Com quebra de patente distante, país tem outras opções para ampliar vacinação
Considerada uma medida drástica, quebra de patente só foi utilizada uma vez
Proposta nas duas casas do Congresso brasileiro, a quebra da patente das vacinas contra Covid-19 no Brasil é vista como uma oção distante por especialistas, que consideram que o país tem outros obstáculos a serem superados de forma mais imediata para a ampliação da vacinação contra a Covid-19.
“O gargalo aqui é anterior à produção. Até que se faça a produção, são necessários os insumos, que estão vindo da China e da Índia. O Brasil tem dependência de importação de 40% dos insumos utilizados, não só para vacinas, mas para uma série de outros medicamentos”, explica Soraya Smaili, reitora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
“Mesmo para fazer as vacinas com a transferência de tecnologia, você depende de uma matéria-prima para fazer o IFA (insumo farmacêutico). Esses reagentes dependem de importação, basicamente da China”, diz.
Para as vacinas que já existem, ela propõe uma saída negociada de flexibilização das licenças e ampliação da produção.
“O caminho tem sido fazer a negociação com os diferentes laboratórios, estamos bastante distantes de um cenário em que o Brasil quebraria a patente”, diz Maitê Gauto, gerente de Programas e Incidência da organização Oxfam. Ela defende que os laboratórios disponibilizem a possibilidade de produção e de transferência de tecnologia de maneira solidária.
Para ela, essa transferência não impactaria os lucros da indústria farmacêutica. “Tem que ser considerado que as vacinas foram desenvolvidas com pesado investimento do governo da Inglaterra, dos Estados Unidos”. Ela ressalta que esse é um tema de maior urgência, não só pela gravidade da pandemia, mas pelo surgimento de variantes da doença.
“É bastante perigoso que a gente não tenha uma grande velocidade de vacinação neste momento, porque há a possibilidade que cheguemos a uma variação que a vacina não cobre mais. Por isso, a necessidade de investimento nesse momento é fundamental”. As duas concordam que a resposta para a autossuficiência em imunizantes no futuro é o investimento na ciência.
Em meio à concorrência global, o país vem recebendo insumos aos poucos. Na última quarta-feira (3), o Instituto Butantan recebeu os insumos chineses para a produção de 8,7 milhões de doses da Coronavac. No sábado (6), a Fiocruz recebeu o primeiro lote de matéria-prima vinda da China para produção de 2,8 milhões de doses da vacina de Oxford/Astrazeneca.
Com 9,3 milhões de casos e mais de 228 mil mortos, o Brasil é o país com o terceiro maior número de diagnósticos da doença no mundo e o segundo maior de vítimas. Até o momento, 3,5 milhões de pessoas receberam a primeira dose da vacina —o que corresponde a pouco mais de 1,6% da população.
O que é?
A licença compulsória, ou quebra de patente, é quando o direito de exclusividade de quem detém a propriedade sobre um produto ou processo é suspenso temporariamente em casos de emergência ou de interesse público. Isso significa que outras empresas poderiam usar, vender e produzir esse item sem pagar royalties a quem detém sua propriedade.
No caso das vacinas, uma quebra de patente poderia significar a produção do imunizante em fábrica nacional sem um acordo com a farmacêutica que o desenvolveu. A medida é prevista no direito internacional e brasileiro. O artigo 71 da Lei de Patentes, prevê a licença compulsória em casos de emergência.
“Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular”, diz o texto.
A lei ainda prevê que o “ato de concessão da licença estabelecerá seu prazo de vigência e a possibilidade de prorrogação”. Cabe ao Poder Público avaliar se o titular da patente ou seu licenciado é capaz de atender ou não a necessidae de emergência.
Resposta legislativa
Há ao menos dois projetos tramitando na Câmara e no Senado, propostos por parlamentares de lados opostos do espectro político, que pedem a licença compulsória dos imunizantes como forma de combate à pandemia do novo coronavírus.
Tramita no Senado um projeto do senador Paulo Paim (PT-RS) que propõe suspender a patente de remédios, imunizantes e insumos enquanto durar o estado de emergência na saúde. O parlamentar justifica o projeto dizendo que a medida não propõe ignorar o direito às patentes, mas relativizá-lo temporariamente para benefício do povo brasileiro.
“É uma questão humanitária, que não pode submeter ao interesse econômico bens públicos cujo acesso deve ser não somente facilitado, mas viabilizado com urgência, de forma universal, para que vidas sejam salvas e a própria economia possa funcionar”, argumentou.
Na Câmara, o deputado Heitor Freire (PSL-CE) também propõe a quebra da patente como forma de aumentar a produção nacional dos imunizantes. Para ele, os laboratórios que têm a licença não têm capacidade produtiva para atender a demanda global pela vacina.
“A relativização dos direitos relacionadas com as patentes e marcas deve ser vista como uma medida essencial para a ampliação das possibilidades de fabricação das doses de imunizantes contra a Covid-19”, disse.
Apesar da previsão em lei, a licença compulsória só foi utilizada uma outra vez no Brasil, em 2006. O governo Lula decretou a quebra da patente do Efavirenz, do laboratório Merck Sharp&Dohme, usado no tratamento da Aids. A medida resultou na redução de 72% no preço pago pelo remédio.
Antes, em 2001, o governo de Fernando Henrique Cardoso anunciou que quebraria a patente de outro medicamento antirretroviral, o Neflinavir. No entanto, após a declaração, o laboratório ofereceu condições mais favoráveis e o Brasil voltou atrás.
Apesar da argumentação dos parlamentares, as especialistas consideram que a quebra da patente é uma medida radical e que não há indicação que isso aconteça no futuro próximo.
“A licença compulsória é uma medida extrema, não pode ser usada a qualquer custo”, explica Soraya Smaili, da Unifesp. “Seria possível e interessante que o Brasil juntasse esforços para uma cooperação internacional, não precisa partir para uma medida drástica que, às vezes, poderia gerar uma ruptura diplomática”.
Em debate na Câmara em setembro do ano passado, o diretor do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania do Ministério das Relações Exteriores, João Lucas Almeida, disse que o governo não trabalha com a possibilidade de licenciar as vacinas compulsoriamente.
“Acreditamos que, no momento, as condições estabelecidas nos permitem atender à expectativa [de preço] do mercado, assegurar a transferência de tecnologia e garantir um preço razoável por doses”, disse ele.
Em resposta à CNN, o Itamaraty disse que o Brasil tem um “compromisso com a promoção de um sistema de propriedade intelectual justo e equilibrado, em que os direitos de propriedade intelectual (DPIs) garantem que as criações da inteligência humana sejam remuneradas adequadamente”.
A pasta disse ainda que o Brasil “a necessidade de preservar o equilíbrio entre o acesso a medicamentos e o incentivo ao desenvolvimento de novos tratamentos e vacinas” e que as flexibilidades previstas por acordos da OMC (Organização Mundial do Comércio) “são suficientes para enfrentar a crise sanitária sem prejudicar a inovação, o desenvolvimento e a distribuição de tecnologias críticas no combate à doença, que exigem investimentos vultosos”.
(*Com informações da Agência Senado e da Agência Câmara)