Veja o que disse o único ministro que votou por Lula devolver relógio
No julgamento, Walton Alencar Rodrigues considerou presente como uma remuneração adicional
Apenas um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) votou, nesta quarta-feira (7), pela devolução do relógio de luxo recebido como presente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante seu primeiro mandato.
De acordo com Walton Alencar Rodrigues, o relógio deveria ser devolvido ao patrimônio público. O revisor da matéria no tribunal disse ainda que se trata menos do presente em si, e mais da “própria visão de mundo que a Corte pretende imprimir, para o futuro”.
Qual é o argumento do ministro?
No entendimento discordante, o relógio foi “indevidamente incorporado” ao patrimônio pessoal de Lula.
Walton Alencar Rodrigues afirma que os bens passariam a fazer parte da remuneração do presidente. Para ele, se o TCU considerar que os itens “não ostentam a qualidade de bens públicos, eles imediatamente se tornam verdadeiras remunerações adicionais, variáveis, ilimitadas, descontroladas, em favor do PR [presidente da República], para cujo aumento do patrimônio pessoal, da riqueza mesmo do PR, qualquer cidadão, empresa, nacional ou estrangeira, ou mesmo qualquer país estrangeiro pode contribuir, ofertando ‘presentes’, de qualquer valor, livremente aceitos pelo PR, com o amplo beneplácito do TCU”.
Segundo o ministro do TCU, ao liberar o presidente Lula da devolução, o tribunal estaria forçando “um absoluto retrocesso” na “moralidade administrativa”. Ele observa que o ato poderia estimular ação de “qualquer pessoa, interessada em benesses do Poder Executivo”.
Para o ministro, a decisão de deixar o bem em posse de Lula poderia sugerir uma alteração de regras “plenamente obsequiosa”, com o intuito de beneficiar o atual chefe do Executivo.
“Em uma república presidencialista, como chefe de Estado, representa a União, no período de duração do mandato. Os presentes são bens e foram atribuídos ao PR, na qualidade de representante da União. Logo, são bens da União. Afinal, onde já se viu o representante ficar com os presentes atribuídos ao representado, o verdadeiro dono, no caso, a União Federal”, questiona o ministro.
Ele relembrou um caso histórico, em que Dulce Figueiredo, viúva do ex-presidente João Figueiredo — do período da ditadura militar –, vendeu os presentes recebidos pelo marido durante exercício do cargo.
“Caso se admita que os relógios sejam do patrimônio pessoal do PR, ele poderá deles livremente dispor, como fez, dentre outros, a viúva do PR João Figueiredo, vendendo, em leilão, os presentes recebidos por seu marido. E tal é fato histórico, amplamente noticiado na época pela imprensa”, completou Walton Alencar Rodrigues.
Walton Alencar Rodrigues ainda acrescenta que “bens públicos não podem ser apropriados por detentores momentâneos de cargos, ainda que de presidente da República. O legislador não dispôs sobre a questão, simplesmente porque lhe parecia demasiadamente óbvia e, de fato, é óbvia.”
Leia a íntegra do voto
TC-032.365/2023-3
Presentes Atribuídos ao Presidente da República
Senhor Presidente
Senhores Ministros
Senhora Procuradora-Geral
Em razão da absoluta relevância deste processo, tenho algumas observações sobre a questão tratada.
Antes de mais nada, sobre este processo, já há precedente válido, amplamente conhecido de todos os Ministros, por ter sido proferido, por este mesmo colegiado, por unanimidade, consistente no acórdão 2.255/2016.
A questão é exatamente a mesma, presentes recebidos por presidentes da República.
Este precedente tem pautado, de forma uniforme, todas as decisões desta Casa, acerca de presentes recebidos por Presidentes da República, nos últimos 8 anos, nada havendo que lhe justifique a reforma. A CF é a mesma, o princípio da moralidade é o mesmo, a legislação é a mesma. Só mudaram mesmo os presidentes da República.
A auditoria de 2016 que ensejou a prolação deste acórdão tratou, simultaneamente, dos presentes recebidos pelo PR e do desaparecimento de 4.564 itens do patrimônio da própria PR, bens públicos que não foram encontrados, mesmo em face da instauração de inquéritos policiais pela PF, para apurar o sumiço de tantos bens públicos, inevitavelmente, por peculatos. Infelizmente, nada, nenhum dos 4.564 bens, foi encontrado pela PF. Paradeiro desses bens públicos, desconhecido, até hoje!
Na ocasião, ao tratar dos presente recebidos pelo PR, a auditoria do TCU fez menção ao fato de que os presentes deixaram os pátios da PR em mais de uma dezena de contêineres, o que entremostra uma das dimensões da questão que se está aqui novamente a analisar, que transcende propriamente a dos dois relógios de ouro, Piaget e Cartier, objeto deste processo, para abranger muito mais, a própria visão de mundo que esta Corte pretende imprimir, para o futuro, em nosso País.
A contribuição que o TCU vai dar, para o futuro do País, neste processo, é extremamente significativa, razão pela qual, desde logo, peço vênias a meus E. Pares, por eventual excessivo ardor na defesa do que acho correto!
Mas, indago, por que, assim, é tão importante este processo?
Primeiro, porque este processo representa a revisão do entendimento do TCU, que considero o único entendimento acertado, sobre o tema concreto, da apropriação privada, de bens públicos, por PR, ou seja, se os dois relógios de ouro, Piaget e Cartier, que foram indevidamente incorporados ao patrimônio pessoal do PR, nessa condição, devem continuar a ser considerados, vale dizer, como propriedade pessoal do PR, ou se devem integrar o patrimônio público.
Segundo, porque se esses bens são privados, do patrimônio pessoal do PR, a consequência natural é que esses relógios e uma multidão quase infinita de outros presentes podem receber qualquer destinação, até mesmo serem livre e regularmente vendidos, no futuro, por qualquer PR, ante a mais tênue necessidade ou vontade. Fica ao exclusivo critério do PR dispor sobre os presentes.
Ocorre que, se o TCU, agora, considerar que os dois relógios de ouro não ostentam a qualidade de bens públicos, eles imediatamente se tornam verdadeiras remunerações adicionais, variáveis, ilimitadas, descontroladas, em favor do PR, para cujo aumento do patrimônio pessoal, da riqueza mesmo do PR, qualquer cidadão, empresa, nacional ou estrangeira, ou mesmo qualquer país estrangeiro pode contribuir, ofertando “presentes”, de qualquer valor, livremente aceitos pelo PR, com o amplo beneplácito do TCU.
Terceiro, não fora a força dos argumentos constantes deste voto, o fato de este processo tratar de presentes recebidos, no passado, pelo atual PR, deveria impor certa cerimônia, por parte do Tribunal, na alteração de regras que irão imediatamente beneficiar o próprio, atual, PR, no pleno exercício do cargo de PR. Pode até mesmo parecer uma alteração de regras plenamente obsequiosa ao atual PR, no exercício do cargo.
No caso, está o TCU a garantir-lhe, imediatamente, a incorporação, ao patrimônio pessoal, de dois relógios de ouro e, mediatamente, a de uma quantidade quase infinita de presentes variados, recebidos agora e no passado. Sem dizer, obviamente, que estará o TCU a forçar todo um absoluto retrocesso na questão da apreciação prática do princípio constitucional da moralidade administrativa.
A jurisprudência, até o dia de hoje, pacífica, do TCU, é no sentido de que são bens públicos todos os bens atribuídos ao PR, a título de presentes, excluídos os personalíssimos, de pequeno valor.
Nesse sentido, hoje, a jurisprudência do TCU está na mais perfeita harmonia com a de todos os países civilizados do mundo, em perfeita sintonia com a legislação e a jurisprudência de países de altíssimo desenvolvimento ético e social. A reversão revisionista deste entendimento mudará radicalmente este quadro. Vamos passar, também aí, a integrar o rol dos países menos recomendados em termos de cuidados com a coisa pública.
Quarto, porque a decisão que ora tomará o TCU muito dirá sobre o processo civilizatório do nosso País como um todo. Afinal, não somos uma ditadura de país cujo ditador confunde seu patrimônio com o patrimônio do próprio País. Quero crer sermos uma vibrante democracia ocidental, republicana, com economia de mercado e propósitos altaneiros, de superação de mazelas éticas imemoriais! Uma país feito de cidadãos e não de súditos, servos ou escravos, com gigantescas perspectivas.
Quinto, a base legal para a tomada de decisão do TCU, pela unanimidade do Plenário, tanto em 2016, como hoje, é exatamente a mesma, o art. 20 da CF, o princípio da moralidade administrativa, a essência de tantas leis e decretos. O acórdão de 2016 apenas expôs a realidade jurídica do País em relação aos presentes. Nada inovou em relação ao direito positivo. Não criou norma nova, simplesmente aplicou as regras postas da única forma como elas deveriam ser aplicadas.
Diz a CF que são da União os bens que lhe forem atribuídos. O PR, em uma república presidencialista, como chefe de Estado, representa a União, no período de duração do mandato. Os presentes são bens e foram atribuídos ao PR, na qualidade de representante da União. Logo, são bens da União. Afinal, onde já se viu o representante ficar com os presentes atribuídos ao representado, o verdadeiro dono, no caso, a União Federal.
Sexto, não há vazio legislativo em relação ao tema dos presentes. Todos os decretos e portarias, ainda quanto às cláusulas, que se pretendiam trânsfugas em relação à orientação geral, imposta pela CF, obedecem, na essência, o comando fundamental de que os presentes atribuídos à União, na pessoa do PR, são bens públicos. E bens públicos não podem ser apropriados por detentores momentâneos de cargos, ainda que de presidente da República. O legislador não dispôs sobre a questão, simplesmente porque lhe parecia demasiadamente óbvia e, de fato, é óbvia.
Fiz, no meu voto, detalhada pesquisa sobre o direito comparado em relação ao tema. Aos países que atingiram estágio de desenvolvimento social muito mais avançado que o nosso repugna a apropriação do patrimônio público pelos representantes do povo. É o caso dos EUA, Inglaterra e todo o Reino Unido, Alemanha, Canadá, Austrália, Suíça, Suécia, Noruega e tantos outros, Em nenhum desses países, presentes como relógios de ouro maciço, de marcas valiosas, como Piaget e Cartier, seriam tolerados como bens passíveis de apropriação pelo patrimônio pessoal de chefe de Estado. Examino a forma de agir de todos esses países no meu voto. Isso aqui diz alguma coisa?
Não tenho dúvidas de que, nesses Países, a subtração ou a não declaração de presente, recebido pelo PR, ou primeiro Ministro, certamente dariam azo ao impeachment, ao afastamento do cargo, com todas as demeritórias consequências.
E, afinal, o direito comparado, que mostra definitivamente como os países desenvolvidos tratam unanimemente dos presentes, ofertados aos seus PR, serve de algo ao Brasil? Pode ser mesmo tênue fonte do direito? É critério de interpretação? É ao menos compatível com a nossa visão de mundo e sistema jurídico? E se não for, desejamos mudar para o País algo essencialmente errado?
Sétimo, invalidar o acórdão de 2016 e considerar que não há base legal para considerar os presentes atribuídos à União, por meio de seu representante, o PR, como bem público, seria, verdadeiramente, autorizar, estimular, alardear, com o pleno aval do Plenário do TCU, que qualquer pessoa, interessada em benesses do Poder Executivo, ou não, possa doar bens ao PR, a título de presentes, que lhe serão imediatamente incorporados ao patrimônio pessoal. É legitimar o impensável. Pelo menos até que se dignasse, quando entender oportuno, o Congresso Nacional, a formular alguma legislação explícita sobre o tema.
Oitavo, ao tempo em que o TCU julga este processo, noticia a imprensa que estaria pronta, para protocolo no STF, a denúncia criminal, contra ex-PR e assessores, por ter supostamente vendido presentes valiosos, comportamento absolutamente similar a tudo que vem acontecendo em relação ao descontrole dos presentes recebidos por PR, mesmo presentes de alto valor, que, friso, são bens da União. Haveria clara duplicidade de visão do Estado em relação ao tema, para um presidente é crime de peculato; para o outro presidente, no exercício do cargo de PR, direito reconhecido pelo Plenário do TCU.
E mais, se houve erro de apreciação, ao dispor das joias, por dúvida razoável, na época, diante da prática anterior e da lastimável portaria, poderia ser excluído o dolo necessário à configuração do peculato, mas, em nenhuma hipótese, justificaria a legitimação, no âmbito administrativo e civil, dos bens no patrimônio do PR.
Por toda a conjuntura circundante a este processo é que muito me preocupo, já refleti bastante sobre a questão e o meu entendimento está materializado na ementa do meu voto, que ratifica e consolida, hoje, mais uma vez, o tradicional entendimento do Tribunal, amplamente explicitado desde o acórdão de 2016. (… Ler ementa!)
SUMÁRIO: REPRESENTAÇÃO. PARLAMENTAR. GABINETE PESSOAL DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. INDEVIDA INCORPORAÇÃO DOS RELÓGIOS PIAGET E CARTIER AO PATRIMÔNIO PESSOAL DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. PRESENTES DE ALTO VALOR, RECEBIDOS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, NO EXERCÍCIO E EM FUNÇÃO DO CARGO PÚBLICO. ABSOLUTA IMPOSSIBILIDADE DE INCORPORAÇÃO AO PATRIMÔNIO PESSOAL. REPRESENTAÇÃO PROCEDENTE. DETERMINAÇÃO DE INCORPORAÇÃO DOS DOIS RELÓGIOS DE OURO – PIAGET E CARTIER – AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. DETERMINAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA AO PATRIMÔNIO PÚBLICO DE TODOS OS PRESENTES ATRIBUÍDOS A PRESIDENTES DA REPÚBLICA, NA CONSTÂNCIA DO MANDATO, RESSALVADOS TÃO-SOMENTE OS DE NATUREZA PERSONALÍSSIMA, OBRIGATORIAMENTE DE PEQUENO VALOR.
1. Como regra geral, são bens públicos todos os bens atribuídos ao presidente da República, na inata condição de representante do Estado brasileiro, a título de presentes, não importando se a ele atribuídos por pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, em solenidades públicas ou eventos privados, à exceção dos bens personalíssimos, necessariamente de pequeno valor.
2. No caso, bens personalíssimos são presentes atribuídos ao presidente da República, em razão de sua pessoa, de baixo valor de mercado, passíveis de incorporação ao seu patrimônio pessoal. Diferem dos bens consumíveis, que são bens públicos, de livre utilização e consumo pelo presidente da República, no exercício do cargo, cujo uso implica a própria destruição da coisa, ou a perda de suas qualidades essenciais, independentemente do valor, como bebidas, alimentos, roupas etc.
3. Numa república presidencialista, o presidente da República é chefe de Estado e chefe do governo. Naquela condição, representa e personifica o Estado brasileiro; nesta, orienta a Administração Pública Federal, controla parte substancial do orçamento e lhe define as principais diretrizes de ação.
4. O artigo 20 da Constituição Federal estabelece que “são bens da União os que lhe vierem a ser atribuídos”. À Constituição seguem-se leis, decretos, portarias e orientações do TCU, sem falar dos princípios da moralidade administrativa e da transparência, que imantam todo o ordenamento jurídico e estabelecem o regime jurídico público e a propriedade da União dos bens recebidos, como presentes, pelo Estado brasileiro, na pessoa do chefe de Estado.
5. O Decreto 4.344/2002 apresenta rol meramente exemplificativo de bens, cuja incorporação ao patrimônio privado dos presidentes da República é vedada.
6. Não constituem os presentes atribuídos ao Estado brasileiro espécie de remuneração variável, ou de segunda remuneração, em benefício de presidentes da República, da sua propriedade pessoal, disponíveis ao seu alvedrio. 7. Nos EUA, o presidente pode receber presentes de até $415 dólares. Acima deste valor, o presente é do povo americano. O presidente poderá mantê-los, após deixar o cargo, somente se lhes indenizar o valor de mercado. Na Inglaterra e em todo o Reino Unido, o primeiro-ministro pode receber presentes de até £140. Na hipótese de o presente superar esse valor, o receptor poderá pagar a diferença para mantê-lo ou ele será propriedade do governo. Na Alemanha, os ministros devem informar sobre o recebimento de presentes, para que o Bundesregierung lhes decida a utilização . No Canadá, é proibida a aceitação de qualquer presente ou vantagem que possa parecer influenciar as funções oficiais do titular de cargo público. Se recebido, caso tenha valor igual ou superior a C$ 1.000, o presente é confiscado em favor do Canadá . Na Austrália, o primeiro-ministro pode ficar com o presente de valor não superior a $AUD 750,00, se proveniente de fontes governamentais, e a $AUD 300,00, se proveniente de fontes privadas. Na Suíça, os presentes que, por cortesia diplomática, não puderem ser recusados devem ser entregues, armazenados e catalogados pelo Estado. Na Suécia, todos os presentes pertencem ao Estado. Na Noruega, funcionários do Estado e liderança política simplesmente não podem receber presentes no exercício de suas funções .
8. No Brasil, questionamentos atinentes à regularidade da apropriação de presentes atribuídos à União Federal, representada pelo Presidente da República, seja por Estados estrangeiros, seja por entes públicos ou privados, transpassam a pessoa de um único presidente da República, para abranger praticamente todos os presidentes que ocuparam o cargo, o que, sobre demonstrar um como arraigado patrimonialismo em relação à coisa pública, impõe a imperiosa necessidade de cabal regulamentação do tema, como já o fez o TCU, por dizer respeito ao próprio estágio civilizatório do País, sendo inconcebível, à vista de expressas regras constitucionais e do direito comparado, admitir como regular tal comportamento antidemocrático.
No caso concreto, estamos, portanto, a examinar a situação dos dois relógios de ouro maciço, um Piaget e um Cartier, considerado pela PR como patrimônio pessoal do atual PR. Segundo a PR, o relógio Cartier foi presente, em evento privado, da própria empresa Cartier, parte importante de um grande conglomerado de empresas francesas de alto luxo, com nítidos interesses no Brasil. Já o relógio Piaget teria sido presente recebido do próprio Presidente da França.
Nessa representação, entendo que o TCU deve tratar da situação jurídica do relógio Piaget, do relógio Cartier e corrigir interpretações equivocadas sobre presentes recebidos por todos os PR.
Como vimos, a atribuição de relógios de ouro maciço, como presentes, a PR, a Primeiro-Ministro ou a ministros de Estado, não é tolerada por nenhum País civilizado do mundo.
No Brasil, não são bens do patrimônio pessoal do PR, porque foram atribuídos à União, por meio do PR, mero portador e representante. Caso se admita que os relógios sejam do patrimônio pessoal do PR, ele poderá deles livremente dispor, como fez, dentre outros, a viúva do PR João Figueiredo, vendendo, em leilão, os presentes recebidos por seu marido. E tal é fato histórico, amplamente noticiado na época pela imprensa.
Menciono, no meu voto, portarias e decretos da PR, elaborados com cláusulas para tentar fugir da realidade da CF, que certamente, em passado não tão remoto, permitiram indevidas apropriações de presentes, mas sem nenhuma validade, ante a regra geral da CF, de que presentes atribuídos ao PR, na qualidade de chefe de Estado, durante o exercício do mandato, são bens da União.
Há informações sobre apropriações irregulares de presentes por todos os PR, o que torna imprescindível disponha o TCU sobre o tema, definitivamente respondendo a questão se presentes de alto valor, a exemplo desses relógios de ouro Piaget e Cartier, podem integrar o patrimônio pessoal do PR, ou devem figurar entre os bens da União.
A ausência de menção expressa na legislação acerca de presentes recebidos por PR não lhes autoriza a apropriação. A questão é tão óbvia que o legislador entendeu desnecessária a menção na lei. Uma e outra disposição em normas infralegais não lhes autoriza a incorporação ao patrimônio pessoal. Trata-se apenas de lastimável tentativa de legitimar o ilegitimável.
Finalmente, sobre o tema dos presentes recebidos pelo PR, o jornalista Hélio Schwartsman, da Folha de SP, escreveu interessante artigo sobre um livro cujo objeto é o cérebro humano. Pesquisadores de renomada universidade americana atestam que, de forma inconsciente e involuntária, por mais proba que seja, a pessoa que recebe presentes fica muito mais propensa a atender os pleitos de quem dá os presentes. É natural, inato, programado no cérebro humano, que reage bem a quem oferece presentes. Parece bem intuitiva a conclusão dos cientistas americanos. Só que, em se tratando de países, a questão é bem mais complexa, porque estão em jogo os próprios interesses nacionais, em confronto com os dos países estrangeiros.
Por fim, a questão nem mesmo careceria de pronunciamento do TCU, uma vez que pode ser levada, a qualquer tempo, ao STF e lá eles dariam a resposta final. Estranho até que, desde 2016, ninguém tenha questionado a correção e validez desse Acórdão.
Por todas essas razões, prefiro manter-me na exata linha da atual jurisprudência deste Tribunal, propondo o seguinte acórdão, em voto revisor:
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, em:
9.1. conhecer da representação, com fulcro nos arts. 235 e 237, inciso III, do Regimento Interno do Tribunal, para, no mérito, considerá-la inteiramente procedente;
9.2. determinar ao Ministério das Relações Exteriores, ao Gabinete Pessoal do Presidente da República e à Secretaria de Administração da Presidência da República, que, no prazo de trinta dias, a contar da ciência, adotem as seguintes medidas:
9.2.1. incorpore, no acervo público da Presidência da República, os seguintes itens:
9.2.1.1. relógio Piaget, modelo Altiplano, que o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva declarou ter recebido do Presidente da França quando ocupava a Presidência da República;
9.2.1.2. relógio Cartier atualmente mantido no Sistema de Gestão de Acervos Privados da Presidência da República (InfoAP), sob o código 05LL045530M012, entregue pela fabricante Cartier, no evento “Ano do Brasil na França”, em 12/7/2005;
9.2.2.2. transfira ao patrimônio público todos os bens que foram ou vierem a ser entregues, no exercício do cargo, aos presidentes da República, ainda que por terceiros, ressalvados tão-somente os bens de natureza personalíssima, de pequeno valor; e
9.3. dar ciência desta deliberação ao Ministério das Relações Exteriores, ao Gabinete Pessoal do Presidente da República e à Secretaria de Administração da Presidência da República.