Como criar ensaios clínicos para derrotar a próxima pandemia
"O desespero ou a urgência podem nos afastar do método científico", diz Myron Cohen, hoje professor de medicina e epidemiologia na Escola de Medicina
O médico Myron Cohen começou sua carreira combatendo o HIV no início dos anos 1980 e, desde então, tem lutado contra essa epidemia no mundo todo. No entanto, ele nunca trabalhou tanto para criar novas terapias e salvar vidas como durante a crise provocada pela Covid-19.
“O desespero ou a urgência podem nos afastar do método científico”, disse Cohen, hoje professor de medicina, microbiologia e epidemiologia na Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte. “É melhor não trabalhar na base da tentativa e erro ou vai que cola”.
Mas foi exatamente isso o que aconteceu durante a pandemia, quando médicos estavam desesperados para salvar pacientes da maneira que pudessem, enquanto leitos de hospitais, unidades de terapia intensiva e salas de emergência ficavam lotados.
Cohen e outros especialistas dizem que é hora de voltar ao que funciona.
O médico precisava usar toda a sua experiência ao ser chamado para ajudar a liderar a Rede de Ensaios Clínicos para a Prevenção da Covid-19, parte da iniciativa chamada Operação “Warp Speed” durante o governo Trump, que teve continuidade com a equipe de resposta à Covid-19 do presidente Joe Biden, mas sem o mesmo nome.
Cohen coordenou os estudos de anticorpos monoclonais contra a Covid-19, trabalhando em cima de redes de ensaios clínicos existentes para HIV/AIDS. Nas últimas décadas, o FDA, agência que regulamenta o uso de medicamentos nos Estados Unidos, aprovou terapias de anticorpos monoclonais para enfermidades como câncer e doenças autoimunes, assim como para HIV em 2018.
O tratamento – do qual ele foi um dos precursores contra o HIV – envolve encontrar ou desenvolver os anticorpos mais eficazes para combater um patógeno específico e infundi-los nos pacientes.
Se administrados no início do curso da doença, os anticorpos monoclonais podem reduzir drasticamente as hospitalizações e salvar vidas.
“Todos os nossos investimentos em HIV valeram a pena com tudo o que fizemos contra a Covid”, afirmou Cohen. “Até onde sei, os únicos medicamentos que atenuaram a progressão da doença foram os anticorpos monoclonais”.
Entretanto, mesmo alguns deles falharam, à medida que o vírus foi evoluindo para formas que podem escapar dos efeitos de anticorpos altamente direcionados. Os cientistas concordam que os tratamentos que atacam especificamente o coronavírus – os chamados antivirais – são vitais. Para tanto, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (HHS, na sigla em inglês) anunciou um plano de US$ 3,2 bilhões (cerca de R$ 16,2 bilhões) no mês passado, para acelerar o desenvolvimento de antivirais.
Os médicos que se especializam em testar novos medicamentos esperam que o establishment científico dos Estados Unidos se saia melhor desta vez.
Conduzir ensaios maiores e coordenados entre instituições
Em tempos normais, quando a ciência não está correndo contra o tempo para derrotar uma pandemia, o processo para introduzir uma nova terapia na área da saúde normalmente começa com o primeiro teste de medicamentos em animais, depois em seres humanos, e então em ensaios clínicos. Esse processo pode durar uma década – e geralmente leva muito mais.
Quando um medicamento tem um desempenho bom o suficiente para ser testado em seres humanos, o processo também é extremamente lento. Os ensaios clínicos têm três fases, sendo a primeira focada apenas na segurança. A segunda fase visa estudar se o medicamento funciona em um pequeno grupo de pacientes. Esses ensaios geralmente envolvem algumas centenas de participantes e variam de alguns meses a dois anos. Eles são vitais para refinar as questões da pesquisa e aprimorar os protocolos de pesquisa, de acordo com o FDA.
Finalmente, os medicamentos mais promissores entram em um ensaio de fase 3, que envolve centenas ou milhares de pacientes. Esses estudos mais longos geralmente duram de um a quatro anos e podem ser especialmente importantes na identificação de efeitos colaterais raros ou de longo prazo.
Se os benefícios superarem os riscos, a empresa pode enviar um pedido de aprovação do novo medicamento para o FDA.
Os estudos clínicos randomizados e controlados de fase 3, nos quais um grupo de pessoas recebe um medicamento experimental e é comparado a outro grupo que recebe placebo, são considerados o padrão ouro para a pesquisa clínica.
Com o aumento no número de mortos pela Covid-19, no entanto, esse processo lento e metódico que está no cerne da ciência de qualidade se chocou com as demandas de uma emergência sanitária global.
“Você tem que ser justo com o sentimento das pessoas ao tentar salvar aqueles que estavam morrendo, ou ao ver alguém que ficaria muito mal e tentar prevenir a progressão da doença”, disse Cohen. “Os médicos tentam fazer o melhor que podem sob circunstâncias adversas”.
Mas muitos dos ensaios clínicos rápidos desenvolvidos no auge da crise não agregaram muito valor, disse o Dr. David Fajgenbaum, professor assistente da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia.
Ele liderou uma equipe que revesou todos os dados de ensaios clínicos para Covid-19, mais de 29 mil artigos sobre 590 tratamentos até então, e uma de suas frustrações foi perceber que os dados que estavam revisando poderiam ser dispersos: comparar diversos ensaios clínicos pode ser como comparar maçãs com laranjas, com alguns estudos objetivando reduzir a mortalidade e outros buscando prevenir as idas ao pronto-socorro ou reduzir sintomas.
Muitos ensaios eram muito pequenos, testando dezenas de voluntários em vez de milhares, e não havia uma estrutura de comando e controle para direcionar múltiplas instituições a estudar o mesmo medicamento da mesma maneira ao mesmo tempo, de modo a criar dados que tivessem significância estatística.
Escolher os medicamentos certos para grandes ensaios
O progresso estagnou porque instituições individuais realizaram estudos menores com centenas de compostos diferentes, em vez de ter uma entidade organizando os cientistas do país para se concentrarem em uma ou duas dezenas de medicamentos mais promissores que poderiam ter seu uso redirecionado, disse Fajgenbaum.
Poucos ensaios de medicamentos contra a Covid-19 mostraram eficácia significativa, explicou Fajgenbaum, em parte porque a grande maioria dos pacientes melhora por conta própria. Isso é diferente de um vírus como o Ebola, que sem tratamento pode ter uma taxa de mortalidade de até 90%.
“Se for uma doença em que ninguém melhora sem terapia, você realmente não precisa de um grande ensaio”, comentou. “Se um pequeno número de pessoas em seu pequeno estudo melhorar com a terapia, você saberá que a droga funcionou. Mas para uma doença em que a maioria das pessoas melhora sem tratamento, você precisa de um grande ensaio e, idealmente, você trabalha com estudos multicêntricos”.
Embora a Operação “Warp Speed” tenha se concentrado no desenvolvimento de vacinas e anticorpos monoclonais, Fajgenbaum lamentou que não houvesse uma parceria público-privada coordenada de forma semelhante para identificar quais drogas com uso redirecionado se mostravam promissoras para serem testadas em grandes ensaios clínicos.
Uma organização melhor de ensaios poderia ter gerado mais oportunidades para reposicionar outros medicamentos existentes contra o vírus. No entanto, os especialistas citaram dois exemplos de testes internacionais em grande escala que produziram resultados significativos.
O ensaio “Recovery”, promovido pelo Reino Unido, estudou mais de 40 mil participantes em 181 locais. Uma das principais informações, de meados de junho do ano passado, foi que dados de mais de 2 mil pacientes mostraram que um esteroide barato chamado dexametasona poderia reduzir em até um terço a mortalidade em pacientes hospitalizados.
O estudo “Solidarity”, conduzido pela Organização Mundial da Saúde, recrutou 12 mil pacientes em 500 locais e publicou seus primeiros resultados em outubro de 2020. Embora seja um projeto multicêntrico robusto, os quatro tratamentos estudados – o antiviral remdesivir, a hidroxicloroquina, a combinação de drogas para HIV lopinavir/ritonavir e uma droga moduladora do sistema imunológico chamada interferon – mostraram pouco ou nenhum efeito na redução da mortalidade em geral, da necessidade de ventilação, ou da duração do tempo de internação de um paciente.
Agora que a compreensão científica básica de como funciona a Covid-19 melhorou drasticamente no mundo todo, essa mesma estrutura de testes pode ser adaptada a uma classe diferente de terapias, o que pode ser eficaz desta vez, sugeriram alguns dos especialistas que conversaram com a CNN. O “Solidarity” está sendo relançado neste ano, para avaliar três medicamentos de modulação imunológica que podem ajudar a conter a reação exagerada do sistema imunológico, algo que pode piorar a Covid-19.
Um esforço em grande escala do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH, na sigla em inglês) para identificar sistematicamente terapias para ajudar pacientes não hospitalizados, o ensaio ACTIV-6, vai recrutar até 13,5 mil participantes para testar sete medicamentos.
“Esse planejamento não tinha começado até este ano”, contou Fajgenbaum, que trabalhou no comitê do FDA para selecionar quais medicamentos seriam avaliados.
A lista completa do ACTIV-6 ainda não foi divulgada, mas um dos tratamentos na lista até o momento é a ivermectina, um medicamento antiparasitário barato que tem sido usado mundialmente para tratar a oncocercose.
Fajgenbaum espera que este ensaio tenha uma abordagem mais sistemática. “Quais são as drogas que parecem promissoras na literatura, quem deveria fazer um estudo e qual tamanho ele deveria ter? Isso simplesmente não acontece. É puro acaso”, comentou.
Encontrar melhores formas de compartilhar dados
Mesmo sem uma parceria público-privada nacional para descobrir quais drogas funcionam, existem outras maneiras de fazer os cientistas trabalharem para poder entregar melhores resultados, de acordo com o Dr. Harlan Krumholz, professor de cardiologia da Yale School of Medicine.
No fim de abril, ele e seus colegas publicaram um estudo no New England Journal of Medicine observando que o NIH havia gasto cerca de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões) em pesquisas sobre a Covid-19, incluindo diagnósticos e vacinas. No entanto, 92% dos testes de medicamentos para Covid-19 não foram concluídos ou não divulgaram seus dados.
Os autores argumentaram que os princípios da ciência aberta – como processos padrão para compartilhar protocolos e registrar estudos, relatar e disseminar resultados, bem como compartilhar dados e bioespécimes – eram fundamentais para melhorar os resultados. Essas práticas “poderiam ter benefícios para além da pandemia”, escreveram.
Eles pediram ao governo federal que tornasse a adesão a essas normas uma condição para o recebimento de recursos públicos, uma reforma que poderia ajudar a maximizar o retorno do investimento de impostos.
“Muitas das questões que teriam se beneficiado de estudos grandes, rápidos e simples, simplesmente não fomos capazes de executar”, disse Krumholz, que também é diretor do Centro de Pesquisa e Avaliação de Resultados de Yale.
“Muitos dos estudos acabaram sendo insuficientes. Muita coisa não foi reportada. Além disso, uma grande variedade de definições foi utilizada e não havia nenhum protocolo de estudo mestre que encorajasse as pessoas a usarem definições semelhantes, para que estudos e experiências pudessem ser facilmente combinados”, acrescentou.
Enquanto os Estados Unidos apostavam alto nos anticorpos monoclonais, e a reabertura da sociedade dependia da corrida pela vacina, vidas poderiam ter sido salvas nesse meio tempo ao saber quais medicamentos administrar, argumentou Krumholz.
“Esses protocolos de estudo mestre, o desenvolvimento de metas, fazer isso em todo o país, responder a perguntas o mais rápido possível – quer dizer, tudo isso deveria ter feito parte da corrida”, acrescentou. “Mas não havia uma estratégia nacional para tanto”.
“Acho que o que deu certo com as vacinas pode ser uma lição do que poderíamos e deveríamos ter feito com os testes de diagnósticos e tratamentos. Não deveríamos ter nos limitado às vacinas. Havia muito mais pelo que correr”, afirmou. “Poderia ter tido uma Operação “Warp Speed” para diagnósticos e tratamentos”.
Fazer da colaboração o objetivo, em vez da concorrência
Em junho de 2019, Krumholz foi cofundador do servidor de pré-impressão medRxiv, um local onde pesquisadores podiam postar seus estudos e artigos de pesquisa antes de se submeterem ao que costuma ser um longo processo de revisão por pares. A pandemia acelerou seu uso, oferecendo ao mundo o livre acesso à ciência mais recente.
“Pessoas em todo o mundo têm usado isso para postar estudos, alguns deles bons, outros não, mas servidores de pré-impressão permitem uma comunicação científica rápida e, em seguida, críticas e discussões”, explicou. “Às vezes as pessoas se comunicam pelo Twitter e às vezes por coletivas de imprensa em meio a uma pandemia acelerada, mas isso permitiu que as pessoas tivessem um caso mais substantivo para ser avaliado”.
Alistar cidadãos e envolver os pacientes
Krumholz e seus colegas também defenderam a liberação de dados de estudos para os participantes, escrevendo que a transparência poderia ajudar a “reforçar a base de evidências para o tratamento da Covid-19” e dar mais participação aos pacientes que correram o risco de se inscrever no estudo.
Desenvolver ensaios centrados no paciente pode ser especialmente útil no tratamento da “Covid longa”, na qual os pacientes podem passar meses após a infecção inicial com sintomas como fadiga e confusão mental, algo que pode afetar cerca de 10% dos infectados, disse Krumholz.
Investigar as razões desses sintomas contínuos e como tratá-los é a próxima fase crítica para a compreensão total do vírus. Essa busca ilustra princípios sobre como os próprios pacientes podem ser os cientistas, de acordo com Susannah Fox, ex-diretora de tecnologia do HHS e autora de um livro a ser publicado sobre saúde ponto a ponto.
Ela destacou como o grupo de apoio “Body Politic” desenvolveu sua pesquisa colaborativa com os pacientes, que reuniu dados de 3.762 entrevistados sobre como a Covid-19 os afetou ao longo de um período de sete meses.
O estudo – gerado por pacientes especialistas em vez de pesquisadores enclausurados em um laboratório – alertou as autoridades sobre a gravidade e longevidade dos sintomas em pessoas que supostamente se recuperaram, mas não estavam recebendo os tratamentos adequados. O estudo de pré-impressão foi apresentado no blog do Diretor do NIH, Francis Collins, e chamou a atenção da OMS.
“O que acho que podemos aprender com a abordagem do “Body Politic” é que, se você respeitar os participantes, se permitir que as pessoas com a doença desenvolvam a pesquisa, elaborem o registro, elas terão maior probabilidade de participar. Elas estarão mais propensas a continuar e responder a longos questionários, porque é realmente uma questão de respeito”, argumentou Fox.
Encontrar os participantes onde estiverem – mesmo que seja em casa
Conforme as escolas passavam a ministrar aulas online e escritórios optavam pelo teletrabalho durante a pandemia, os cientistas que conduziam ensaios clínicos tiveram de adotar táticas semelhantes para manter os estudos em andamento.
Os lockdowns e o distanciamento físico causaram uma disrupção da ideia de boas práticas clínicas, de acordo com Michael Kurilla, diretor de inovação clínica do Centro Nacional para Avanço de Estudos Translacionais, que faz parte do NIH.
“A Covid-19, em especial, nos deu uma boa oportunidade não apenas de compreender, mas de praticar toda uma categoria de pesquisa remota”, afirmou. “Muitas abordagens inovadoras foram desenvolvidas para fazer esses ensaios funcionarem, e acho que é algo que vai continuar a avançar”.
Kurilla tem trabalhado com a comunidade de pesquisa para determinar quais novas abordagens podem ser aplicadas a situações em que não há uma pandemia.
Isso pode incluir visitas domiciliares de enfermeiras ou outros profissionais de saúde em vez de exigir que pacientes doentes voltem ao hospital, permitir que pacientes relatem sintomas e dados por meio de aplicativos de smartphone, e novas formas de enviar dispositivos aos participantes para que possam retirar amostras de sangue da ponta dos dedos e enviar aos pesquisadores por correio.
E embora a maioria das pesquisas seja realizada nos principais centros médicos, a maior parte dos pacientes de Covid-19 são tratados em hospitais comunitários. Isso significa construir relações mais fortes entre os hospitais regionais menores do NIH, bem como equipá-los com conhecimento técnico e assistência, para que possam reunir todos os recursos necessários para realizar um ensaio, enfatizou.
“Uma das esperanças é que isso não apenas nos prepare melhor para a próxima pandemia, mas também incentive a atividade em áreas que não consideramos muito viáveis por causa da falta de infraestrutura”, acrescentou. “Portanto, trata-se realmente de tentar tornar todo o ecossistema de saúde um pouco mais responsivo às necessidades futuras”.
(Texto traduzido. Leia o original aqui)