isso virar moda, tornou-se vegetariana e participou da primeira Caminhada da Aids em São Francisco, em 1987.
Esses temas convergiram em sua escolha da morte, que ela pensou que poderia ser presciente também.
“Precisamos reformular a forma como todos encaramos a morte. Daqui 10 anos, isso será muito fácil de resolver.”
Depois de se formar com honras pela San Francisco State University em 1984, ela trabalhou como executiva de contas da Cigna, uma empresa de seguro de saúde. Mas foi forçada a sair em 1993 por razões de saúde e voltou para casa em Knoxville.
Cindy foi diagnosticada com uma série de doenças que afetam os sistemas imunológico e endócrino: ME/CFS, fibromialgia (que causa dor musculoesquelética grave) e síndrome de Sjögren, um distúrbio imunológico doloroso que deixa a boca e os olhos secos. Também teve tireoidite de Hashimoto, que exigiu a remoção de sua glândula tireoide aos 28 anos. Desde então, ela precisou de remédios para tireoide para poder viver.
Na casa dos 50 anos, Cindy desenvolveu uma condição genética rara chamada doença de Hailey-Hailey, que causava bolhas dolorosas na pele do corpo. Cada doença, já terrível isoladamente, se acumulava na seguinte.
“Ninguém sabe o quanto estou doente”, dizia. “Muitas vezes parece que estou no inferno.”
Suas experiências em São Francisco, na época em que a comunidade gay enfrentava o surto inicial de Aids, levaram-na a se manifestar como defensora que pedia pesquisas biomédicas para essas doenças. Embora não pudesse marchar pelas ruas, conseguiu muito com o laptop, principalmente da cama.
Cindy conheceu o marido, David Shepler, em um torneio de bridge em 2002, e os dois se casaram em outubro do ano seguinte, quando ela já estava com 46 anos.
Ele foi parceiro dela em reuniões com centenas de pacientes para formar o Grupo Mundial de Apoio à Doença de Hailey-Hailey no Facebook, que oferece suporte 24 horas por dia, sete dias por semana aos pacientes.
O diretor científico do Rare Genomics Institute, Imran Babar, me contou em um e-mail que Cindy havia abordado sua organização com a proposta de testar um medicamento genérico em pacientes de Hailey-Hailey. Esse trabalho acabou levando a um artigo de revisão na revista Integrative Biomedical Sciences, intitulado “A naltrexona de baixa dose pode ser um tratamento eficaz para a doença de Hailey-Hailey?”
O cientista observou que o trabalho de Cindy levou o instituto a criar uma força-tarefa por meio da qual pacientes com doenças raras poderiam contratar especialistas para obter informações científicas difíceis de encontrar sobre suas condições.
“Cindy foi uma comunicadora talentosa, defensora incansável, elo de ligação brilhante e uma inspiração para a nossa organização”, afirmou Babar. Cindy também foi embaixadora comunitária da Open Medicine Foundation, uma organização sem fins lucrativos dedicada à pesquisa de doenças neuroimunes, como ME/CFS e doença de Lyme.
Quatro ou cinco anos atrás, ela percebeu que continuava piorando e passou a ficar quase completamente confinada em casa. Passou um ano sem ir a um restaurante. As incursões fora de casa eram geralmente limitadas a visitas a consultórios médicos ou a salões de cabeleireiro.
“Tenho um marido maravilhoso”, contou. “Meu único desejo é ter ao menos um ano de boa saúde para desfrutar com ele.”
Cindy não queria mais ir para onde a saúde a levava. Mas, se fosse necessário, estava determinada a enfrentar o momento com coragem.
“Não serei uma das estatísticas das pessoas que desistiram”, ela me disse várias vezes.
Morte assistida é ilegal em grande parte dos EUA
Enquanto pesquisava constantemente novos medicamentos que poderiam proporcionar uma qualidade de vida renovada, Cindy também trabalhava secretamente em seu plano B pela morte.
Uma opção que ela considerou foi tentar convencer um médico a desistir de seu remédio para tireoide que a mantinha viva – seria uma maneira de se qualificar para cuidados paliativos. Isso não poderia ser concretizado porque os médicos não dariam sinal verde para o que ainda seria uma morte lenta e dolorosa sem os remédios. E a rota mais direta, a morte assistida, ainda estava bloqueada.
A American Medical Association se opõe ao suicídio assistido por médico, argumentando que pode causar mais mal do que bem. A opinião ética oficial da organização é de que o suicídio assistido é “fundamentalmente incompatível com o papel do médico como curador, pois seria difícil ou impossível de controlar e representaria sérios riscos sociais”.
No entanto, nove estados dos EUA permitem algum tipo de assistência à morte. São eles: Colorado, Havaí, Maine, Nova Jersey, Oregon, Vermont, Washington e o Distrito de Columbia. Seis dessas leis foram promulgadas nos últimos cinco anos.
Em Montana e na Califórnia esse recurso é legal desde que amparado por ordem judicial. Legisladores no estado natal de Cindy, Tennessee, escreveram leis sobre o “direito de morrer”, algumas recentes, de 2017, mas elas nunca chegaram ao plenário para votação.
As leis norte-americanas sobre morte com dignidade tendem a exigir que um indivíduo tenha menos de seis meses para viver. Isso significa que, mesmo que o casal Sheplers se mudasse para um estado que dá o direito de morrer, Cindy não se qualificaria por não se encaixar na definição de “terminal” exigida por lei.
Ela nem sempre sentiu que o mundo inteiro reconheceu a dor de suas doenças ou aceitou sua escolha para acabar com sua vida. Mas uma pessoa nunca duvidou dela. David me disse que, se tivesse sofrido todas as doenças que Cindy sofria, teria procurado uma saída anos atrás.
“Ela me dizia que sua pele parecia estar pegando fogo”, David me contou, observando os dias em que ela gritava em agonia e perguntava se havia uma arma em casa.
Segundo ele, antes de dormir, ela dizia: “‘Por que eu tenho que acordar de manhã?’ E de manhã continuava: ‘Por que eu tenho que acordar?’ Não disse isso uma vez, mas cem vezes.”
No entanto, Cindy via esperança no exterior: a assistência médica na morte está disponível de forma total ou condicional na Bélgica, Canadá, Colômbia, Holanda, Luxemburgo e Suíça.
Para ela, a morte assistida ‘se alinhava’ com sua bússola espiritual
A morte gentil e pacífica pela qual Cindy rezava era simplesmente ilegal no Tennessee.
No quarto deles, David e Cindy me mostraram um vídeo, feito em 2016 pelo arcebispo sul-africano da igreja anglicana Desmond Tutu, ganhador do Nobel da Paz, jogando seu pesado peso moral por uma proposta de lei de morte assistida no Reino Unido.
“As pessoas que estão em estado terminal devem ter a opção de morrer com dignidade e compaixão”, afirmou o arcebispo. “Quando chegar a hora, espero ser tratado com compaixão e autorizado a passar para a próxima fase da jornada da vida da maneira que escolher”.
De acordo com Cindy, declarações como essa a ajudaram a perceber que a assistência à morte era algo que se alinhava à sua “bússola espiritual”.
Cindy solicitou sua morte assistida por meio de uma organização chamada Pegasos Swiss Association.
O momento em que descobriu que seu pedido havia sido aprovado foi marcado por “gratidão eufórica e lágrimas da maior alegria”, ela me contou.
Ela finalmente teria alívio. Mas temia contar aos outros. Alguns de seus familiares mais próximos não saberiam até que ela se fosse.
Ela esperava poder morrer em casa
Na última noite da minha visita, sentei-me com ela para uma “última entrevista”. Perguntei sobre arrependimentos. Suas respostas foram ao mesmo tempo terrenas e profundas.
Disse que se arrependia de não ter tido filhos. Temendo que o parto pudesse destruir ainda mais sua saúde já frágil, ela recusou pretendentes que procurassem não apenas uma esposa, mas uma mãe para seus filhos.
Outra observação, esta leve, foi que também lamentava não poder ver o final de “The Voice”. O vencedor da 17ª temporada do programa de talentos da NBC só seria revelado na segunda quinzena de dezembro. Seu encontro com a morte estava marcado para o dia anterior à final do programa.
Durante as semifinais do programa na semana anterior, eu me sentei na beira da cama de Cindy e David, assistindo com eles.
Uma participante, Kat Hammock, cantou um antiga canção gospel: “When I die, Hallelujah, by and by, I’ll fly away I’ll fly away, oh glory”. Cindy levantou-se da cama e dançou. Foi o momento mais vivo que presenciei nela a semana inteira.
Ela me disse que preparou uma playlist para sua última hora, que incluía “I Lived”, do One Republic, “Memories”, do Maroon 5 e, é claro, “I’ll Fly Away”.
Se Cindy não tivesse partido deste mundo, eu diria a ela que o vencedor de “The Voice” foi o cantor country Jake Hoot.
Ela escolheu morrer à sua maneira na Suíça
O casal voou para Zurique na primeira classe. O corpo de Cindy estava frágil e cada luxo extra poderia ajudá-la a se sentir confiante para fazer a viagem.
As viagens aéreas torturavam seu corpo. O ar seco da cabine exacerbava os sintomas de Sjogren. Sua pele estava ferida por Hailey-Hailey. E até mesmo uma caminhada de 10 minutos no saguão do aeroporto provocou mal-estar pós-esforço, uma característica dolorosa do ME/CFS. Depois de chegar à Suíça, Cindy me disse que não achava que seria fisicamente capaz de fazer a viagem de volta.
Ao chegar na sexta-feira, 17 de dezembro, em Zurique, Cindy e David viajaram de trem para Basileia. Seu tempo na Suíça foi curto, por escolha deles.
Um médico veio ao quarto de hotel do casal no domingo para consultar Cindy e escrever a receita do medicamento que acabaria com sua vida.
Como me contou David depois, na última manhã de Cindy, um motorista pegou o casal no hotel às 9h30 da manhã.
Na clínica, eles se deitaram juntos numa cama, e um médico montou um suporte intravenoso, com um tubo longo e fino inserido na mão de Cindy. Quando se sentiu pronta, ela disse a David que o amava. Cindy agradeceu ao médico e ao assistente que estavam na sala.
E então girou o botão.
O medicamento atingiu suas veias. Cindy disse que estava com frio. Em seguida, adormeceu.
Naquele dia, David me escreveu da Suíça: “Cindy voou para longe às 11h11. Ela foi corajosa e muito grata. Eu sempre a amarei”.
David também mencionou a história de George Sanders, 86 anos, do Arizona, que atirou e matou sua esposa depois que ela implorou para que ele o fizesse devido às complicações da esclerose múltipla.
Sanders foi acusado de assassinato, confessou homicídio culposo e foi condenado a dois anos de liberdade vigiada sem supervisão.
Em suma, Cindy sentiu que o juiz não culpou Saunders.
“Cindy enviou ao juiz uma carta de agradecimento”, escreveu David. “Às vezes me perguntava se eu teria a coragem de prestar esse ‘serviço’ para ela se me implorasse.”
Por meses, eu me perguntei o que eu poderia fazer em uma situação semelhante se fosse casado.
Ela queria que sua memória fosse uma luz para os outros
Nos primeiros dias depois da morte de Cindy, eu não consegui chorar. Meu corpo inteiro doía intensamente de tristeza. Eu me senti pesado.
Certa vez, um amigo me disse que quando alguém que conhecemos morre, lamentamos a morte da parte de nós mesmos que somente eles conheciam.
Reli anotações de minhas entrevistas com Cindy várias vezes. Em um pedaço de papel, rabisquei uma lista com seus conselhos para pendurá-los na parede e vê-los todos os dias.
Em nossa última conversa, ela me disse que estava lendo o Salmo 23 da Bíblia, sobre se preparar para entrar no vale da sombra da morte. Agradeci por me apoiar durante alguns dos meus momentos mais desesperadores.
“Você fez o mesmo por mim”, disse ela. “Eu queria ajudá-lo a mergulhar em seu potencial de maneiras que você ainda não conseguiu ver.”
Ela também revisou uma resposta de sua entrevista de alguns dias antes, sobre sua decisão de ter filhos: “Eu sei que se eu pudesse ter um filho como você, teria.”
Cindy também tinha uma mensagem para deixar para o mundo naquela última ligação.
“Não se atreva a deixar alguém dizer que eu perdi a esperança. Porque eu não perdi. Não há realmente nada que possa ser feito neste momento”. Dois dias depois da morte de Cindy, soube que um texto que eu escrevi com todo meu coração foi classificado como o artigo da CNN com o maior envolvimento de leitores de 2019, e o terceiro com mais engajamento entre todos os nossos concorrentes.
Os parabéns vieram do meu chefe, do chefe do meu chefe e do chefe do chefe do meu chefe. Não era o Prêmio Pulitzer que Cindy havia previsto, mas parecia próximo.
Foi só então que eu engasguei. Pela primeira vez desde que Cindy morreu, lágrimas caíram dos meus olhos porque eu percebi que não podia contar a alguém que seria a pessoa mais feliz do mundo com essa notícia.
(Esse texto foi traduzido da CNN Internacional, clique aqui para ler o original em inglês)