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    “Clubes de gênios”: menino brasileiro traz debate sobre cuidados com superdotados

    Gustavo Saldanha, de 8 anos, é a pessoa mais jovem do Brasil aceita na Mensa International, que tem cerca de 100 mil membros no mundo

    Amanda AndradeKatia Brembatticolaboração para a CNN

    O recente feito de um garoto de 8 anos – o mais jovem brasileiro a conquistar espaço na mais famosa sociedade de alto QI (Quociente de Inteligência) – trouxe à tona debates em torno do processo para entrar no grupo de pessoas superdotadas.

    Para ingressar na Mensa International, também conhecida como “clube dos gênios”, Gustavo Saldanha passou por cinco dias de avaliações e concluiu o teste WAIS-III, que é destinado a adultos, com 99% de acertos.

    Há várias dimensões de inteligência para serem medidas

    Mas não há apenas uma dimensão de inteligência, tampouco uma forma de medi-la. Atualmente há uma série de instrumentos que se propõem a medir os diversos aspectos cognitivos humanos que constituem a inteligência.

    As avaliações multidimensionais são um contraponto aos testes de QI, que ficaram no passado.

    “Lá atrás, quando os testes começaram, eles tinham essa característica de focar apenas na resolução de problemas. Com o passar do tempo, foi possível observar que esse tipo de instrumento não é o único para verificar a inteligência, que é muito mais ampla”, relata a psicóloga Samarah Perszel de Freitas, que ajudou a padronizar o teste de QI WISC-IV, considerado um dos mais multidimensionais, no Brasil. Ela também conduz avaliações da Mensa no Paraná.

    O WAIS-III é um teste mais rápido, usado para rastreio de habilidades e de contextos específicos, indicado para adultos.

    Já o WISC-IV é mais complexo e aprofundado, demorando mais e analisando mais habilidades, geralmente recomendado para pessoas da faixa de 6 a 16 anos. Os custos para sua realização dependem do número de sessões e de cada avaliador, podendo chegar a R$ 6 mil.

    “Há avaliações de QI muito completas e complexas, que abrangem memória, raciocínio lógico, atenção, comunicação verbal e velocidade de decodificação de informações e de processamento de dados”, conta a neuropsicóloga Leninha Wagner, especialista em testes de QI.

    Esses testes são padronizados e passam por revisões periódicas, mas apesar de seguirem normativas internacionais, são adaptados à realidade de cada país.

    Quais são as habilidades e competências medidas?

     Em geral, as avaliações têm foco na chamada inteligência matricial: aquela que consiste na capacidade de decodificar as mais variadas espécies de informação e que se desdobra nos diferentes domínios de conhecimento humano.

    “Uma pessoa superdotada tem alto grau de inteligência matricial. É diferente, por exemplo, de alguém muito talentoso em uma área específica da inteligência humana, como musical, linguística, matemática, espacial, intrapessoal, interpessoal, esportiva ou emocional”, enumera Leninha.

    O neurocientista Fabiano de Abreu, que também é integrante do ‘clube de gênios’, afirma que essa inteligência matricial pode, por um lado, ser estimulada ou, por outro, sofrer interferências negativas.

    “A inteligência lógica é a que desenvolve todas as demais, a que orquestra tudo, e ela está relacionada à região frontal do cérebro. Há estudos que mostram que, caso uma criança passe por traumas ou situações de violência, pode haver uma influência da região límbica sobre a frontal, prejudicando o seu desenvolvimento pleno”, comenta.

    Os cuidados com superdotados

    Por essa razão, a saúde emocional tem um papel fundamental ao longo do crescimento de uma criança superdotada.

    “É necessário haver acompanhamento e ter cuidado com o aspecto emocional. Um menino como o Gustavo, que tem tanto potencial, se tiver os estímulos corretos, pode chegar muito longe”, diz Leninha.

    Essas questões são tratadas no livro Processos afetivos e cognitivos de superdotados e talentosos, organizado por Samarah e um grupo de psicólogos.

    Entre os cuidados necessários está o entendimento de que as crianças superdotadas não devem ser alvo de cobranças exacerbadas relativas ao seu desempenho.

    “Tenho uma preocupação com o nível de exigência, com a imposição de expectativas. É preciso, sim, valorizá-las, mas não as tratar como diferentes”, argumenta a psicóloga. Para evitar essas cobranças e rótulos, ela recomenda cautela no uso da palavra “gênio”.

    O pensamento dos superdotados

    São vários os fatores que indicam a superdotação: além do alto rendimento, segundo Samarah, outros critérios são a criatividade e a motivação intrínseca — uma determinação incessante para aprender algo, por mais desafiador que seja. Além disso, os caminhos percorridos pelo raciocínio de alguém com altas habilidades também podem ser diferentes do usual.

    “A maioria das pessoas associa as informações e as transforma em uma informação específica [no que é chamado de pensamento convergente]. Pessoas com altas habilidades têm não apenas o pensamento convergente, mas o pensamento divergente. Ou seja, elas têm várias informações e as transformam em algo diferente do que todo mundo criou”, afirma.

    A psicóloga acredita que palavra superdotação ajuda a criar ideias equivocadas, normalmente associada a super-humanos. Ela prefere a expressão usada em Portugal: sobredotação.

    Para evitar o reforço de estereótipos, Samarah destaca que diversos estudos foram realizados e nenhum indicou predisposição de problemas emocionais maior em pessoas superdotadas.

    Contudo, alguns aspectos externos, como a pressão social, podem levar ao desenvolvimento de componentes de ansiedade, por exemplo.

    O que se faz no ‘clube de gênios’

    Embora seja amplamente difundido o estereótipo do superdotado que tem dificuldade de interação com as pessoas, há muitos cuja área de maior destaque é, precisamente, a da comunicação e das relações sociais.

    Ainda assim, é possível que isoladas, entediadas ou desinteressadas pelo mundo ao pessoas de alto QI se sintam sem ninguém a seu redor. Isso porque, de acordo com Fabiano de Abreu, os superdotados têm necessidade constante de aprender e de se sentirem desafiados, e seus interesses, portanto, se voltam a esses objetivos. É por isso que os ‘clubes de gênios’ podem ser importantes estímulos para esse grupo.

    “Gosto de estar na Mensa Internacional para poder me relacionar com pessoas com condições similares, com afinidades. Isso é importantíssimo. Nós interagimos, ajudamos uns aos outros, participamos de campeonatos, jogos, e temos oportunidades de fazer cursos e ganhar bolsas”, conta Abreu.

    “É essencial ter pessoas com quem debater, em uma conversa que nos desafie. Nós precisamos sentir essa dificuldade.” Há uma estimativa de que 2% da população mundial tenha superdotação. No caso da Mensa International, o grupo seleto é de 100 mil membros.

    Por que testar a inteligência

    Ser considerado inteligente é um desejo intrínseco à natureza humana, destaca Abreu. Presume-se que ser inteligente é sinônimo de ser melhor e, por esse motivo, temos a necessidade de testar (e comparar) nossa inteligência.

    Ele rejeita a escala numérica, comumente associada a testes de QI, e prefere usar o percentual de acertos nas avaliações, considerando que o desvio-padrão costuma ter um impacto muito grande no resultado.

    Para o neuropsicólogo, no entanto, um QI alto não equivale à superioridade em relação aos demais.

    “Temos que pensar a inteligência como algo cultural dentro de uma sociedade. Em uma mesa de bar, por exemplo, inteligente é quem fala sobre mais assuntos, quem sabe ouvir, sabe argumentar, sabe a hora certa de se manifestar”, declara.

    “Você pode não ter um QI elevado e ser um excelente jogador de futebol, jornalista, cientista ou engenheiro. O tamanho do seu esforço é que diz quem você é.”

    As expectativas familiares

    A neurofisiologista e neuropediatra Ana Crippa se acostumou a ver chegar ao consultório mães e pais empolgados com a possibilidade de diagnóstico de superdotação, principalmente porque projetam futuros maravilhosos para os filhos.

    “Mas eles não se dão conta de que, muitas vezes, o diagnóstico representa sofrimentos”. Além das cobranças, há as questões emocionais, principalmente se não houver acompanhamento.

    “Ninguém entende essa criança. Ela não acha pares. Ela quer falar sobre Van Gogh, por exemplo, e não tem com quem falar”, comenta, acrescentando que os adultos ficam impressionados e começam a testar informalmente, causando uma série de desconfortos.

    Na outra ponta, a médica percebe a tristeza com o diagnóstico de algum transtorno, como déficit de atenção, como se fosse um rótulo de que a criança não é inteligente. “Não é nada disso”, dispara.

    Para ela, também é preciso diferenciar o que costuma ser enxergado como uma manifestação de inteligência.

    Por exemplo, há crianças do espectro autista que sabem muito sobre determinados temas de interesse, que são vistas, aos olhos leigos, como superdotadas.

    Quando há o resultado de um teste de inteligência cognitiva, a equipe multidisciplinar precisa analisar outros aspectos da criança, principalmente o emocional. “O desenvolvimento infantil precisa ser respeitado”, comenta, destacando que brincar, por exemplo, é essencial.

    A criança superdotada, com problemas emocionais, cresceu e decidiu ajudar aos outros

    Damião Silva, hoje com 37 anos, tem a clara memória das dores que enfrentou por ser uma criança superdotada, na década de 1990 – uma época em que pouco se falava disso no ambiente escolar e não havia qualquer tipo de suporte.

    Ele só foi diagnosticado aos 18 anos, depois de passar por uma série de problemas. “As pessoas não me entendiam”, diz.

    Aprendeu a ler sozinho, com quatro anos, mas era visto apenas como uma criança que aprendia muito rápido.

    Na convivência na escola, os desafios começaram a aparecer. “Eu tinha as melhores notas, mas poucos amigos”, conta. Também viveu episódios de bullying e de desconfiança. “Eu fui ficando triste”, relata.

    Como se entediava facilmente com o conteúdo, acabou “cortando” dois anos e sendo colocado numa turma de ensino médio. “Foi horrível, eu não tinha mais a atenção dos professores”, destaca.

    Quando passou a compreender a sua condição, Silva decidiu que queria ajudar outras pessoas a ter um diagnóstico precoce, principalmente para fornecer ajuda emocional. Estudou Psicologia, criou o perfil no Instagram @vivendosuperdotação e hoje trabalha com a avaliação de pessoas com altas habilidades e outras questões relacionadas à aprendizagem. Inclusive aplica testes que não teve a oportunidade de fazer no passado.

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