Brecha na PEC do Estouro pode abrir R$ 23 bi no teto de gastos ainda em 2022
Trecho no esboço da proposta abre margem para que governo Bolsonaro, no apagar das luzes, possa desbloquear algumas despesas, incluindo emendas de relator
A proposta da equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para viabilizar o aumento no pagamento do Bolsa Família no ano que vem pode ter como efeito colateral um benefício direto à base do presidente Jair Bolsonaro (PL), possibilitando novos recursos para o Palácio do Planalto nos últimos dias de governo.
Segundo fontes do Congresso ouvidas pela CNN sob reserva, o texto da PEC do Estouro contém uma brecha que pode abrir espaço orçamentário para o governo Bolsonaro ainda em 2022. Nos cálculos de algumas fontes ouvidas, esse espaço pode chegar a cerca de R$ 23 bilhões.
A CNN conversou com fontes técnicas que analisaram a minuta da proposta divulgada pelo governo eleito nesta semana. De acordo com o esboço da PEC (que no jargão legislativo é chamado de “anteprojeto”), os efeitos da emenda constitucional se aplicam a partir de sua promulgação.
No trecho que trata da retirada do Auxílio Brasil (ou do novo programa que deve substituí-lo a partir do ano que vem), porém, a proposta é clara ao dizer que os efeitos valem somente a partir de 2023. No caso da retirada do teto de parte do excesso de arrecadação e das receitas de instituições federais de ensino e de recursos obtidos por meio de doações para a execução de projetos ambientais, por outro lado, não há essa especificação.
No entendimento dessas fontes ouvidas pela CNN, essa omissão no texto abre essa brecha que pode oferecer ao governo Bolsonaro, no apagar das luzes, mais alguns bilhões para aplicar.
No cálculo de fontes do Congresso especialistas em orçamento, seriam cerca de R$ 23,8 bilhões fora do teto disponíveis para gastar, seguindo essa interpretação. A maior parte, nesse cálculo, viria do chamado excedente de receita (ou seja, quando a arrecadação é maior do que a prevista inicialmente): R$ 22,9 bilhões. O restante viria de receitas de instituições federais (cerca de R$ 800 milhões) e de recursos de doações para a execução de projetos ambientais (cerca de R$ 12 milhões).
Apesar dessa brecha, o uso desses recursos não é automático porque depende da aprovação de mudanças no Orçamento de 2022 para incluir essas despesas. Isso teria de ocorrer na reta final de trabalho dos congressistas.
Esses recursos que seriam “abertos” caso a PEC seja aprovada com essa brecha podem ser utilizados para liberar recursos atualmente bloqueados no Orçamento por causa do limite imposto pelo teto de gastos. Estão nesse rol despesas contingenciadas do Ministério da Educação (MEC), por exemplo, e até emendas de relator (que, popularmente, ficaram conhecidas como “Orçamento Secreto”).
Atualmente, estão bloqueados quase R$ 7,7 bilhões das emendas de relator, apontadas por partidos de esquerda como um mecanismo usado pela troca de apoio no Congresso por parte do governo Bolsonaro.
Além disso, em outubro, o governo anunciou um bloqueio de R$ 2,4 bilhões no orçamento do Ministério da Educação (MEC). Esse valor é referente à soma de R$ 1,34 bilhão bloqueado em julho e agosto e R$ 1,059 bilhão bloqueado em setembro. Os valores foram contingenciados do limite de empenho do MEC, ou seja, aqueles recursos que deveriam ser repassados ao orçamento do ministério.
A PEC apresentada pelo governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem o objetivo de tirar despesas do programa social Auxílio Brasil (ou ao menos parte delas) do teto de gastos, regra criada no governo de Michel Temer que impõe um limite para o crescimento das despesas públicas.
Com isso, o governo eleito quer criar o espaço necessário para aumentar o pagamento de cerca de R$ 405 (como previu o governo Bolsonaro na lei orçamentária enviada ao Congresso) para R$ 600 –o que teria impacto de cerca de R$ 52 bilhões anuais– e pagar R$ 150 a mais para cada criança na família –o que aumentaria os gastos em R$ 18 bilhões ao ano.
Essa brecha vista por especialistas na PEC é o que no jargão político se chama de “jabuti”. A expressão foi criada pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, que disse: “Jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente, ou foi mão de gente”. O termo é usado para se referir a trechos de uma proposta que destoam do objeto inicial da proposta.
Fontes ouvidas pela CNN que têm participado das discussões da equipe do gabinete de transição reconheceram a possibilidade dessa brecha no esboço do texto divulgado nesta semana, mas negam que tenha havido qualquer intenção na elaboração da minuta para possibilitar esse espaço fiscal para o atual governo.
A CNN entrou em contato com a equipe do gabinete de transição sobre essa brecha que poderia ser aberta no teto de gastos de 2022 e sobre o cálculo do montante disponível para o governo Bolsonaro, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.