Pacto entre Poderes trouxe poucos resultados práticos em outros governos
Desde o fim da ditadura se busca uma concertação entre Executivo, Legislativo e Judiciário em momentos de crise, mas efeitos são limitados
Na manhã desta quarta-feira (24), ocorreu no Palácio da Alvorada um encontro com as lideranças dos Três Poderes brasileiros: Jair Bolsonaro (sem partido), presidente da República; Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Congresso e do Senado Federal; Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados; e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. Ao final, Bolsonaro anunciou a criação de um comitê que se reunirá semanalmente para discutir o combate ao novo coronavírus.
A ideia de uma reunião entre os chefes dos Poderes para criar um clima de entendimento em torno de uma crise não é nova. Já aconteceu, inclusive, no mandato do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, antes da Reforma da Previdência. Mas, a despeito do enorme simbolismo do encontro, os precedentes históricos mostram que esse tipo de ação tem poucos reflexos práticos.
Tentativas de harmonizar arestas entre Executivo, Judiciário e Legislativo foram feitas em praticamente todos os governos pós-democratização. Com um caráter mais formal, em dezembro de 2004, no governo Lula (PT), mas por iniciativa do STF, líderes dos Três Poderes fizeram um pacto para aumentar a eficiência do Judiciário. Mais de 40 projetos foram apresentados e cerca de uma dezena deles virou lei, como a súmula vinculante.
Ainda na era Lula, em 2009, uma segunda edição do “pacto republicano”, como foi chamado, buscou consolidar avanços – e aqui a reunião já teve contornos mais institucionais que funcionais.
Em 2013, a então presidente Dilma Rousseff (PT) também lançou mão de um expediente parecido como resposta aos protestos de junho. Várias propostas, entre elas uma lei anticorrupção que criou as bases para a Operação Lava Jato, foram aprovadas sob os auspícios – mas, segundo pesquisadores, não por causa de – de uma “Pax” entre os Poderes.
Assim, soa natural que, em um momento de agravamento da crise sanitária causada pelo novo coronavírus, no qual as mortes se aproximam de 300 mil em pouco mais de um ano, com óbitos diários superando 3 mil, os principais poderes tentem algum congraçamento. Para analistas e políticos ouvidos pela CNN, no entanto, o alcance tende a ser limitado, em especial por causa da atuação do presidente Bolsonaro.
“O objetivo central de um pacto desse tipo é blindar os poderes, especialmente o Executivo federal, da crescente frustração de um país à beira do colapso”, disse André Pagliarini, professor de história da América Latina moderna na Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos.
O governo sabe que algo diferente precisa ser feito e um pacto desse tipo poderia ser um ‘feito’ para apresentar à sociedade. Dilma tentou uma manobra parecida durante as jornadas de junho de 2013, o que talvez lhe tenha dado fôlego suficiente para ser reeleita. Mas não foi uma solução duradoura
André Pagliarini, professor na Universidade de Dartmouth
Histórico de tensionamento
Desde o início, o governo Bolsonaro tem momentos de tensionamento entre os Poderes para, em seguida, viver momentos de distensão. Às vésperas do encontro com os presidentes das duas casas do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e com alguns governadores escolhidos a dedo, o presidente promoveu aglomeração de apoiadores para seu aniversário, voltou a ventilar uma possível atuação do Exército e a culpar governadores por medidas que prejudicam a economia sem conter a disseminação do vírus. Em pronunciamento ao país na terça-feira (23), concentrou em sua fala de pouco mais de três minutos promessas sobre vacinação para todos os brasileiros, inclusive para as novas cepas.
Contudo, os choques não são exclusivamente causados pelo Executivo. A investigação dos atos antidemocráticos pelo STF, que levou à prisão o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), além de apoiadores do presidente, foi considerada um ato de hostilidade aos outros Poderes. Não foram poucas as fricções também entre o Congresso e o Executivo. Mesmo com a liderança do então presidente do STF, Dias Toffoli, um processo de pacto anunciado em 2019 teve pouco efeito prático e a animosidade de todos os lados minaram o acordo.
“No papel, o pacto entre Poderes já existe: temos a independência entre eles, um sistema de freios e contrapesos na Constituição. Na prática, porém, temos um histórico de Poderes intervindo uns nos outros”, disse o cientista político André Pereira César, sócio-fundador da Hold consultoria.
O momento não poderia ser mais propício para uma união. Estamos diante de 300 mil mortos, falta de vacina... Seria natural que todos levantassem uma bandeira branca. Duvido que isso seja feito. Do Executivo mesmo não há um dia de trégua, é o tempo todo movido pelo embate
André Pereira César, cientista político
Desconfiança nas Casas
No Congresso, depois da morte do senador Major Olímpio (PSL-SP), a terceira vítima da doença no Senado, o clima para o governo ficou muito tenso. A reunião foi um aceno dos presidentes das duas Casas, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, para uma pacificação. Mas também é um recado claro de que a percepção é que o Executivo perdeu o controle do combate à doença.
Entre parlamentares das duas Casas, ouvidos em condição de anonimato, a descrença acerca de medidas concretas que possam sair da reunião era o tom. As seguidas demonstrações de desapreço do presidente por medidas como distanciamento social e uso de máscaras, além da estratégia beligerante e não cooperativa com os governadores e prefeitos, geram descrença de que o governo mude totalmente seu estilo.
“Hoje, Lira e Pacheco parecem reconhecer que o governo está falhando no tratamento da pandemia. Ao mesmo tempo, ambos estão onde estão graças ao apoio do presidente”, explicou Pagliarini. “Não tendo condições políticas de romper com Bolsonaro, dada sua resiliência eleitoral nas pesquisas, parecem buscar uma maneira de assinalar que estão tomando alguma atitude, nem que seja apenas retórica.”
O acordo da anistia
Para o professor de Darthmouth, a discussão sobre um pacto entre os Poderes é uma tentativa de aliados do presidente de despersonalizar a política para, implicitamente, se afastarem dele.
A comparação que me ocorre é a grande barganha social que foi feita no fim da ditadura, na qual foi feita uma tentativa de despersonalizar a política a favor de uma demonstração de estabilidade institucional. Essa transição foi benéfica, é claro, mas o outro lado da despersonalização é a impossibilidade de se fazer justiça
André Pagliarini, professor na Universidade de Dartmouth
Ao fim da ditadura, o grande pacto, que acabou levando à Lei de Anistia, foi a solução adotada pelos principais atores sociais para garantir uma transição menos traumática entre os regimes. Conversas com o mesmo caráter transcorreram para a posse de José Sarney e após o impeachment do presidente Fernando Collor – embora com um apelo formal menor do que o atual.
Para a professora doutora em ciência política Carolina Botelho, pesquisadora do Doxa (núcleo de pesquisa, sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ), a tentativa anterior, na gestão do presidente Bolsonaro, até gerou uma rápida harmonia que permitiu a aprovação pelo Congresso da Reforma da Previdência.
“Mas não tenho expectativa de que agora haja mudança de rumo. O modus operandi do atual governo é o de criar um ambiente caótico politicamente em que Bolsonaro ainda preserve a imagem de outsider”, diz Botelho. “Esse tipo de encontro tem um peso cerimonial, mas, assim como no passado, não deve ter efeito longo.”