Molica: Isolamento de Bolsonaro estimula manifestações golpistas
Presidente precisa retomar suas atividades, articular a oposição ao futuro governo e impedir especulações

Depois de entregar o governo ao Centrão, o presidente Jair Bolsonaro (PL) indica ter transferido para terceiros uma outra tarefa: a de contestar o resultado das urnas.
Ao longo de muito tempo, ele questionou a segurança do nosso processo de apuração e totalização, lançou falsas suspeitas, empenhou-se na aprovação do voto impresso, ameaçou desrespeitar o resultado do pleito, acabou alvo de inquérito que investiga a confusão que tentou criar.
Derrotado, Bolsonaro preferiu o isolamento. Trancou-se no Palácio da Alvorada, fez um vago pronunciamento em que se recusou a reconhecer de forma explícita a vitória de seu adversário, publicou vídeo em que condenou bloqueios de rodovias e classificou de bem-vindas manifestações não violentas – aquelas que, ao arrepio da Constituição e do Código Penal, pedem golpe militar.
A ausência do presidente no Palácio do Planalto e sua falsa passividade estimulam boatos e informações desencontradas sobre sua saúde – tema que é de interesse nacional – e alimentam o fervor dos que lutam por uma virada de mesa; seu silêncio fomenta o barulho dos que não aceitam a vontade da maioria e que ainda protagonizam sucessivos atos de agressão no Brasil e no exterior.
O silêncio oficial, a nova tentativa do PL de forjar dados que indicariam supostas falhas de urnas eletrônicas e a não retomada de uma agenda normal de trabalho por parte do presidente impedem que o país volte a uma rotina. A derrota de um candidato à reeleição não pode ser encarada como algo fora da lógica democrática.
Para piorar, o ex-ministro e general da reserva Braga Netto, candidato derrotado a vice-presidente na chapa encabeçada por Bolsonaro, em conversa com pessoas que diziam participar de atos golpistas, fez declarações muito delicadas e pouco claras.
Disse que aqueles que querem a interrupção do processo democrático não deveriam perder a fé, que não poderia se estender no tema, que seria necessário “dar um tempo”. Não pode haver reticências quando se fala em respeito à democracia.
Ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, Braga Netto pode até nutrir simpatias por aqueles que gostariam de vê-lo no Palácio do Jaburu, mas deveria evitar manifestações que estimulam o desrespeito à Constituição e pregam uma intervenção militar que voltaria a jogar o país numa ditadura.
Não faz tanto tempo assim, ele vestia uma farda do Exército decorada pelas quatro estrelas que atestavam o êxito de sua carreira na caserna.
Como outros chefes militares de sua geração – oficiais que não atuaram nos governos autoritários -, Braga Netto conhece bem as feridas abertas na sociedade pelo regime e sabe das limitações institucionais das Forças Armadas, impedidas de participar da vida política.
O uso da arma deforma qualquer discussão, não dá pra conversar com quem coloca uma pistola sobre a mesa.
A resistência de militares em reconhecer os abusos cometidos por antecessores reforça como ditaduras são complicadas e dolorosas até para os que as impõem. O Brasil não pode ousar colocar novos esqueletos em armários institucionais onde ainda há ossos oriundos de um passado ainda tão presente.
A atual geração militar, que tanto se desdobra para defender o que não pode ser justificado, não tem o direito de deixar para seus sucessores um legado semelhante.
Cabe a Jair Bolsonaro acabar com tantas especulações e riscos. Ele precisa reassumir de fato suas tarefas, tratar de articular a oposição ao futuro governo, superar eventuais mágoas – um presidente da República não tem o direito de colocar questões pessoais acima dos interesses da sociedade, não pode, mesmo que com sua ausência, reforçar uma situação de insegurança institucional.
Ele, que teve uma passagem tão tumultuada pelo Exército, tem a obrigação de não colaborar para que as FFAA (Forças Armadas), que tanto diz respeitar, não se aventurem em outra jornada.
Cabe ao presidente também atuar para não complicar a vida de brasileiros que, estimulados pelo recolhimento ativo de seu candidato à Presidência, arriscam-se a ter que responder na Justiça pelo crime de ir às ruas propor um golpe militar.