Suspensão do Censo compromete distribuição de vacinas e investimentos
Adiamento foi confirmado com sanção do Orçamento; especialistas dizem que apagão de dados levantados pelo IBGE impacta formulação de políticas públicas
Com a sanção do presidente Jair Bolsonaro do Orçamento de 2021, na quinta-feira (22), foi confirmada a suspensão da realização do Censo Demográfico deste ano por falta de recursos. O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, afirmou nesta sexta-feira (23) que a pesquisa será adiada.
“Não há previsão orçamentária para o Censo. Portanto, ele não se realizará em 2021. As consequências e gestão para um novo Censo serão comunicados ao longo deste ano, em particular, a partir de decisões tomadas na Junta de Execução Orçamentária”, disse Rodrigues.
Sem o Censo, a distribuição de vacinas, o planejamento em projetos sociais, o investimento das empresas – tudo isso pode ser prejudicado, segundo especialistas consultados pela CNN Brasil.
No dia 6 de abril, já havia sido anunciada a suspensão do processo de seleção para pesquisadores do Censo 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na prática, essa medida já representava o cancelamento do recenseamento, segundo Marta Azevedo, uma dos 13 integrantes da Comissão Consultiva do Censo Demográfico.
“A falta do levantamento vai comprometer até a distribuição de vacinas contra a Covid-19, pois não haverá dados precisos e atualizados sobre a população em cada município”, diz Azevedo, que também é pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O cancelamento do processo de seleção dos recenseadores é reflexo do corte de 96%, feito no último dia 25 de março pelo Congresso Nacional, no orçamento para a pesquisa. Com isso, o total de recursos previstos para a realização do levantamento, que ocorre a cada dez anos, caiu de R$ 2 bilhões para R$ 71 milhões. A sanção de Bolsonaro ao Orçamento confirmou o corte. Segundo o IBGE, essa medida inviabiliza o trabalho.
No dia seguinte ao corte, a então presidente do IBGE, Susana Guerra, pediu demissão — ela havia assumido o posto por indicação do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela alegou razões pessoais.
O Censo deveria ter ido a campo em 2020, e os resultados seriam divulgados em setembro deste ano, mas o levantamento foi adiado por causa da pandemia de Covid-19. Antes da questão do orçamento, o órgão trabalhava para dar início à coleta de dados em agosto próximo, com visitas a todos os cerca de 71 milhões de lares brasileiros.
O primeiro Censo Demográfico no Brasil foi realizado em 1872. A partir de 1920, passou a ser feito a cada década, sempre nos anos terminados em zero. Em 1930, não foi feito por causa da Revolução que colocou fim à República Velha. Em 1990, foi adiado em um ano por conta do Plano Collor. E em 2020, foi novamente adiado, por causa da pandemia. “Claro que não colocaríamos pesquisadores em campo se as condições da pandemia não permitirem. Iríamos adiar mais uma vez, mas o processo todo não seria cancelado. Estamos trabalhando nesse Censo desde 2016”, disse Susana Guerra.
Súplicas ao Congresso
Até o repasse de impostos para os municípios pode ser afetado, já que a distribuição das verbas públicas leva em conta cálculos populacionais que já estão defasados — os mais recentes são projeções de 2018, do próprio IBGE, baseadas no Censo de 2010, o último realizado. No dia 22 de março, antes da votação do Orçamento no Congresso, Susana Guerra, ainda no IBGE, e o diretor de Pesquisas da instituição, Eduardo Rios Neto, publicaram um artigo no jornal “O Globo” defendendo que houvesse orçamento para a realização do Censo.
“Em 2019, do montante total de cerca de R$ 396 bilhões que foram transferidos pela União a estados e municípios, cerca de R$ 251 bilhões (65% do total) foram transferências que consideraram dados de população. A última contagem populacional foi realizada no Censo Demográfico de 2010, o que nos coloca distantes 11 anos desta contagem”, diz um trecho do texto.
No artigo, eles afirmam que a coleta de dados seria feita com base em três pilares: o da segurança e da saúde, com protocolos rígidos para evitar o contágio dos recenseadores; o da coleta mista, na modalidade presencial, por telefone ou por internet; e o da tecnologia, com plataformas que permitem o monitoramento do processo em tempo real.
“A defesa do Censo Demográfico é crucial não apenas para o pacto federativo, mas também para a geração de dados que permitam solucionar os enormes desafios impostos ao país”, afirmam no parágrafo final.
Naquele mesmo dia, oito ex-presidentes do IBGE publicaram um manifesto suplicando pela preservação das verbas para o levantamento. “Nosso último censo ocorreu em 2010, e, sem ele, o Brasil se junta ao Haiti, Afeganistão, Congo, Líbia e outros estados falidos ou em guerra que estão há mais de 11 anos sem informação estatística adequada para apoiar suas políticas econômicas e sociais”, diz a nota.
Susana Guerra pediu demissão quatro dias depois, com a decisão do Congresso. Rios Neto assumiu a presidência do IBGE no dia 14. “Os reflexos podem atingir todos os aspectos da vida da população”, diz Luciano Caparroz Pereira dos Santos, membro da Rede pela Transparência e Participação Social, movimento formado por organizações da sociedade civil e cidadãos que atuam para ampliar a transparência do poder público. “Os censos, em países desenvolvidos, são feitos de cinco em cinco anos. Fazer a cada dez, como aqui, já é defasado. Não fazer, ainda mais em tempos de pandemia, quando tudo muda muito rápido, é pior ainda.”
Informação para investir
Investimentos do setor público em saúde, educação, geração de empregos – tudo isso é balizado por dados que o IBGE levanta e que são atualizados pelo Censo. Mas a utilização não fica só aí. Investimentos de empresas nacionais e de companhias estrangeiras no Brasil também podem ser paralisados se o Censo não for feito.
“Como uma empresa vai traçar seus planos de crescimento? Como um investidor vai colocar dinheiro no país se ele não tem dados confiáveis?”, indaga Helio Zylberstajn, economista e professor da Universidade de São Paulo e integrante dos conselhos da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Para ele, a falta do censo pode agravar o desemprego e inviabilizar a reforma da Previdência, feita em 2018.
Mesmo com outras pesquisas e tipos de dados hoje disponíveis, o Censo segue imprescindível, afirma Renato Meirelles, diretor do instituto de pesquisas Locomotiva. “A pandemia mostrou, e o próprio Ministério da Economia admitiu, que 30 milhões de pessoas no Brasil hoje são invisíveis. Não têm CPF, não têm conta em banco, não têm internet. Então, a única maneira de ter um retrato do que é o país hoje é o Censo”, afirma. “Sem o censo não tem transparência, não tem foco e isso favorece a corrupção”, completa.
Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acrescenta que o levantamento do Censo, por não ser por amostra, e sim por consulta a quase toda a população, é o que dá harmonia às outras pesquisas.
“A reconstrução do país depois da pandemia, se esse dia chegar, depende dos dados do Censo. Mesmo com outras pesquisas, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), só o Censo dá essa fotografia do Brasil”, afirma. Para o economista, sem dados transparentes, não dá para se elaborar nada direito. “Mesmo durante a pandemia, sem dados demograficos e de populacao, as medidas vao sendo tomadas às cegas.”
“O estrago pode durar anos se o censo não for feito”, reitera Zylberstajn. “Para esse governo, os dados podem não parecer importantes porque eles não fazem nada. Mas não é só essa administração que precisa dos dados. As outras também vão precisar.”
Consultado, o Ministério da Economia disse que não se pronuncia sobre o assunto.