Bancos de sangue vivem pior situação da pandemia, alertam especialistas
O sucesso do sistema de saúde pública do Brasil, um dos maiores e mais complexos do mundo, depende de uma série de fatores, insumos, ofertas e demandas. O Brasil assistiu nesta semana à falta de oxigênio em hospitais públicos da cidade de Manaus, diante da disparada de casos da pandemia da Covid-19.
Especialistas ouvidos pela CNN alertam para a situação crítica de outro insumo essencial para o bom funcionamento da saúde pública no Brasil: sangue.
“Estamos vivendo o pior momento para a balança de sangue, entre doações e consumo, desde março. No início da pandemia, o desequilíbrio não foi tão grande porque tratamentos, cirurgias eletivas e outras demandas estavam suspensos. Agora, isso se agravou”, diz Cynthia Arrais, médica hemoterapeuta da Fundação Pró-Sangue, ligada ao governo de São Paulo.
Além da retomada dos tratamentos eletivos, a médica enfatiza o aumento no número de casos da Covid-19 e as festas de final de ano e período de férias escolares, que tradicionalmente reduzem ainda mais o volume de doações.
Entre janeiro e novembro de 2020, o Brasil realizou 2.656.660 coletas de sangue, segundo os dados mais recentes do sistema DataSUS. É um número 9,88% menor do que no mesmo período de 2019, mantendo tendência antecipada pela CNN.
Apesar de terem voltado a subir nos últimos meses, de 201 mil em maio para 250 mil em novembro, as doações ainda não superaram em nenhum mês a média de 2019, de cerca de 268 mil contribuições mensais.
A Fundação Pró-Sangue não é a única, mas é a principal rede de coleta de doações do maior estado brasileiro. Segundo a médica Cynthia Arrais, na rede da entidade os tipos sanguíneos em situação mais crítica de estoque são o B e, principalmente, o tipo O.
“Estamos em situação crítica para o sangue O, que é o utilizado em qualquer situação emergencial em que não há tempo de fazer a tipagem, porque qualquer pessoa pode receber”, explica Cynthia.
Em relação a esses dois tipos sanguíneos, a Pró-Sangue está operando neste momento “com o que entra, sai”. Ou seja, tão logo são coletadas, as doações são rapidamente direcionadas às unidades de saúde de destino.
Caso a situação se agrave, explica a médica, o protocolo da Pró-Sangue determina que a primeira atitude seja contatar os serviços de saúde e cancelar o fornecimento de sangue para cirurgias eletivas, os procedimentos agendados previamente e não-emergenciais.
A média Cynthia Arrais, no entanto, explica que essa é uma medida extrema, uma vez que gera uma “demanda represada” e o atraso na realização de determinadas cirurgias pode resultar no agravamento do quadro médico de pacientes.
Procurado sobre o assunto, o Ministério da Saúde informa que “é importante ressaltar que não houve desabastecimento em nenhum hemocentro do Brasil”. A pasta atribui ainda à pandemia e a redução da circulação de pessoas a diminuição nas doações de sangue coletadas em 2020.
Sistema de saúde pode travar
“A falta de sangue simplesmente trava todo o sistema de saúde”, resume José Comenalli Marques Júnior, vice-presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).
Segundo o especialista, a pandemia só agravou uma situação que já era desfavorável. As doações de sangue caem no Brasil desde 2016, por outro lado a demanda cresce de forma sustentável — e por um bom motivo.
“Os recursos para aumentar a vida estão aumentando e isso é ótimo. A ciência avança e nós temos a disposição cada vez mais tipos diferentes de procedimento. O outro lado disso é que isso também aumenta ainda mais a necessidade de abastecimento”, explica Comenalli.
“Se a expectativa de vida está aumentando, e está, em algum momento, por algum motivo, essas pessoas vão receber sangue, seja para uma cirurgia ou para um tratamento. Temos que estar preparados e essa balança está bem desequilibrada”, corrobora Cynthia Arrais, da Pró-Sangue.
Segundo o Ministério da Saúde, o consumo de sangue é “diário e contínuo” e abarca, por exemplo, anemias crônicas, cirurgias de urgências, acidentes que causam hemorragias, complicações da dengue, febre amarela, tratamento de câncer e outras doenças graves.
Exemplificando a correlação entre avanços da ciência e necessidade ainda maior de doações de sangue, o médico José Comenalli, da ABHH, cita o tratamento de pacientes com leucemia, que se sofisticou nos últimos anos.
Um único paciente internado para tratamento da leucemia necessita, explica o médico, de uma unidade de sangue para cada 10 quilos do seu peso corporal por dia, sendo cada unidade de um doador diferente.
Nesse cenário, um paciente de 70 quilos internado por dez dias, por exemplo, necessita da doação de 70 pessoas diferentes para que seu tratamento possa prosseguir.
Abastecimento contínuo
A maior dificuldade para a manutenção dos estoques de sangue é que o insumo não é algo que a sociedade necessita apenas pontualmente, o que difere as campanhas para doação de outras, como as que pedem a doação de agasalhos e roupas de frio no inverno, por exemplo.
O uso de sangue no sistema de saúde é, como frisou o governo federal, diário e contínuo. No entanto, a dificuldade é que o sangue doado tem prazo de validade — portanto, uma campanha pontual intensa não supre a necessidade, é necessário o estímulo para doações constantes e periódicas.
“Não adianta ter 200 milhões de doações em uma semana. Você não vai conseguir usar quase nada e na semana seguinte não tem ninguém para doar porque tem que esperar três meses. A logística e a conscientização precisam ser pensadas para garantir abastecimento constante”, diz José Comenalli, da ABHH.
O que fazer
O Ministério da Saúde informa, em nota, que a taxa de doação voluntária de sangue da população brasileira está em 1,6%, o que a coloca dentro dos padrões defendidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O governo federal diz ainda ter investido R$ 3,5 bilhões, entre 2019 e 2020, na rede de sangue e hemoderivados do Brasil.
Para os especialistas ouvidos pela reportagem da CNN, no entanto, a atual taxa percentual de doadores do Brasil não é suficiente para garantir a segurança dos estoques. “Precisamos buscar mais do que o equilíbrio, precisamos poder ter uma reserva de contingência para emergências, como acidentes, e isso hoje não é plenamente possível”, diz Cynthia Arrais, da Pró-Sangue.
Desde o início da pandemia da Covid-19, a Pró-Sangue, assim como os diversos hemocentros pelo país, intensificaram as já rígidas medidas de segurança e controle para garantir a proteção de doadores e funcionários dos bancos de sangue.
No entanto, uma das medidas adotadas em São Paulo, o agendamento, abriu os olhos para um outro aspecto do problema: a dificuldade que potenciais voluntários encontram em poder doar durante a semana, nos dias úteis, apesar da legislação prever a possibilidade de dispensa do trabalho para a contribuição.
Ambos os especialistas defendem a conscientização frequente e o enfoque na educação para intensificar uma cultura de doação de sangue. Uma das saídas para a situação citada acima, afirma Cynthia Arrais, são as coletas externas, que podem ser feitas em entidades que tenham estrutura para receber a Pró-Sangue, como associações, empresas e igrejas.
Como doar
Os critérios são simples. É necessário ter entre 16 e 69 anos, pesar no mínimo 50 quilos. No dia da doação, estar alimentado, evitar alimentos gordurosos e ter dormido ao menos seis das últimas 24 horas. É necessário apresentar documento oficial com foto.
Homens podem doar novamente após dois meses da doação anterior, em um total de até quatro vezes por ano. Para mulheres, esse intervalo é de até três vezes por ano, com uma doação a cada no mínimo três meses.
Não podem doar gestantes, mães que estão amamentando, pessoas que tiveram quadro de hepatite após os 11 anos de idade e quem já utilizou drogas ilícitas injetáveis. São critérios de eliminação também evidências clínicas ou laboratoriais de doenças transmissíveis pelo sangue, como hepatites B e C, Aids, HTLV 1 e 2 e doença de Chagas.
Importante lembrar que, obedecendo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a Anvisa retirou em julho de 2020 a restrição da doação de homens gays. Até então, homens que tivessem se relacionado sexualmente com outros homens num prazo de 12 meses eram proibidos de doar. O STF julgou a medida discriminatória e, portanto, inconstitucional.
O que segue vigorando, e isso é averiguado durante a entrevista padrão realizada no momento da doação, é a restrição para quem se submeteu a situações de “risco acrescido para doenças transmissíveis pelo sangue”.
Entram nessa característica quem pratica sexo não seguro ou tem vários parceiros, independentemente do gênero, ser usuário de drogas injetáveis e inalatórias ou ser parceiro sexual de portadores de Aids ou de hepatite.
Para doar, interessados devem procurar o hemocentro do seu estado. Em São Paulo, o agendamento pode ser feito direto pelo site da Fundação Pró-Sangue.
A pandemia impôs algumas restrições adicionais, além das já existentes. Pessoas infectadas pela Covid-19 devem guardar pelo menos 30 dias depois da completa recuperação para fazerem a doação. Pessoas com sintomas gripais devem aguardar 7 dias.