Sigilo de 100 anos: entenda como funciona e o que diz a Lei
Você sabe quais são os critérios para tornar um documento secreto? Entenda sobre o que diz a lei do sigilo dos 100 anos e saiba se ele pode ser revogado.
O sigilo de 100 anos foi criado em 2011, junto à Lei de Acesso à Informação. A temática ganhou espaço durante as eleições de 2022 e voltou à tona com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à presidência.Ao longo da campanha, Lula falou sobre as decisões de Jair Bolsonaro de impor sigilo a algumas informações, como o processo sobre a participação do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, em um ato político do então presidente.
Lula reforçou, durante os debates, a sua intenção de revogar as decisões de Bolsonaro. Em uma rede social, ele declarou:
No primeiro dia de governo nós vamos fazer um decreto para acabar com o sigilo de 100 anos. O povo deve ver o que estão escondendo. #BrasilDaEsperança
— Lula (@LulaOficial) September 27, 2022
Especialistas ouvidos pela CNN em liberdade de expressão e direito da informação e privacidade explicam os procedimentos e limites do Estado na hora de ocultar dados.
Veja a seguir como funciona o processo de sigilo dos 100 anos.
O que diz a lei sobre o sigilo de 100 anos?
A Lei de Acesso à Informação (LAI) surgiu em 2011 para regulamentar o acesso a documentos oficiais de interesse público, que ajudam a conhecer a história do país.
Há, porém, informações que a mesma lei permite manter em sigilo de 100 anos por serem “consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado”.
Em seu art. 31º, a LAI define que esse sigilo deve proteger informações consideradas pessoais, relacionadas à vida privada ou à intimidade de um cidadão, por exemplo.
Nestes casos, a lei prevê que o acesso a esse tipo de conteúdo deve ser restrito a agentes públicos autorizados e ao cidadão ao qual a informação se refere.
Atos políticos não se encaixam nas condições definidas para o sigilo.
Quem criou a lei dos 100 anos de sigilo?
A Lei de Acesso à Informação, na qual consta o sigilo de 100 anos, foi apresentada pelo governo Lula, mas a proposta foi sancionada apenas durante a gestão de Dilma Rousseff (PT), em 2011.
O objetivo, na época, era eliminar a opção de sigilo eterno, que garantia o acesso restrito a informações de documentos públicos por prazo indeterminado.
Dessa forma, a LAI entrou em vigor com novos prazos, definidos de acordo com alguns critérios para diferentes informações governamentais.
A lei apresentou então a opção de sigilo em prazos que podem variar de cinco a 25 anos, além dos 100 anos, que é o prazo máximo previsto para a restrição de acesso às informações.
Quais são as regras para o sigilo de 100 anos?
Como vimos, a LAI prevê a restrição de informações consideradas pessoais, mas a legislação também especifica que nem todos os dados se encaixam no direito ao sigilo.
Segundo as normas, o sigilo não pode ser usado para prejudicar a apuração de irregularidades envolvendo a pessoa a qual o documento se refere ou relacionadas a fatos históricos relevantes.
Júlia Rocha, assessora de acesso à informação e transparência da Artigo 19, entidade dedicada ao tema da liberdade de expressão e informação, explicou o processo de solicitação do sigilo para a CNN.
Segundo a assessora, as autoridades de órgãos públicos precisam preparar um termo explicando o motivo e o tempo pelo qual se pretende manter uma informação em sigilo.
Além disso, Júlia destaca que há informações que não podem ser omitidas, aquelas que são “imprescindíveis para tutela judicial e informações que digam respeito e tragam evidências de atentado contra direitos humanos”.
Dentro dessas condições, os órgãos públicos escolhem, portanto, os documentos que terão as informações restringidas.
Quando uma informação pode ser considerada sigilosa?
A Lei de Acesso à Informação define oito situações em que um documento pode ser considerado sigiloso, são elas:
- situações que põe em risco os planos e as operações das Forças Armadas;
- situações que representam riscos à vida, à saúde ou à segurança da população;
- situações com altos riscos para a estabilidade econômica, financeira ou monetária do país;
- situações que apresentam riscos à segurança de altas autoridades ou de instituições;
- situações que colocam em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
- situações que prejudicam ou apresentam riscos para as relações internacionais do país;
- situações que comprometem atividades de inteligência ou investigações sobre repressão ou prevenção de infrações que estejam em andamento;
- situações que trazem riscos para projetos de pesquisas e desenvolvimento tecnológico ou científico, bem como as instalações, bens ou áreas de interesse estratégico do país.
Todas são consideradas “imprescindíveis para a segurança da sociedade ou do Estado”, por isso podem se encaixar nas opções de restrição de acesso.
Vale ressaltar que, para o sigilo de 100 anos, a proteção é válida apenas para dados pessoais.
O interesse público se sobrepõe à privacidade de um indivíduo?
O advogado Danilo Doneda, especialista em direito digital e integrante do Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade, afirma que as informações pessoais que são protegidas pela lei não devem inviabilizar o acesso à informação de interesse público.
“A privacidade é muito menos relevante do que saber algo importante para o momento político de um país.”, pontua Doneda.
A publicação pode acontecer quando as informações pessoais forem necessárias “à proteção do interesse público e geral preponderante”.
Além disso, a Lei de Acesso à Informação garante a divulgação das informações em caso de “cumprimento de ordem judicial” e “para defesa dos direitos humanos”.
Informações pessoais relacionadas à vida privada, honra e imagem da pessoa não poderão ser usadas “com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”, diz trecho da lei.
Quais documentos podem entrar no sigilo dos 100 anos?
Qualquer documento que não seja de interesse público e que tenha “informações de pessoa natural, conhecida ou desconhecida”, segundo a Lei de Acesso à Informação.
A lei impede a divulgação de informação que seja relacionada à “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas”.
Além disso, protege os documentos da publicação quando estão relacionados “às liberdades e garantias individuais”.
Essas informações devem ter sigilo de 100 anos e sua restrição independe de classificação por qualquer órgão público.
Documentos oficiais também podem ter acesso negado quando ganham status de sigilosos, secretos ou ultrassecretos a pedido de órgãos públicos.
Porém, nesses casos, o limite máximo de tempo para restrição da informação é de 25 anos.
Podem ser denominados como documentos sigilosos, secretos ou ultrassecretos aqueles que, caso vazados, venham a causar dano ao interesse público.
“São informações que, se vazadas, trazem perigo à saúde da população, à soberania nacional, ao desenvolvimento científico e a atividades de inteligência”, explica Júlia Rocha.
De que maneira um documento é colocado em sigilo?
Júlia Rocha diz que autoridades de órgãos públicos precisam preparar um termo explicando o motivo e o tempo pelo qual se pretende manter uma informação em sigilo e destaca que há informações que não podem ser omitidas, aquelas que são “imprescindíveis para tutela judicial e informações que digam respeito e tragam evidências de atentado contra direitos humanos”.
Esse documento é chamado de Termo de Classificação da Informação, ou simplesmente TCI. Nele, as informações devem estar detalhadas de acordo com as normas do decreto 7724/2012, que regulamenta a LAI.
Dentro dessas condições, os órgãos públicos escolhem, portanto, os documentos que terão as informações restringidas.
Ao avaliar o teor das informações, os órgãos do governo classificam os conteúdos de acordo com os riscos da divulgação desses dados, categorizando-os da seguinte forma:
- reservado: prazo de restrição de até 5 anos;
- secreto: prazo de restrição de até 15 anos;
- ultrassecreto: prazo de restrição de até 25 anos.
Esses três tipos de restrição podem ser aplicados em informações que não são consideradas pessoais.
No caso de informações pessoais críticas, os órgãos podem decidir pelo sigilo de 100 anos.
Quem decide a classificação do sigilo de 100 anos?
Quem fica responsável pela classificação são agentes públicos definidos pela Lei de Acesso à Informação, que vão do presidente da República a titulares de autarquia, a depender do tipo de informação e do grau de sigilo que se pretende impor.
Pode haver recurso contra a classificação?
Como vimos, os órgãos do governo ficam responsáveis por classificar o sigilo de cada documento após a apresentação do TCI.
Danilo Doneda destaca, no entanto, que a decisão não é uma palavra final.
“Pode haver o pedido por parte da Controladoria Geral da União (CGU) para criar uma comissão que avalie a motivação”, explica.
“E, muitas vezes, ela pode dizer que está errada a classificação, evitando que os órgãos classifiquem a informação como restrita”, finaliza o advogado.
Afinal, o decreto de 100 anos pode ser derrubado?
Sim, o sigilo de 100 anos pode ser revogado, de acordo com a Constituição Federal e a própria LAI.
Na Lei de Acesso à Informação, a possibilidade de revogação está prevista no artigo 29, que diz:
“A classificação das informações será reavaliada pela autoridade classificadora ou por autoridade hierarquicamente superior, mediante provocação ou de ofício, nos termos e prazos previstos em regulamento, com vistas à sua desclassificação ou à redução do prazo de sigilo”.
Portanto, além de desclassificar o sigilo, existe também a possibilidade de reduzir o prazo das restrições de acesso à informação.
A Constituição Federal também apresenta a possibilidade de revogação ao definir, em seu artigo 84, que o presidente da República pode “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
Com base nesse trecho, Lula poderia modificar o artigo 31 da LAI, que fala sobre o sigilo dos 100 anos.
Para isso, precisaria apresentar um projeto de lei, uma medida provisória ou alterar o decreto 7724/2012, que regulamenta a LAI, a partir de outro decreto.
Outra opção é repassar a responsabilidade de revogar os sigilos ao ministro da Controladoria Geral da União e aos membros da Comissão Mista de Reavaliação de Informações.
Eles são encarregados de decidir pelos recursos de penúltima e última instância no Executivo Federal, portanto têm autoridade para derrubar o sigilo de 100 anos.
Em quais ocasiões Bolsonaro aplicou o decreto de 100 anos?
Jair Bolsonaro aplicou o decreto de 100 anos em três atos:
- informações sobre acessos ao Palácio do Planalto e reuniões com Jair Bolsonaro;
- dados sobre o processo disciplinar contra Eduardo Pazuello;
- cartão de vacinação de Jair Bolsonaro.
A decisão de impor sigilo de 100 anos ao cartão de vacina de Bolsonaro, por exemplo, teve justificativa pautada no artigo 31 da LAI.
Na época do pedido, em janeiro de 2021, a assessoria da presidência argumentou que os dados do documento “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem” de Jair Bolsonaro.
Em outros casos, a assessoria também justificou o sigilo afirmando que as informações não são de interesse público.
O que os especialistas dizem sobre o uso do sigilo de 100 anos?
A aplicação do sigilo de 100 anos pelo presidente Jair Bolsonaro gerou debates entre especialistas, que avaliaram o alinhamento da decisão com as condições da LAI.
Muitos apontaram um problema de interpretação da legislação, uma vez que o artigo 31 da Lei de Acesso à Informação é destinado à proteção de dados do cidadão e não de autoridades.
Como vimos, a lei não engloba atos políticos entre as situações em que os 100 anos de sigilo podem ser aplicados.
Apesar deste ponto e da especificidade da lei sobre dados pessoais, há um questionamento sobre a restrição de dados de agentes públicos e a necessidade de se manter processos transparentes para a sociedade.
Outro apontamento de especialistas é sobre a quantidade de documentos colocados sob sigilo por Bolsonaro.
Em entrevista à CNN, Luis Inácio Adams, advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional e Advogado-Geral da União, afirmou que “a transparência é permanente e o sigilo é exceção”.
A história do sigilo de informações no Brasil
A pesquisa “Uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX”, de 2002, da pesquisadora Priscila Ribeiro Antunes, aponta que “o primeiro instrumento legal a ter como objetivo principal proteger e classificar as informações julgadas pelo Estado brasileiro como sensíveis para sua segurança” foi o decreto 27. 583, de 1949, no contexto da Guerra Fria.
O decreto previa a proteção de “informações que interessam à segurança nacional”. Ele foi revogado em 1967 e outros decretos com o mesmo objetivo apresentaram algumas mudanças depois dele.
Hoje, o sigilo é aplicado de acordo com a Lei de Acesso à Informação, em vigor desde 2011.
Desde então, portanto, existe a possibilidade de aplicar o sigilo de 100 anos sobre documentos e informações pessoais.
O tema chamou mais atenção ao longo do governo Bolsonaro, que impôs sigilo a diversos documentos durante seu mandato e levantou questionamentos sobre seus atos.
Quando os sigilos estavam em foco nas redes sociais, Bolsonaro respondeu um usuário que o questionou sobre os motivos para aplicar a restrição às informações: “em 100 anos saberá”, disse o presidente.
Durante os debates entre Bolsonaro e Lula para as eleições de 2022, o sigilo de 100 anos foi um dos principais tópicos de discussão.
Quando questionado sobre os sigilos, Bolsonaro afirmou que havia aplicado a restrição em informações referentes a “questões pessoais”.
Foi então que Lula demonstrou interesse em derrubar essas decisões do governo Bolsonaro. “Eu vou fazer um decreto para acabar com o seu sigilo de 100 anos”, afirmou Lula no último debate.
Desde quando há a obrigação de o Estado dar acesso às informações?
A Constituição de 1988 tentou disciplinar o assunto ao dizer que todos os atos do governo precisam ser públicos, a não ser que houvesse a necessidade de sigilo.
“Mas não havia uma lei que explicasse o que era sigilo”, diz Danilo Doneda. “O que acontecia na prática é que quando o órgão não queria, ele não dava à informação e pronto”.
Em 2011, a Lei de Acesso à Informação regulamentou o que havia sido estabelecido pela Constituição e explicou o que deve ser público e o que carece de sigilo, deixando claro, inclusive, as condições para que as informações sejam negadas ao público.
“Isto é muito importante, precisa ter uma justificativa para se negar acesso. E ela precisa ser boa, caso contrário, as pessoas podem contestar”, destaca Doneda.
Confira as principais notícias políticas de hoje na CNN.
Resumo
O sigilo de 100 anos surgiu junto com a Lei de Acesso à Informação, que entrou em vigor durante o governo de Dilma Rousseff, em 2011.
A lei define as situações em que a restrição de acesso a informações pode ser aplicada, considerando prazos que variam de cinco a 25 anos, de acordo com o nível de risco dos dados.
No caso do sigilo de 100 anos, especificado no artigo 31, a LAI determina que a restrição é válida para informações consideradas pessoais, que dizem respeito à vida privada ou à intimidade de um cidadão.
Quando esse sigilo é aplicado, apenas agentes públicos autorizados e o cidadão a quem se referem os dados têm acesso ao documento.
Como vimos, existe a possibilidade de revogar ou reduzir o prazo de um sigilo em algumas situações, como para a proteção de interesse público ou para cumprimento de ordem judicial, por exemplo.
A LAI também prevê a possibilidade de reavaliar as decisões de restrição de informações.
Com isso, Lula pode conseguir derrubar sigilos impostos por Jair Bolsonaro ao longo de seu governo, conforme demonstrou interesse durante os debates para as eleições de 2022.