Governo Lula adota pronome neutro ‘todes’ em eventos; ministra tem projeto contra linguagem neutra
Em ao menos seis eventos de ministros, os cerimonialistas usaram “todes”. Por exemplo, a que comandou a solenidade de transmissão de cargo do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida
A primeira-dama Rosângela da Silva, conhecida como Janja, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e cerimonialistas usaram a palavra “todes” em cerimônias ao longo desta primeira semana do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Apesar do uso de “todes”, a atual ministra do Turismo, quando deputada federal, Daniela Carneiro (União Brasil), foi coautora de um projeto de lei que busca vedar a utilização de linguagem neutra por escolas públicas e privadas.
“Todes” não faz parte das normas oficiais da língua portuguesa. No entanto, vem sendo utilizada como um pronome neutro para se dirigir a pessoas não binárias — que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou com o gênero feminino.
O termo é incentivado pelo público LGBTQIA+ como forma de inclusão. O pronome “todes” já foi utilizado em post no Twitter pelo Museu da Língua Portuguesa, em 2021. Naquele mesmo ano, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a proibir o uso da linguagem neutra em projetos financiados pela Lei Rouanet.
Nos últimos dias, Janja, Alexandre Padilha e cerimonialistas, entre outros, optaram por incluir a linguagem neutra ao cumprimentar o público presente. “Boa noite, gente. Boa noite a todos, todas e todes”, declarou Janja, ao se dirigir às pessoas na cerimônia de transmissão de cargo da ministra da Cultura, Margareth Menezes.
No mesmo evento, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz e o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, também usaram a palavra.
Padilha começou o discurso na cerimônia de transmissão de cargo como ministro falando “Boa tarde a todas, a todos e a todes”.
Em ao menos seis eventos de ministros, os cerimonialistas usaram “todes”. Por exemplo, a que comandou a solenidade de transmissão de cargo do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
O projeto de lei contra a linguagem neutra apoiado por Daniela Carneiro foi originalmente apresentado pela deputada federal Geovânia de Sá (PSDB-SC) em agosto de 2021 e, então, recebeu o apoio oficial da atual ministra, então deputada, como coautora.
O texto propõe que “fica vedada às escolas públicas e privadas a utilização de linguagem neutra em todos os seus materiais didáticos e documentos oficiais”.
“Faz parte da riqueza e exatidão de nossa língua que a flexão de gênero se estruture dessa forma, expressando perfeitamente os dois gêneros biológicos. Nos plurais, a forma masculina cumpre o papel de englobar feminino e masculino – algo que não é exclusividade do português e que todo brasileiro é capaz de entender desde muito cedo”, diz trecho da justificativa do projeto.
“Entretanto, recentemente, alguns grupos da sociedade passaram a tentar instituir a chamada ‘linguagem neutra’, inventando palavras que seriam classificadas como de gênero neutro. Trata-se de uma deturpação da Língua Portuguesa que, para nossa surpresa, tem sido utilizada por algumas poucas escolas em seus documentos e até mesmo na comunicação com os alunos”, afirma outra parte.
“Ora, uma língua é adquirida, é aprendida, não é inventada; e não é aceitável que essa ilegítima invenção seja reproduzida justamente no local onde os estudantes deveriam aprender a utilizar a Língua Portuguesa de acordo com as regras gramaticais. Para proteger os estudantes brasileiros e evitar tal afronta ao papel do ensino escolar, apresentamos o presente Projeto de Lei, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para vedar a utilização de linguagem neutra em escolas públicas e privadas de todas as etapas de ensino”, conclui.
A professora do Departamento de Linguística do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), Ormezinda Maria Ribeiro, afirma que o uso de “todes” está mais relacionado à uma questão ideológica do que linguística. Isso porque o pronome masculino na língua portuguesa já é neutro e já responde por todos, inclusive os não-binários, explica.
A professora diz que o uso de palavras chamadas de neutras não é unanimidade dentro da academia. A língua vai sendo transformada ao longo do tempo e a escolha do uso ou não dessas palavras é um direito dos governantes, mas não deve haver uma imposição, avalia.
A seu ver, se for utilizada uma palavra com o objetivo de se buscar a neutralidade, como “todes”, todo o texto ou toda a fala da pessoa deve seguir a mesma linha com adaptações. Para isso, todos os pronomes e substantivos que tenham gênero masculino e feminino na língua portuguesa teriam que ter uma nova alternativa tida como neutra. “Ou seja, teria que alterar a língua por inteiro.”
Textualmente, Ribeiro diz que o uso de mais palavras é ruim, pois pode-se perder a objetividade. “Às vezes, a gente gasta palavras demais. ‘Todos’ já encurta.”
Ela ainda acredita que a linguagem sozinha não coopera com o sentimento de inclusão. No caso de “todes” em um texto escrito no computador, por exemplo, seu uso pode acabar excluindo pessoas com deficiência visual, já que programas utilizados por essa parcela da população não costumam reconhecer a palavra, ressalta.