Atas de reuniões do governo com Pfizer mostram tensão e resistência com empresa
A CNN teve acesso a cinco atas das reuniões entre as cúpulas da Pfizer e do Ministério da Saúde ocorridas em diferentes momentos da pandemia
A CNN teve acesso a cinco atas das reuniões entre as cúpulas da Pfizer e do Ministério da Saúde ocorridas em diferentes momentos da pandemia entre agosto de 2020 e março de 2021 e que mostram as dificuldades enfrentadas pela empresa para assinar o contrato de venda de vacinas com o governo brasileiro. Isso ocorre desde a primeira reunião, ocorrida a pedido da empresa e na qual uma série de dados são requisitados pelo governo. Os dados mostram que em uma reunião em outubro a Pfizer alertou o governo que já teria a vacina no início de dezembro. Em outra, em novembro, fica nítida a tensão entre os dois lados diante das exigências da farmacêutica para que o governo incluísse as algumas cláusulas, que se tornaram a principal justificativa pelo atraso na assinatura do contrato. Neste encontro, o secretário-executivo Elcio Franco interrompe a Pfizer assim que o debate sobre as cláusulas se inicia.
A primeira reunião que se tem registro é do dia 6 de agosto. Nela, a ata diz que “a reunião foi realizada, via videoconferência (Microsoft Teams) a pedido do laboratório Pfizer para saber sobre possível interesse do MS na aquisição de doses da vacina que está sendo desenvolvida pelo laboratório”. Elcio comandou a reunião pelo ministério e pediu que fosse protocolada a proposta.
“Os participantes falaram sobre preço, pagamento e o Secretário solicitou que a proposta seja protocolada junto ao MS com informações adicionais sobre a eficácia após a primeiras doses, tempo de imunogenicidade da vacina, devolução em caso de ineficácia e simulação de proposta para 70 milhões de doses com cronograma de entrega”.
Na reunião do dia 27 de outubro, a Pfizer já informa ao ministério que havia previsão de aprovação da sua vacina pelo FDA no final de novembro e início da vacinação em dezembro de 2020. “A Pfizer informa estudo com cerca de 44 mil participantes nos EUA, inicialmente de 12 a 85 anos, incluindo comorbidades. Realização de estudo no Brasil com mais de 33 mil participantes. Na próxima semana deverá entregar resultados, prevendo aprovação no FDA no final de novembro/2020 e início da vacinação em dezembro/2020”, diz a ata da reunião.
Armazenamento da vacina é discutido
Ambos falam sobre as condições de armazenamento da vacina: “Temperatura conservação de -70ºC em gelo seco por até 15 dias e por 5 dias em refrigerador (2º a 8ºC)”. A farmacêutica apresenta uma solução. “Possibilidade de fornecer solução: caixa térmica com gelo seco para até 5 mil doses de vacinas, e com leitor para temperatura. Propõe entrega direto nos pontos de vacinação, e logística reversa da caixa. Caixa não inclusa no valor da vacina, deve ser devolvida à Pfizer.” O ministério rebate com outra solução: “Ministério da Saúde sugere alterar o material da caixa para plástico, ou equivalente, resistente à água, devido as regiões do país com períodos de fortes chuvas” e depois “ressalta que a aquisição das vacinas no país tem como premissa a aprovação e o registro na Anvisa”.
Em 17 de novembro ocorre a reunião mais tensa. São 14 representantes pela Pfizer e 5 pelo Ministério da Saúde. A Pfizer informou que os estudos de fase III encontram-se em fase final de desenvolvimento. A primeira parte da reunião foi sobre “aspectos técnicos e logísticos” da vacina e sua distribuição. Quando partiram para os “aspectos jurídicos”, a reunião ficou tensa.
O governo e a farmacêutica debateram a elaboração de um Memorando de Entendimento, uma espécie de pré-contrato que o ministério iria encaminhar. A Pfizer deixou claro que esse formato não a obrigaria a nada e pediu pressa. “A Pfizer registrou que o Memorando de Entendimento (MoU) proposto não terá caráter vinculante e deverá ser celebrado até 25 de novembro de 2020 diferente dos entendimentos anteriores em que eles queriam que fosse vinculante e que o contrato fosse assinado antes do registro da vacina e que fosse feito um pagamento antecipado de parte do valor”, diz a ata.
Além disso, o documento mostra que “a Pfizer informou que deve concluir os estudos clínicos da fase 3 e iniciar a submissão de registro da vacina ao FDA (EUA) que ocorrerá nesta semana e que a submissão à Anvisa estaria condicionada à assinatura do MoU com o Ministério da Saúde”.
Passam então ao debate sobre as cláusulas que a Pfizer exigia. A empresa pede que elas sejam incluídas no pré-contrato e o documento deixa clara a divergência instalada. “É o momento em que o Ministério da Saúde pontuou de imediato que não concordava.”
A reunião prossegue com o governo deixando clara sua divergência. “O MS pontuou inúmeras divergências em relação a essa proposta da Pfizer, que transfere integralmente a responsabilidade civil ao governo federal. Além disso, ressaltou-se que não há previsão jurídica que assegure ao ente público celebrar contrato de compra de produto inexistente, na medida em que a vacina em discussão ainda não possui os devidos registros regulatórios. O MS, adicionalmente, informou que somente poderia celebrar qualquer ato vinculante, após os devidos registros do produto na Anvisa.”
Ao final, o ministério ainda “pontuou inúmeras divergências em relação a essa proposta da Pfizer, que transfere integralmente a responsabilidade civil ao governo federal. Além disso, ressaltou-se que não há previsão jurídica que assegure ao ente público celebrar contrato de compra de produto inexistente, na medida em que a vacina em discussão ainda não possui os devidos registros regulatórios” e “adicionalmente, informou que somente poderia celebrar qualquer ato vinculante, após os devidos registros do produto na Anvisa”.
No dia 18 de fevereiro, ocorre reunião para tratar da assinatura do contrato e novamente as cláusulas que a Pfizer exigia são motivos de divergência.
“O secretário-executivo (Elcio Franco) agradeceu o envio do contrato, mas ressaltou que há cláusulas que extrapolam as competências do MS”. Na sequência, Elcio diz que diante do impasse encaminharia a proposta para departamentos jurídicos do governo.
“Nesse sentido, o contrato foi enviado para a Consultoria Jurídica junto ao MS e para a Casa Civil da Presidência da República para que haja análise da viabilidade para aquisição de vacinas contra Covid-19. Reiterou que há grande interesse do MS em prosseguir com as negociações, mas pontuou que é preciso o posicionamento da CONJUR/MS e do governo federal para que sejam feitas as gestões necessárias que permitam dar prosseguimento.”
É nessa reunião que a nova presidente da empresa no Brasil, Marta Diez, apresenta-se ao governo. Ela lembra inclusive que o Brasil vivia um “momento determinante” na pandemia. Naquele dia, o país batia recorde de óbitos em um dia por Covid-19. “Marta Diaz apresentou-se como nova Presidente da Pfizer Brasil, destacando que Carlos Murillo foi para a Pfizer América Latina. Mencionou que a empresa está aberta para trabalhar e apoiar as ações governamentais. Espera que o registro definitivo da vacina seja obtido em breve. A Presidente da Pfizer entende que o Brasil vive um momento determinante, por isso encaminharam a primeira versão da minuta. Adicionalmente, foram apresentados novos representantes da Pfizer.”
Uma das executivas da Pfizer fala também no momento “crítico” do país àquela altura. Isso ocorre porque o argumento dos representantes do ministério é de que havia um debate no Congresso Nacional para que fossem incluídos artigos na Medida provisória que, segundo o governo, viabilizariam a assinatura do contrato.
“Shirley Oliveira pediu acesso à CONJUR/MS, porque existiriam pontos que são puramente jurídicos. A Pfizer teria pareceres que dão suporte às cláusulas do contrato. Outro ponto relevante seria a necessária adequação da legislação, que já constavam dos termos do MoU. O país vive o momento de revisão da MP 1026, de 06 de janeiro de 2021. Destaca que a MP não trouxe todas as cláusulas requeridas pelo MS, mas é um momento crítico de revisão da MP, que recebeu diversas emendas. Essas emendas seriam votadas hoje, e, no parecer prévio do relator, a emenda 76 foi descartada. Assim, haveria necessidade de levar os pontos relevantes do contrato para o relator da MP. Menciona a necessidade de o MS intervir no Congresso, para endereçar os pontos necessários para contratação das farmacêuticas. A representante da Pfizer entende que é oportuno avaliar o apoio do MS junto ao Congresso neste momento crítico. Estão prevendo assinar o contrato definitivo até 19 de março de 2021, para ter entregas como disposto no cronograma.”
Elcio diz então que iria mandar o contrato para a Casa Civil “julgar o que tem que ser feito” e que nove ministérios também deveriam ser ouvidos. “O Secretário-Executivo esclareceu que a intenção do MS em mandar o contrato para a Casa Civil é para que o governo federal possa julgar o que tem que ser feito. Outros órgãos, como CGU, AGU, MC, MCTI, SGOV, MRE, SG, ME, Casa Civil, devem ser ouvidos, porque a SEGOV é que faz articulação com o Congresso. Essa MP tem uma longa jornada até a sanção presidencial. Como exemplo, citou a MP da Covax Facility que somente agora está para sanção presidencial. Ainda é possível que sejam feitos novas emendas ou supressões nas duas casas do congresso. Logo, essa via da alteração da MP no Congresso saí da governabilidade do MS.”
No dia 5 de março ocorre mais uma reunião, mas sem ninguém do alto escalão em nenhum dos dois lados. O contrato ainda não estava fechado, mas o governo questionou a farmacêutica sobre as novas variantes do coronavírus que já se disseminavam pelo país.
“Questionada sobre perspectiva de estudo de mundo real em relação à variante brasileira. No momento, a Pfizer não tem dados sobre a resposta da vacina em relação à variante brasileira. Dados do estudo realizado no Brasil estão considerados para análise da eficácia global. Estudos complementares serão necessários.”