App do ministério recomendava cloroquina e termo assinado por paciente com Covid
À CPI, Pazuello negou que plataforma da Saúde tenha entrado em funcionamento. Em nota, CFM disse ter alertado de que não havia recomendação científica
Documentos obtidos pela CNN via Lei de Acesso à Informação mostram que o aplicativo TrateCov, lançado em janeiro pelo Ministério da Saúde para ajudar médicos a diagnosticar pessoas com Covid-19, previa que os pacientes assumissem o risco de “eventos adversos” caso aceitassem o chamado tratamento precoce com cloroquina e ivermectina.
Os medicamentos, no entanto, não têm eficácia comprovada contra o coronavírus e são indicados para tratar, respectivamente, malária, infecções causadas por parasitas e outras doenças. O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Na primeira parte de seu depoimento à CPI da Pandemia, nesta quarta-feira (19), o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que foi a secretária da pasta Mayra Pinheiro a responsável pela criação da plataforma e negou que a ferramenta tenha entrado em funcionamento.
No entanto, registros do ministério e do governo do Amazonas mostram imagens da solenidade de lançamento e indicam, por exemplo, que, no dia 14 de janeiro, a pasta celebrou a adesão de 342 médicos no sistema, àquela altura já em funcionamento.
O manual obtido pela CNN mostra, de forma clara, como, em janeiro de 2021, o aplicativo enfatizava e recomendava o “tratamento precoce” com remédios que não têm eficácia comprovada contra a Covid-19.
Caso o médico concordasse em prescrever cloroquina, azitromicina e ivermectina após examinar o paciente e preencher os dados solicitados pela plataforma, esta apresentaria um “termo de ciência e consentimento”, elaborado segundo resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) do dia 16 de abril de 2020.
“Aceito receber o tratamento precoce da COVID-19 e correr eventuais riscos de eventos adversos relacionados aos medicamentos que são prescritos”, diz trecho do documento.
Após ficar 10 dias no ar, a ferramenta foi desativada no dia 21 de janeiro. Na ocasião, o MS informou que o sistema fora “invadido e ativado indevidamente”.
Em nota à CNN, o Conselho Federal de Medicina (CFM) voltou a informar, como em janeiro, que alertou o Ministério da Saúde sobre “inconstâncias” no aplicativo. Entre elas o fato de que a plataforma “assegurava a validação científica a drogas que não contam com esse reconhecimento internacional”.
O aplicativo foi lançado pelo ex-ministro Eduardo Pazuello, no dia 11 de janeiro, durante uma solenidade em Manaus, capital do Amazonas, no auge da crise provocada pela Covid-19. Fazia parte, também, do “Plano Manaus”, de seis páginas, publicado no site do MS em 18 de janeiro como reação à crise na cidade.
“Aplicativos para orientar médicos são cada vez mais comuns. Mas colocar um termo de consentimento ao fim é muito raro. Isso pode ser entendido como uma forma de tirar do médico e do Ministério da Saúde a responsabilidade de prescrever um tratamento que se sabe ineficaz”, afirmou à CNN César Eduardo Fernandes, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB).
Como funcionava?
A ideia do aplicativo era usar um sistema de pontos para fazer um diagnóstico rápido da doença. A calculadora deveria ser preenchida com os sintomas relatados pelo paciente, e a cada um deles era atribuído um ponto. O resultado era uma pontuação, que apresentava ao médico uma sugestão para o tratamento do paciente. “Para qualquer valor acima de 4 pontos, será disponibilizada a opção de prescrição/medidas de tratamento precoce da doença”, diz trecho da versão preliminar do manual do TrateCov, obtida pela CNN.
Para o presidente da AMB, a ideia do aplicativo era boa, mas a recomendação feita para o suposto “tratamento precoce” deveria, àquela altura, já ter sido descartada. “Se fosse até maio, junho de 2020, tudo bem, porque havia uma discussão. Só que as melhores fontes, as melhores revistas científicas do mundo, a Anvisa, todos já disseram que infelizmente não há tratamento precoce. E eu serei o primeiro a admitir e retorceder caso algum trabalho sério mostre que existe tratamento preventivo. Lamentavelmente, ainda não há”, afirmou o médico César Eduardo Fernandes.
Outro lado
A CNN procurou o Ministério da Saúde para uma explicação sobre por que o termo de consentimento foi sido inserido e por que ter sido incluído como ponto importante na resposta à crise do Amazonas, mas não houve resposta.