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    Quilombo é resistência e organização; e por isso incomoda

    Repórter da CNN descreve sua experiência no Quilombo do Cafundó, no interior de São Paulo

    Jairo Nascimentoda CNN

    São Paulo

    Pela primeira vez na vida eu pude conhecer um quilombo.

    Logo que cheguei no Cafundó, no interior de São Paulo, eu conversei com o Alex, a Cíntia e a Regina.

    Ao invés de chamá-los de “entrevistados”, eu poderia reconhecê-los como “primos”. Eles são quilombolas e fazem parte das 32 famílias que moram lá. Temos laços distantes de sangue. Os antepassados deles e os meus vieram de Angola.

    Eu, como quase qualquer outro afrodescendente no Brasil, só pude descobrir o passado ao fazer um exame genético. Para os quilombolas, basta olhar para o lado ou ouvir as histórias da vovó. O Quilombo é a descoberta de um mundo novo.

    Até então, reconhecia que três experiências foram fundamentais para eu entender a minha negritude.

    A primeira foi na infância, em casa e com os ensinamentos dos meus pais sobre o que eu era, meu potencial e o meu lugar. A segunda experiência, na adolescência, aconteceu ao conhecer a obra musical do Jorge Ben Jor e o peso do seu violão e letras negras com alegria, orgulho e matrizes africanas. Já a terceira mistura a dor do racismo e compreensão do que ele causou (e a ainda causa) com a pesquisa, estudo e letramento racial.

    No dia 19 de agosto de 2022, fui surpreendido com a quarta experiência. Pela primeira vez, encontrei pretos que sabiam a história de cinco ou seis gerações anteriores. E mais, todos pretos libertos mesmo quando o estado brasileiro insistia em tratá-los como objetos de posse.

    Durante a visita e entre um papo e outro, a conversa foi com uma sensação de cumplicidade. O resultado não poderia ser diferente: conhecer a minha identidade. Quem dera se todo preto no Brasil pudesse fazer o mesmo.

    O quilombo foi, para mim, um novo RG, foi o ritmo do tambor africano que ecoa no Brasil há séculos e se apresentou como fruto da árvore genealógica. O quilombo é passado e presente em uma costura harmônica no tecido do tempo.

    Jairo Nascimento e Letícia Vidica (à dir.), da CNN, junto a Dona Regina, matriarca do Quilombo do Cafundó / Arquivo pessoal

    Enquanto na experiência branca a identidade racial é marcada pela nostalgia e pela possibilidade da manifestação da origem na cultura e, geralmente, sob ótica positiva, para os negros a identidade racial se revela, de início, na discriminação. Crescemos sem identidade, convivemos com os piores índices sociais, temos direitos negados cotidianamente. Ou seja, somos ensinados que ser negro é lidar com a diversidade durante todo o tempo.

    A base da máquina escravocrata criada por portugueses e brasileiros está na desorganização que começa no sequestro de escravizados, separa famílias, acaba com o laço da terra, transforma manifestações em crime, violenta as mulheres e amputa tudo, de membros à humanidade.

    Sob esse peso, o quilombo nasce e, assim, ele resiste sendo insuportavelmente organizado. O quilombo é antítese e, por isso, ele não é reconhecido pelo estado e pela sociedade. A organização quilombola é a resposta para crime escravocrata. O senhor de escravos teme o ordenamento.

    Em 1791, escravizados revoltosos derrubaram o governo de São Domingos e aboliram a escravidão no atual Haiti. Os renegados mudaram a sociedade. Foi no quilombo que entendi. À sua maneira, os quilombolas promovem no Brasil parte dos efeitos da Revolução Haitiana. Eles resistem a tudo e a todos. São pretos donos da própria história. Viva o quilombo do Cafundó que, de tão distante, está perto e não sairá mais de mim.