Capacitismo: entenda o que é e como evitar preconceito disfarçado de brincadeira
Ativistas se posicionam nas redes sociais contra falas e atitudes ofensivas direcionadas a pessoas com deficiência, mostrando a necessidade de mudanças de vocabulário
Falar que alguém é cego por não te cumprimentar na rua ou que deu mancada por cometer um erro são exemplos clássicos de capacitismo, o preconceito contra pessoas com deficiência. O termo, que vem da tradução do inglês ‘Ableism’, significa destratar ou ofender uma pessoa por sua deficiência.
Esse debate, que vem ganhado espaço nas redes sociais, está ainda mais em evidência agora, durante os Jogos Paralímpicos de Tóquio, causando reflexões sobre o assunto. Graças a ação de cientistas, ativistas e influenciadores que mostram que frases e atitudes como estas, disfarçadas de brincadeiras, naturalizam a ideia de inadequação de pessoas com deficiência e são exemplos de preconceito estrutural, semelhante ao racismo e ao machismo.
“O capacitismo é a ideia de que pessoas com deficiência são inferiores àquelas sem deficiência, tratadas como anormais, incapazes, em comparação com um referencial definido como perfeito”, diz Lau Patrón, 32, escritora e cofundadora da empresa PONTE Educação para a Diversidade, onde presta mentoria para empresas sobre inclusão.
Luta pela diversidade
Patrón tem um filho com uma doença rara, o que a fez mergulhar nos estudos sobre pessoas com deficiência e hoje ser referência em capacitismo. Ela conta que o termo passou a ser estudado no Brasil somente no começo dos anos 2000, dentro de universidades, com base na literatura já estruturada sobre o assunto dos Estados Unidos e Inglaterra.
Em 2013, seu filho João, então com 1 ano e 8 meses, foi diagnosticado com uma doença autoimune rara e sofreu um AVC, que o tornou cadeirante. Na ocasião, a publicitária sentiu que precisava estudar para conviver com a nova realidade.
Do dia para a noite, meu filho passou a fazer parte de duas populações minorizadas muito invisibilizadas: 13 milhões de brasileiros têm doenças raras, e 45 milhões têm algum tipo de deficiência
Lau Patrón
Patrón escreveu o livro “71 Leões”, no qual descreve toda a sua jornada de conhecimento, até sua transformação em uma ativista contra o capacitismo. Ela diz que rever medos e excesso de cuidado foi essencial para não atrapalhar o desenvolvimento do filho. “Precisava ser ponte, não obstáculo para ele”, afirma.
Hoje com 9 anos, João está na quarta série, lendo e escrevendo. “Ele é fã do Emicida e do Gilberto Gil, anda de skate adaptado, ama esportes em geral, sonha em conhecer o mundo todo e ser um atleta paralímpico”, conta.
Influenciadores da inclusão
Foi lendo o que Patrón escrevia sobre capacitismo, em meados de 2017, que o estudante de pedagogia Ivan Baron, 23, conheceu o termo e se embasou para fazer seus esquetes sobre o assunto no Instagram. De forma bem-humorada, Baron conseguiu colocar o capacitismo na pauta de programas de televisão e vem angariando seguidores com seus vídeos debochados.
O potiguar discute o capacitismo pela perspectiva pedagógica e própria, já que tem paralisia cerebral e anda com o auxílio de uma bengala. Segundo ele, o tema não é engraçado, mas o tom adotado tem o objetivo de chamar atenção para o preconceito contra pessoas com deficiência.
O assunto não é leve, é muito violento. Precisamos abordá-lo com afeto, com deboche, com ironia para que as pessoas o reconheçam. Mas claro que também há os momentos ‘fala sério’, quando não podemos pegar leve
Ivan Baron
Em vídeos curtos no Instagram, Baron aborda frases capacitistas comuns (Leia no quadro abaixo), demonstra como elas são carregadas de preconceito e oferece alternativas que não sejam ofensivas. Em um esquete, ele debocha do fato de pessoas com deficiência serem chamadas de especiais e começa a pedir por vantagens por causa da alcunha.
Nos vídeos, quase sempre ele tem a companhia da amiga ‘Judite’, uma mulher que faz o papel de capacitista, que destila as frases preconceituosas. “Eu posso ser especial, mas não pela minha paralisia, e sim pelas minhas atitudes. Temos que parar de achar que toda pessoa com deficiência é boazinha, um anjo, ou inútil”, diz Baron.
O influenciador considera seu trabalho nas redes sociais importante para a popularização do termo e para o entendimento de que o capacitismo traz sérias consequências para a vida de pessoas com deficiência. “É poder dar visibilidade às pessoas com deficiência em todas as formas que elas quiserem se expressar”, diz.
A publicitária Fatine Oliveira, 35, estudou a representação de mulheres com deficiência no Instagram em sua tese de mestrado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo ela, que é cadeirante e autora do blog Disbuga, o fato de haver mulheres com deficiência abordando diferentes temas e demonstrando suas rotinas de beleza e de família, ajuda a evitar o capacitismo, porque muda o olhar sobre a pessoa além de sua condição.
As mulheres com deficiência são representadas como pacientes, não como pessoas independentes, que também merecem afeto ou ter um relacionamento. Dificilmente você vai ver uma cadeirante na propaganda de Dia das Mães
Fatine Oliveira
Os novos perfis de mulheres com deficiência estão ajudando a mudar este padrão. “Elas mostram que há possibilidade de atração a partir dos nossos corpos, porque a deficiência não define caráter, ou qualquer outra coisa. Somos todos sujeitos com diversas identidades”, enfatiza.
Preconceito estrutural
Patrón diz que, apesar do termo capacitismo ser recente, o preconceito contra pessoas com deficiência vem de muito antes e está tão enraizado na sociedade, que se torna quase invisível. Isso acontece, em parte, porque o capacitismo geralmente é encarado como consequência de atitudes individuais, não como uma forma de preconceito estrutural. Mudar isso é literalmente mexer na estrutura da sociedade, diz a escritora.
Segundo ela, o preconceito com a pessoa com deficiência remonta à Grécia Antiga, quando se instaurou o consciente coletivo da busca pelo que foi definido como belo, perfeito e forte. E, em nome dessa busca, o extermínio de qualquer outro corpo.
“Lá se examinavam os bebês quando nasciam, contando os dedos, medindo os membros do corpo, a cabeça. Se estivesse tudo no lugar “certo”, o bebê sobrevivia. Se não, a sentença era a morte”, conta.
A prática grega pode ser representada nos dias de hoje na contagem de dedos e membros de recém-nascidos e na crença da benção do bebê perfeito, explica Patrón.
“Não tem problema nenhum desejar um filho com saúde, mas tem problema aquilo que a gente entende sobre o que é um filho com saúde. Deficiência é uma característica, uma das várias que uma pessoa tem, não é doença”, pondera.
Ela lembra também dos diferentes rumos da história que envolvem experimentos, relatos de abandono ou extermínio de pessoas que não eram consideradas ‘perfeitas’, costumeiramente enviadas para manicômios, mortas pela Inquisição ou ridicularizadas em espetáculos grotescos.
“Todas essas são construções filosóficas, políticas e pseudocientíficas que hierarquizaram o valor humano e criaram uma ideia de que pessoas com deficiência se encaixam em uma categoria diferente”.
Consequências do capacitismo
Segundo Oliveira, o capacitismo é um tipo de opressão que define os sujeitos pela sua capacidade. Quem está fora do padrão terá menos ou nenhuma oportunidade dependendo do cenário. Apesar de existir uma lei de cotas para a inclusão no mercado de trabalho, o total de pessoas com deficiência nas empresas ainda é bem menor do que deveria, segundo a publicitária.
“Está embutido no capacitismo que sujeitos capazes dentro da nossa sociedade são os que têm condições de trabalho, de gerar uma família, de se locomover sem um instrumento, sem cadeira de rodas, sem prótese”, afirma.
Para Patrón, o capacitismo envolve ainda a exclusão das pessoas com deficiência da vida social, impedindo-as de ter ou manter relacionamentos.
“Sempre pergunto nas minhas aulas: quantos amigos com deficiência vocês têm? Para quantas pessoas com deficiência você deseja feliz natal ou dá presentes de aniversário? Por quantas você já se apaixonou? Quantas você segue como alguém que realmente admira pelo trabalho/talento? Com quantas você trabalha ou gostaria de trabalhar?”
A falta de acessibilidade adequada ou impedimento do acesso, como a polêmica que envolve escolas separadas para pessoas com deficiência, são outros exemplos de exclusão, segundo a escritora.
Quando a cadeira destinada a uma pessoa cadeirante no cinema é aquela que ninguém quer sentar, isso é uma mensagem; quando as escolas dizem não estarem preparadas, quando os lugares não se movimentam para serem acessíveis, tudo isso são mensagens
Lau Patrón
Ainda segundo Patrón, mulheres com deficiência também estão mais vulneráveis à violência doméstica e sexual e, segundo estudos, seriam as mulheres mais violentadas do país. “De 40 a 68% das garotas com deficiência vão sofrer violência sexual antes dos 18 anos. Pessoas com deficiência com ensino superior são casos raros no país, apenas 6%, sem instrução nenhuma, ou seja, nem o fundamental completo, são 61,13%, segundo dados cruzados”.
Como combater o capacitismo?
Falar sobre o assunto, usando ou não as redes sociais, é o caminho para combater o capacitismo e suas consequências, segundo os ativistas que conversaram com a CNN.
Oliveira conta que, em 2016, um grupo de pessoas com deficiência criou a campanha “É Capacitismo Quando”, com a hashtag #ecapacitismoquando, como forma de buscar depoimentos de quem sofria com o problema. A iniciativa reunião posturas e situações do dia a dia que ajudaram a entender melhor sobre o conceito de capacitismo e falar mais abertamente sobre o tema.
Baron tenta seguir um caminho semelhante e, por meio das redes sociais, ajudar na transformação da sociedade. Dentro do universo de seus seguidores, ele diz já perceber uma mudança de olhar, mas ‘quando sai da bolha’, percebe que ainda há muito a ser feito para que as pessoas com deficiência tenham mais oportunidades e sofram menos preconceito.
“É muito bom ver uma transformação acontecendo, mas ainda temos que continuar lutando por mais acessibilidade, por um SUS que possa atender nossas necessidades, por uma educação inclusiva”, diz.