Entidades indígenas criticam proposta de conciliação em voto de Moraes no marco temporal
Ministro votou contra a tese, mas defendeu condições para demarcação, como indenização prévia e possibilidade de compensação
Entidades que representam povos indígenas no Brasil elogiam a posição do ministro Alexandre de Moraes de rejeitar a validade da tese do marco temporal, mas criticam a proposta de conciliação feita pelo magistrado no Supremo Tribunal Federal (STF).
Para esses grupos, o voto de Moraes possui contradições e pode prejudicar a proteção dos povos originários.
O Supremo volta a julgar o caso na quarta-feira (30). A análise foi interrompida em junho deste ano logo depois do voto de Moraes por um pedido de vista (mais tempo para análise) de André Mendonça.
Moraes votou contra a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Ele, porém, avançou sugerindo pontos que podem ser vistos como um meio termo.
Entre as propostas, há a possibilidade de indenização prévia a fazendeiros que tenham ocupado de boa-fé territórios reconhecidos como de tradicional ocupação indígena. Diferente de como é hoje, Moraes propôs que os ocupantes sejam indenizados pelo valor da terra em si e por eventuais benfeitorias feitas no local.
O ministro também defendeu a possibilidade de haver uma “compensação” aos povos originários, para terras em que houver uma ocupação “consolidada” por não indígenas, em que a demarcação seja contrária ao “interesse público”. Nesses casos, seria concedido aos indígenas um território equivalente ao de tradicional ocupação.
O placar de julgamento está 2 a 1 contra a validade do marco temporal. Há diferenças nos votos contrários à tese, apresentados por Moraes e pelo relator, Edson Fachin. O ministro Nunes Marques votou a favor do marco.
O caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários, e começou a ser julgado no Supremo em 2021.
O marco temporal é uma tese jurídica defendida por ruralistas e que contraria os interesses das populações indígenas. Ela determina que a demarcação de uma terra indígena só pode acontecer se for comprovado que os indígenas estavam sobre o espaço requerido em 5 de outubro de 1988 — quando a Constituição atual foi promulgada.
A própria presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, pediu a André Mendonça que ele devolvesse o caso à tempo de sua participação. Ela completa 75 anos em outubro, e deve se aposentar obrigatoriamente.
Críticas
Para a Comissão Guarani Yvyrupa, organização que representa cerca de 233 aldeias guarani nas regiões Sul e Sudeste, a partir da fundamentação usada por Moraes em seu voto podem “emanar efeitos práticos extremamente perniciosos para as comunidades indígenas”.
Segundo a entidade, o voto do ministro “apresenta a mácula insanável da contradição” e mina “qualquer possibilidade de segurança jurídica”. A manifestação foi enviada no processo no Supremo que discute o marco temporal. A entidade foi admitida na ação para colaborar com informações.
Conforme a comissão, se a Corte der aval à proposta de indenização prévia, apresentada por Moraes, as comunidades indígenas estariam sujeitas a decisões desfavoráveis em ações de reintegração de posse, correndo risco de serem expulsas dos seus locais, enquanto o governo não providenciar o pagamento aos fazendeiros.
“Corremos o risco, portanto, de comprometer o escasso orçamento público com demandas indenizatórias de particulares que já se retiraram das terras indígenas mediante o pagamento exclusivamente de benfeitorias, esgotando o orçamento antes mesmo de chegar ao início da resolução das terras ainda não homologadas e cuja situação encontra-se de fato conflituosa”, diz a entidade.
A Comissão também vê como “absolutamente vago” o critério de “interesse público” usado por Moraes para balizar eventual impedimento para se demarcar um local de tradicional ocupação indígena, prevendo a “compensação” por território equivalente.
“A União não seria obrigada a cumprir seu dever constitucional de demarcar as terras indígenas, podendo oferecer barganhas para a comunidade”, afirma.
Dentro desse critério de interesse público, por exemplo, entrariam as ocupações já consolidadas por pessoas não indígenas, como cidades.
Conforme a entidade, são “virtualmente inexistentes” as situações em que terras identificadas e delimitadas pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) sejam “realisticamente impossíveis” de serem demarcadas, “pois quando há situação semelhante o próprio laudo antropológico já se encarrega de retirar esses espaços de propostas de delimitação”.
Em ofício sobre o voto de Moraes, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) disse que a proposta do ministro, na prática, “diminui a proteção constitucional do Direito Originário dos Povos Indígenas sobre suas Terras de ocupação Tradicional” e coloca sobre essas populações o “peso de suportar os erros históricos cometidos pelo próprio estado brasileiro”.
“Não é possível disponibilizar ou vender Terras Indígenas, vez que não possuem valor comercial e não estão sujeitas a qualquer tipo de desapropriação, mas sim, demarcação, mediante a nulidade e extinção dos negócios de compra, venda e exploração envolvendo Terras Indígenas, sem direito à indenização”, afirmou a entidade.
A Apib também criticou a possibilidade de que a União compense comunidades indígenas, destinando terras “equivalentes” caso os locais de tradicional ocupação não possam ser demarcados por irem contra o interesse público.
Conforme a entidade, essa proposta desconsidera a relação dos povos indígenas com as suas terras originárias. Tais territórios, segundo a Apib, são “indispensáveis para a própria manutenção de seus costumes, línguas, tradições, identidades e à conservação dos seus modos de vida”
“Em outras palavras, a própria sobrevivência das comunidades indígenas está intimamente vinculada ao seu território de origem, de modo que se trata de uma relação espiritual, não tendo nada a ver com a mera aquisição do direito de usar a Terra”.
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A tese
O processo do marco temporal em discussão no STF teve sua repercussão geral reconhecida em 2019. O instrumento permite que a definição adotada pela Corte sirva de baliza para todos os casos semelhantes em todas as Instâncias da Justiça.
O caso concreto é uma ação do Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klaño. O território fica às margens do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina. Da população de cerca de 2.000 pessoas, também fazem parte indígenas dos povos Guarani e Kaingang.
O governo catarinense pede a reintegração de posse de parte da área, que estaria sobreposta ao território a Reserva Biológica Sassafrás, distante cerca de 200 quilômetros de Florianópolis.
A data da promulgação da Constituição Federal – 5 de outubro de 1988 – é o ponto central da tese do marco temporal. No artigo 231 da Carta Magna, está estabelecido o seguinte:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
A proposição de um marco temporal já havia sido ventilada antes, mas ganhou tração a partir de um precedente que apareceu em julgamento do próprio STF, em 2009, quando a Corte julgou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Na ocasião, os ministros entenderam que os indígenas tinham direito ao território porque estavam no local na data da promulgação da Constituição.
A partir daí a tese passou a ser mobilizada para os interesses contrários aos indígenas: ou seja, se eles poderiam também pleitear as terras sobre as quais não ocupassem na mesma data.