Divergências na PGR marcaram envio ao STF de pedido para investigar Transparência Internacional
Ministro do STJ “ignorou” manifestação de Elizeta Ramos e atendeu pedido de Lindôra Araujo, número 2 de Aras
As gestões de Augusto Aras e Elizeta Ramos no comando da Procuradoria-Geral da República (PGR) tiveram posições contraditórias sobre o tribunal em que deveria tramitar o pedido para investigar a Transparência Internacional.
Ambas as manifestações foram apresentadas perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde o pedido foi protocolado e tramitava até o final do ano passado. A gestão Aras defendia sua ida ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a de Elizeta, sua permanência no STJ. O entendimento da PGR sob Aras prevaleceu.
Nesta segunda-feira (5), o ministro Dias Toffoli, do STF, determinou uma investigação sobre o papel da organização não-governamental na gestão de recursos oriundos do acordo de leniência do grupo J&F.
A CNN teve acesso às duas manifestações da PGR e à decisão que enviou o caso para o STF no final de 2023. Todas elas estão em sigilo.
Na gestão Aras, a PGR foi favorável ao envio do caso ao STF. Um dos pontos citados pela vice-procuradora-geral Lindôra Maria Araújo para embasar a posição foi o de que haveria conexão com um caso relatado por Dias Toffoli no tribunal.
“Os fatos noticiados nestes autos possuem conexão fática e probatória com aqueles (…), notadamente no que se refere a atuação da Força-Tarefa da Lava-Jato no âmbito de cooperação jurídica com os organismos internacionais e a informalidade no envio e recebimento das informações que ensejaram diversas condenações no âmbito da Operação Lava-Jato”, sustentou Lindôra.
Já Elizeta Ramos, que comandou a PGR entre as gestões Aras e Paulo Gonet, afirmou que essa conexão era inexistente.
A então procuradora-geral afirmou que os casos tratam de empresas diferentes: a ação de Toffoli se refere ao acordo de leniência da Odebrecht e o pedido para investigar a Transparência Internacional dizia respeito ao acordo firmado pelo grupo J&F.
Elizeta também ressaltou em seu parecer que os envolvidos e citados no pedido não tinham prerrogativa de foro no STF — onde são investigados deputados, senadores, ministros, presidente e vice-presidente da República.
As duas manifestações foram feitas em um período de menos de um mês. Lindôra, então número 2 de Augusto Aras, assinou a sua em 22 de setembro. Elizeta, em 18 de outubro, logo depois de assumir o comando interino da PGR.
Os pareceres foram enviados ao ministro Humberto Martins, responsável pelo caso no STJ — onde o deputado Rui Falcão (PT-SP) pediu que a ONG fosse investigada, em março de 2021.
O ministro Humberto Martins decidiu, em 30 de novembro, enviar o caso ao STF, acolhendo o pedido mais antigo — feito pela vice de Aras — sem se aprofundar no mais recente — o da procuradora-geral interina.
Na decisão a qual a CNN teve acesso, o ministro cita as duas posições divergentes da PGR e conclui:
“Mostra-se adequada e prudente a remessa dos autos ao Ministro Dias Toffoli, relator da Reclamação n. 43.007/DF, que poderá analisar todos os argumentos deduzidos nas duas manifestações do Ministério Público Federal”.
O caso chegou ao STF em 7 de dezembro. A decisão de Toffoli foi assinada na manhã desta segunda-feira (5).
Decisão
Ao determinar a investigação, Toffoli disse que será apurada “eventual apropriação indevida de recursos públicos” pela Transparência Internacional e “seus respectivos responsáveis”.
Na decisão, Toffoli manda a PGR encaminhar documentos e cópias de procedimentos internos sobre o cumprimento de tratativas internacionais pela Lava Jato e sobre o acompanhamento de acordos de leniência.
O magistrado também ordenou o envio do material ao Tribunal de Contas da União (TCU) e à Controladoria-Geral da União (CGU) para análise.
Toffoli disse que, conforme apontam cláusulas do acordo de leniência da J&F, “ao invés da destinação dos recursos, a rigor do Tesouro Nacional, ser orientada pelas normas legais e orçamentárias, destinava-se a uma instituição privada, ainda mais alienígena e com sede em Berlim”, em referência à Transparência Internacional.
Pedido
No pedido para investigar a ONG, o deputado Rui Falcão acusou procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de supostos crimes e violações de deveres. Ele citou ligações do órgão com a Transparência Internacional com o fim de desenvolver ações de “combate à corrupção”.
Segundo o congressista, “sob o pretexto” de desenvolver ações de combate à corrupção, o Ministério Público Federal teria concedido à Transparência Internacional “poderes de gestão e execução sobre recursos públicos”, sem que se a fiscalização e controle do Estado.
O deputado citou “circunstâncias” a serem “esclarecidas” sobre a atuação da entidade e de membros do MPF que atuaram nas operações “Greenfild”, “Sepsise” “Cui Bono”, “Carne Fraca” e “Lava Jato”.
Em manifestação no caso, a PGR apontou que a Transparência Internacional atuaria na qualificação de uma entidade privada que seria criada para administrar o dinheiro de um fundo que seria abastecido com parte dos valores pagos pelo grupo J&F em seu acordo de leniência.
A Transparência Internacional, segundo a PGR, passaria depois a estruturar a gestão dos desembolsos dessa entidade privada, além de auxiliar na apresentação de um projeto de investimento na prevenção e no controle da corrupção.
Segundo a PGR, seria “evidente” que o arranjo levaria a administração privada dos valores, de cerca de R$ 2,3 bilhões, “sem que se submeta aos órgãos de fiscalização e controle do Estado”.
Outro lado
Em nota, a Transparência Internacional disse que “são falsas as informações de que valores recuperados através de acordos de leniência seriam recebidos ou gerenciados pela organização”.
“A Transparência Internacional jamais recebeu ou receberia, direta ou indiretamente, qualquer recurso do acordo de leniência do grupo J&F ou de qualquer acordo de leniência no Brasil. A organização tampouco teria – e jamais pleiteou – qualquer papel de gestão de tais recursos”, disse a organização.
“Através de acordos formais e públicos, que vedavam explicitamente o repasse de recursos à organização, a Transparência Internacional – Brasil produziu e apresentou estudo técnico com princípios, diretrizes e melhores práticas de transparência e governança para a destinação de ‘recursos compensatórios’ (multas e recuperação de ativos) em casos de corrupção. O relatório incluía recomendação de que o Ministério Público não deveria ter envolvimento na gestão destes recursos. O estudo e as recomendações não tiveram e não têm qualquer caráter vinculante ou decisório. O Memorando de Entendimento que estabeleceu esta cooperação expirou em dezembro de 2019 e não foi renovado, encerrando qualquer participação da Transparência Internacional”.
A entidade ainda afirmou que “alegações” do tipo já foram “desmentidas” pela própria ONG e por “autoridades brasileiras, inclusive pelo Ministério Público Federal. Apesar disso, estas fake news vêm sendo utilizadas há quase cinco anos em graves e crescentes campanhas de difamação e assédio à organização”.
“Reações hostis ao trabalho anticorrupção da Transparência Internacional são cada vez mais graves e comuns, em diversas partes do mundo. Ataques às vozes críticas na sociedade, que denunciam a corrupção e a impunidade de poderosos, não podem, no enfatizar, ser naturalizados”, disse a ONG. “Seguiremos cumprindo nosso papel na promoção da transparência e da integridade no Brasil e no mundo”.
Nota J&F
A empresa J&F também se posicionou em relação às informações apresentadas pela Transparência Internacional. Veja a nota na integra:
“A Transparência Internacional mente. A ONG tentou insistentemente se apropriar de recursos do acordo de leniência da J&F e de outras empresas. Foi o próprio Bruno Brandão, em pessoa, quem indicou à J&F os dados da Transparência Internacional para receber o depósito de recursos do acordo de leniência, enquanto era estruturada a fundação planejada por ela para gerir os valores.
O dever e o direito de executar os projetos sociais previstos no acordo de leniência eram da própria J&F. Um despacho do Ministério Público Federal, de abril de 2019, pressionou a empresa a aceitar as condições de governança impostas pela Transparência Internacional. Foi a resistência da J&F em desviar esses recursos que frustrou procuradores e seus parceiros e agravou a perseguição contra a companhia.
A reação da Transparência Internacional contra qualquer tipo de escrutínio legal às suas atividades demonstra que ela não está comprometida com os valores que prega”.