CNN Sinais Vitais mostra atuação de médicos na floresta amazônica
Projeto Doutores das Águas leva atendimento em saúde, vacinas e práticas de higiene à população ribeirinha há dez anos
Em um barco transformado em hospital e moradia, o projeto Doutores das Águas leva atendimento em saúde, vacinas e práticas de higiene à população ribeirinha em áreas remotas da Bacia Amazônica.
Quatro médicos e mais 28 profissionais e estudantes de odontologia, farmácia, nutrição e educação viajam em um barco transformado em hospital e partem de Manaus, capital do Amazonas, para uma jornada de 11 dias e mil quilômetros de navegação.
O projeto, que completou dez anos em 2022, é destaque do CNN Sinais Vitais desta semana. A reprise do programa apresentado pelo cardiologista Roberto Kalil vai ao ar neste sábado (11), às 19h15.
Kalil entrevista a médica infectologista Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, uma das voluntárias do projeto. “Foi com um grupo que fazia pesca esportiva na Amazônia e sempre encontrava um ribeirinho com dor que perguntava se havia médico no grupo”, explica.
“Sempre tinha um ou dois que examinava e dava uma medicação, mas isso não está certo, a gente vem até aqui e vê essa coisa exuberante e não faz nada em troca? Então nós vamos estruturar algo, e foi feito o barco hospital de três andares com consultórios médicos, odontológicos, farmácia e que também é nossa moradia”, conta (veja a entrevista acima).
Expedição
A equipe do CNN Sinais Vitais acompanha a expedição de saúde que segue pelo Sul do estado percorrendo nove rios: Negro, Amazonas, Madeira, Madeirinha, Canumã, Sucunduri, Acari, Arariá e Abacaxis para atender cinco povoados ribeirinhos.
“Estou me despedindo da minha mãe, de 90 anos”, diz a médica infectologista Rosana Richtmann após uma chamada de vídeo pelo celular a poucos minutos de toda a tripulação perder o sinal de internet e telefone, ao passo em que a embarcação dos Doutores das Águas vai se afastando da zona urbana de Manaus. “A gente fica meio apreensivo porque perdemos o contato e sempre dá uma angústia”, diz. “O legal é que ela super torce e só deseja boa sorte”.
“Eu me emociono porque para mim é uma lavagem da alma. Fiz trabalho voluntário junto com meu marido e ele faleceu agora em janeiro. Então, já tinha agendado vir para cá”, diz a pediatra Valéria Clemente enquanto repousa o olhar pelo horizonte do rio Negro. “Foi uma surpresa. É uma outra forma da gente fazer as pazes com a natureza, com o mundo e se sentir útil”.
São quase 40 horas de navegação até chegar ao primeiro povoado. O coordenador médico do projeto, Francisco Leão, conta o propósito do grupo: “A gente decidiu fazer esse projeto para melhorar a qualidade de vida dos ribeirinhos para que eles permaneçam e não saiam daqui, porque quem defende a Amazônia são eles, não somos nós, porque eles vivem da Floresta Amazônica sem tentar tomá-la”, diz. “Esse que é o grande problema de quem tenta domar a Amazônia, nunca ninguém conseguiu porque ela é indomável”.
Ao chegar na comunidade de Bom Jardim, os Doutores das Águas são recebidos com uma placa de boas-vindas, o que emociona o grupo. Voadeiras e rabetas, barcos típicos dos ribeirinhos movidos a motor, e canoas multiplicam-se pelo rio Sucunduri vindo de outras comunidades ao redor. Algumas famílias banham seus filhos no rio e outras maquiam-se e vestem a melhor roupa para receber a equipe de saúde. “A única assistência médica que eles têm o ano inteiro somos nós”, diz Richtmann.
Ao desembarcar, a médica é recebida pelo líder comunitário Raimundo de Souza Dias, que já se apressa para mostrar o posto de saúde de madeira construído e doado pelos Doutores das Águas em expedições anteriores. “Não funciona faz anos porque não tem agente de saúde”, conta Dias. “E se ficar doente? Faz como?”, questiona Richtmann. “Faz um chá de cidreira”.
“E se tiver picada de cobra, tem soro?”, indaga a médica. “Não tem. Está tudo meio abandonado”. O povoado também não tem energia. Os ribeirinhos bebem água do rio muitas vezes sem conseguir filtrar com cloro e sofrem, sobretudo, de malária e verminose.
Cuidado em saúde
Vindo de outro povoado, o agricultor Calisto Pantoja dos Santos, de 64 anos, navegara durante seis horas em seu barco-moradia para receber o atendimento. Ele traz a mulher, de 68 anos, a filha e dois netos. “Eu não vou a um médico há dois anos”, conta ele que se queixa de tontura e dor na perna esquerda.
Na consulta, os médicos identificam um sopro no coração. Ele é indicado a fazer outros exames e uma medicação é prescrita para a dor na perna. Ele também é vacinado contra gripe e tétano, os imunizantes da Covid-19 estavam em dia. Por fim, ganha ainda uma prótese dentária para conseguir se alimentar melhor. Seus netos recebem remédios para verme e um deles tem duas verrugas virais removidas pelo cirurgião-plástico Marcelo de Fiore de Castro Oliveira.
“A gente montou uma sala de cirurgia no barco para realizar pequenos procedimentos”, explica Oliveira. “Os atendimentos mais frequentes são lesões de pele, lesões infectadas, ferimento por faca no exercício da atividade e pequenos tumores de pele”.
No quarto dia de expedição, os Doutores das Águas desembarcam no povoado de Ariquemes. A agricultora e mãe de cinco meninas e um menino, Luana Prado de Oliveira, de 30 anos, se queixa de fortes dores de cabeça e cólicas. Ela também está preocupada com a filha de 15 anos de idade que tem dores no estômago. Mesmo assim ela teve forças para vestir a melhor roupa nela e nos filhos, e se maquiar para seguir para fila de atendimento onde aguardavam mais outras duzentas pessoas. “A gente fica animado e se arruma, é um evento, para receber bem as pessoas”, diz com um sorriso no rosto.
Para a mãe, os especialistas entregam remédios para dor. Para a filha de 15 anos, uma medicação para verminose. Também é identificado que ela não está se alimentando direito e recebe orientação.
Luana se recorda de quando ela, o marido e a filha mais velha adoeceram de Covid-19 e ficaram sem atendimento. De Ariquemes até Manaus são pelo menos três dias de viagem. “Quase que eu morro”, conta.
A família de Luana mora em uma casa de madeira sem paredes, sustentada apenas por vigas e um teto. Cozinhando com lenha no chão, são preparadas partes de uma anta, caçada recentemente. O casebre, também de madeira, onde fica instalado o gerador de luz da comunidade, há meses quebrado, vira o dormitório de suas filhas com redes para dormir.
“Sou feliz porque devido a gente morar nesse interiorzinho, é muito difícil né, mas graças a Deus, a gente tem mais saúde aqui, pois na cidade é muito perigoso para as crianças devido a bandidagem, drogas e prostituição”.
No sexto dia de expedição, em plena navegação pelo rio Acari, Rosana Richtmann é surpreendida com um caso de emergência quando vai de voadeira, acoplada ao barco dos Doutores das Águas, buscar peixe para o jantar. Uma pessoa consegue explicar, por meio de sinais e gestos, que levou uma picada de aranha. “Impossível ele ter atendimento em qualquer outro lugar”, diz Richtmann. “Aquela coisa que a gente fala: na hora certa, no lugar certo. Fui buscar o peixe, nunca imaginei que ia encontrar um paciente precisando de um atendimento de uma certa urgência”.
O ribeirinho é levado para o consultório dentro do barco dos Doutores das Águas e recebe uma medicação injetável para aliviar a dor e barrar a repercussão da picada. A reportagem o levou de volta de voadeira e em troca recebeu dos ribeirinhos um enorme balde de peixes em agradecimento.
Ao final da expedição, os Doutores das Águas fizeram 820 atendimentos médicos, 796 atendimentos odontológicos, entregaram 122 próteses e vacinaram 448 pessoas, mais da metade com doses contra Covid-19.
“Cada vez que a gente ouve um ribeirinho que fala do coração, que você sente realmente que ele fala do coração, de que se não é a nossa presença aqui, eles não têm nada, eles não têm assistência, e que Deus que mandou a gente para cá, isso paga qualquer viagem”, diz Richtmann.