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    Governo repassa “emendas pix” a cidades com baixo IDH; especialistas questionam falta de direcionamento

    Levantamento exclusivo feito pela CNN mostra que, das 156 cidades beneficiadas, 111 têm IDH no quesito educação baixo ou muito baixo

    Gabriel HirabahasiJoão Rosada CNN

    em Brasília

    Um levantamento exclusivo feito pela CNN com base nos recursos repassados pelo governo federal a prefeituras via “emendas pix” mostra que, das 156 cidades beneficiadas, 111 têm IDH baixo ou muito baixo no quesito educação. Apenas 11 municípios têm IDH alto ou muito alto.

    No quesito renda, 71 cidades têm IDH baixo ou muito baixo, e 32 têm um indicador alto ou muito alto.

    As informações fazem parte de um cruzamento de dados feito pela CNN com os repasses e indicadores de desenvolvimento humano das cidades beneficiadas com as “emendas pix” neste ano.

    A comparação é importante porque essas emendas são criticadas por especialistas em transparência por não atenderem critérios mínimos de prioridade das cidades.

    Como a CNN mostrou, cidades pequenas e pobres receberam a maior parte dos recursos destinados às prefeituras. Ao todo, o governo federal liberou R$ 1,7 bilhão para os cofres de prefeitos e governadores. Cerca de R$ 107 milhões foram repassados às prefeituras.

    A principal crítica às emendas pix se dá no fato de que não há quase nenhuma obrigação de como os recursos devem ser gastos pelas prefeituras e governos estaduais.

    No caso das demais emendas parlamentares, por exemplo, a União repassa os recursos discriminando como o dinheiro será gasto e em quais ações serão incentivadas (construção de hospitais, reforma de escolas, melhorias de infraestrutura etc).

    Enquanto isso, no caso das “emendas pix”, não há nenhum controle nesse sentido. Cidades com baixíssimos índices de educação e renda, por exemplo, receberam milhões por essas emendas, mas não tiveram direcionamento para investir o dinheiro para melhorar esses índices, por exemplo.

    No quesito renda, segundo o levantamento da CNN, 71 cidades que receberam dinheiro de “emendas pix” têm IDH baixo ou muito baixo, e 32 têm um indicador alto ou muito alto.

    “Menos Brasília, Mais Brasil”

    O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) assumiu o mandato em 2019 com o discurso de “Menos Brasília, Mais Brasil”, atendendo a interesses de prefeitos pelo país.

    Pouco tempo depois de sua posse na Presidência, o Congresso Nacional aprovou a emenda constitucional que instituiu as “emendas pix”.

    De autoria da atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e relatada pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG), a PEC permitiu o repasse do dinheiro diretamente aos prefeitos e governadores.

    À época da promulgação da emenda, Aécio disse que a mudança serviria para “melhorar a qualidade do atendimento da saúde, da educação, infraestrutura, gerando empregos”.

    “Quanto mais recursos nessas comunidades, quanto mais recursos descentralizados nós pudermos a partir daqui determinar, melhor será para a sociedade brasileira”, afirmou.

    A diretora de programa da organização Transparência Brasil, Marina Atoji, porém, argumenta que há um “baixíssimo controle” por parte da União sobre como esse dinheiro será gasto pelos prefeitos e governadores e nenhuma garantia de cumprimento de alguns critérios estabelecidos em planejamentos orçamentários, como o Plano Plurianual.

    “[Com] as ‘emendas pix’, não tem garantia de que vão se encaixar nas prioridades que estão ali [no planejamento do governo federal]. Então, você tem uma descentralização excessiva do gasto público, perde de vista as prioridades do Estado como um todo”, ponderou.

    Para a diretora da Transparência Brasil, o argumento de que o repasse para as cidades pequenas serviria para reduzir desigualdades em relação às grandes metrópoles é falho, porque não há métrica para comprová-lo.

    “Não é um argumento válido. É difícil dizer se está atendendo esse propósito, porque é difícil olhar como vai ser feita essa aplicação do dinheiro”, justificou.

    O diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil, Bruno Brandão, pontua que, em tese, não haveria problemas em repassar os recursos para a gestão local, especialmente para cidades com baixo IDH.

    “O problema é como isso é feito, com que tipo de investimento é feito esse repasse. As ‘emendas pix’ tem graves problemas para o interesse público em pelo menos 3 dimensões”, destaca.

    “A primeira é que ela distorce a lógica técnica da formulação de políticas públicas, porque essa locação individual não está inserida em um programa técnico de um ministério com a lógica de priorização de demanda, ela tem uma lógica de priorização política. Então ela distorce a capacidade do estado de formular políticas públicas baseada em demanda em priorização técnica”, coloca.

    “O segundo ponto é que elas pulverizam a corrupção no Brasil, porque elas distribuem milhões de reais do orçamento federal para municípios com baixíssima capacidade institucional para dar transparência e realizar o controle da locação daquele recurso”, adiciona.

    O terceiro ponto, ele diz, é sobre a lógica segundo a qual esses recursos são aplicados: não necessariamente colocando como prioridade as necessidades mais urgentes, mas, sim, aquelas que darão benefícios eleitorais.

    “Os parlamentares que têm acesso a esses recursos usam com a lógica eleitoreira e com isso eles ganham vantagem no processo eleitoral daqueles que têm menos recursos ou com os candidatos que não são parlamentares que vão ter que concorrer com esses que tem milhões para distribuir em prefeituras”, ressalta.

    O economista Raphael Torrezan, doutorando em economia pela Unesp e especialista em Orçamento e Finanças Públicas, concorda que o principal problema das “emendas pix” é justamente o fato de não haver nenhum tipo de controle sobre como os recursos são gastos.

    “O maior problema é que a transferência especial pode ser alocada em qualquer lugar. Ela não tem uma lógica de planejamento de alocação. Nem com o que o governo federal está planejando dentro do seu orçamento e nem com as necessidades básicas dessas regiões”, argumenta.

    Para o economista, muitas vezes os recursos das “emendas pix” acabam servindo para atender a interesses políticos de grupos específicos, em vez de servirem para cumprir critérios técnicos de interesse público, como melhorias na educação, na saúde ou na segurança.

    “Há sim um problema de natureza dessa locação ser livre, de qualquer maneira, de qualquer forma, atendendo muitas vezes um interesse de um pequeno grupo, um interesse político em vez do interesse da coletividade”, afirma.

    Falta de transparência das prefeituras

    Durante a elaboração da reportagem, a CNN tentou contato com as 40 prefeituras que mais receberam recursos por meio das “emendas pix” e com as 20 prefeituras com a maior proporção de dinheiro recebido por habitantes.

    Apenas duas prefeituras responderam: a de Novo Oriente (CE) e a de Salgado Filho (PR). Nos demais casos, a CNN ainda enfrentou problemas de falta de telefones ou e-mails de contato.

    Em alguns casos, nem mesmo os sistemas de atendimento a pedidos via Lei de Acesso à Informação estavam funcionando.

    “Isso está ligado à questão de que é impossível a gente ver como foi gasto cada um dos bilhões liberados por ‘emendas pix’. Primeiro, não só a quantidade de estados e municípios [é imensa], mas mesmo que humanamente fosse possível [consultar todos os entes que receberam recursos], você vai topar com esse tipo de problema [de falta de transparência], que é um problema crônico de regras de transparência, principalmente em municípios menores, que não tem instrumentos para fazer esse controle social”, argumentou Atoji.

    Para a diretora da Transparência Brasil, esse fato “evidencia um problema crônico de transparência e da Lei de Acesso à Informação nos níveis locais”.

    Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil, disse que muitas cidades têm canais de acesso à informação “precários”, o que impossibilita a fiscalização correta desses recursos.

    “O repasse chegando diretamente de uma alocação política por recomendação de um parlamentar direto para os cofres de prefeituras com baixíssima capacidade institucional de controle, muitas delas não tem sequer uma controladoria, uma equipe, dedicada a realizar o controle daquele investimento público. Os canais de acesso à informação são precários”, pontuou.

    As duas únicas cidades que responderam aos questionamentos da CNN informaram que grande parte –ou até a totalidade– dos recursos será gasta com a compra de massa asfáltica.

    No caso de Novo Oriente (CE), dos R$ 4,75 milhões recebidos, R$ 1,35 milhão será gastos com massa asfáltica. Em Salgado Filho (PR), os R$ 500 mil recebidos também serão direcionados a essa finalidade.

    Marina Atoji acrescentou que muitas vezes o dinheiro das “emendas pix” acabam sendo alocados de modo a atender interesses imediatos, em vez de usados para um planejamento a médio e longo prazo.

    “É um indicativo dessas prioridades fora de lugar. Tem também um elemento que as ‘emendas pix’ vêm sem um planejamento por trás delas. Tem casos em que a prefeitura só recebe e nem sabia que ia receber e precisa fazer alguma coisa com aquilo. E não dá tempo”, afirmou a diretora do Transparência Brasil.

    “O processo de licitar, construção de hospital, escola, é algo que toma tempo e o gestor quer capitalizar em cima daquele recurso, o deputado quer capitalizar. Um processo lento, como uma licitação, e um processo mais estrutural não atende a esse propósito”, complementou.

    TCU: fiscalização cabe a instâncias regionais

    O Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu, em março deste ano, a fiscalização sobre a aplicação dos recursos das “emendas pix” cabe exclusivamente aos órgãos locais, inclusive os tribunais de contas dos municípios e dos estados.

    O caso foi relatado pelo ministro Vital do Rêgo e apresentado ao TCU pelo ex-deputado federal Vinicius Poit, do Partido Novo de São Paulo.

    O TCU respondeu à consulta feita por Poit que “a fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas na aplicação de recursos obtidos por meio de transferência especial pelo ente federado é de competência do sistema de controle local, incluindo o respectivo tribunal de contas”.

    Segundo os ministros do TCU, o Tribunal poderá instaurar processo de tomada de contas especial para responsabilizar os entes federados por supostas irregularidades.