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    Pobreza leva crianças e adolescentes para trabalho informal e evasão escolar

    Crise econômica e dificuldades do esquema híbrido prejudicam retomada presencial; conheça histórias de sala de aula e de quem escapou dela

    Adolescente trabalhando em cemitério no Rio durante a pandemia, pintando cruzes e limpando tumbas
    Adolescente trabalhando em cemitério no Rio durante a pandemia, pintando cruzes e limpando tumbas Fabio Teixeira/NurPhoto via Getty Images

    Carolina Fariascolaboração para a CNN

    “Todos os alunos querem trabalhar, porque para eles é mais importante que a escola. Trabalho põe comida na mesa.” A professora Cátia (nome fictício) leciona há 12 anos em um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública) em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro.

    Ela viu o número de alunos de suas turmas diminuir com a volta às aulas presenciais.

    Um dos motivos observados por Cátia – que pediu para não se identificar para não expor os estudantes – e por outros professores ouvidos pela reportagem da CNN é que o trabalho de crianças e adolescentes provocou aumento da evasão escolar e piora no desempenho dos alunos.

    A pandemia da Covid-19 acentuou a pobreza de milhões de famílias e o principal sintoma dessa situação de vulnerabilidade é a fome. Crianças e principalmente adolescentes passaram a trabalhar para aumentar a renda da família, ou mesmo serem os provedores da casa.

    “Ano passado já vimos isso, mas agora agravou. Antes quem trabalhava ainda tentava conciliar com as aulas on-line. Hoje a preocupação maior é com o trabalho”, afirmou a educadora.

    Os professores observaram que esses alunos não trabalham de forma regular, como em programas como o Jovem Aprendiz, mas sim em serviços informais.

    São ajudantes de diversas atividades, entre elas, a construção civil; vendedores nos sinais de trânsito e trens; entregadores de aplicativos, guardadores de carros, catadores, entre outros ofícios.

    Há ainda o trabalho doméstico, em casas de outras famílias ou na própria, como é o caso de Lidiane (nome fictício), 14 anos, moradora de uma comunidade na zona norte do Rio. Em sua casa vivem ela, a mãe, os irmãos mais velhos, de 19 e 15 anos, e o mais novo, um bebê de dez meses, de quem ela cuida para a mãe trabalhar como doméstica.

    Estudante do oitavo ano de uma escola da rede municipal, Lidiane não conseguiu acompanhar bem as aulas on-line durante a pandemia e não voltou dia 3 de novembro, quando começaram as aulas presenciais.

    “Ela me ajuda muito e está fazendo os trabalhos da escola em casa, mas com sacrifício. Sente muita dificuldade porque não entende. Não quer voltar para a escola esse ano, diz que prefere repetir do que ficar sem saber as coisas. Quer voltar ano que vem”, diz a mãe Teresa (nome fictício).

    Ela tem 38 anos, começou a trabalhar aos 11 e parou de estudar aos 17. “Trabalhava demais, não dava tempo de chegar na escola. Acabei  desistindo”.

    Na casa da doméstica, a pandemia eliminou a carne das refeições. Mas Teresa diz que fez malabarismos para fazer com que o salário fosse o suficiente para pagar o aluguel e a comida na mesa.

    “Passamos aperto, comemos pouco, porque as coisas aumentaram demais, mas fome não passamos”, explicou a doméstica.

    Em relação a 2019, a evasão escolar de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos cresceu 171,1%, de acordo com os dados divulgados pela ONG Todos Pela Educação. Esse montante significa 244 meninos e meninas fora das escola, 1% do total desta faixa etária, a maior taxa nos últimos seis anos.

    O levantamento foi produzido com base em informações da PNAD, do segundo trimestre de 2021.

    A CNN procurou o Ministério da Educação (MEC) solicitando dados sobre evasão escolar no Brasil e não obteve resposta. As posições dos demais órgãos de governo acionados pela CNN estão contempladas ao longo da reportagem.

    Na rede municipal carioca, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Educação (SME), 25 mil alunos deixaram de interagir nas aulas on-line e não retornaram ao ensino presencial no terceiro trimestre.

    Levantamento do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, de 2019 mostra que 1,1 milhão de crianças e adolescentes estavam fora da escola.

    A estimativa é que em 2020 esse número tenha chegado a 1,5 milhão. Os números ainda não foram fechados e ainda não há dados nacionais de 2021.

    Jornada dupla

    Nem sempre o aluno que deixa a escola por conta do trabalho quer ficar sem estudar. Nas escolas onde o professor de língua portuguesa Rodrigo Bittencourt, leciona, uma na Tijuca, zona norte do Rio, e outra em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, ele observou que muitos começaram a trabalhar, mas alguns tentam ainda conciliar com os estudos.

    Eles têm dificuldade para voltar para a escola. Por causa do  empobrecimento, tiveram que participar da luta financeira da casa. Mas os mais  interessados nos procuram, justificam que estão trabalhando. Muitos moram em áreas dominadas pelo crime, querem outro futuro

    Rodrigo Bittencourt, professor

    A Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc) realizou a campanha Resgate de Infrequentes em setembro, quando as aulas ainda eram híbridas – presenciais e on-line. A volta total do ensino nas escolas, presencialmente, começou dia 25 de outubro.

    Dos 245 mil alunos com frequência inferior a 75% nas aulas on-line, 75 mil não voltaram a frequentar as escolas após pesquisa.

    Para o coordenador do Sindicato Estadual dos Professores de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe), Gustavo Miranda, a volta às aulas 100% presenciais piorou a situação dos alunos que tiveram que trabalhar.

    “Quem está  trabalhando não volta, principalmente agora, com as vagas do Natal. Falamos do problema com o governo, pedimos para garantir o remoto ao menos até o fim do ano, mas não aconteceu. A realidade das redes públicas esbarra na pobreza e é a que ajuda na busca do melhor emprego. Se não termina o ensino, tem dificuldade de achar um bom posicionamento no mercado”, afirmou o coordenador.

    Aqueles que conseguem voltar para as aulas presenciais no Rio não conseguem ter o mesmo rendimento que os alunos que não precisam trabalhar.

    “O rendimento é baixo. Minhas aulas da manhã terminam 12h15; às 11h aqueles que trabalham já saem. Eles têm um tempo de aula a menos. Perdem correção de exercícios, de provas. Não é isolado, só eu tenho vários nas minhas turmas”, afirmou Carina, professora do Ciep de São Gonçalo.

    Invisibilidade rural

    No universo da Turma da Mônica, uma das séries de quadrinhos infantis mais famosas do Brasil, criada há 62 anos, o personagem Chico Bento é descrito, entre outras características, como aventureiro, divertido e, vez ou outra, preguiçoso.

    Essa última faceta de sua personalidade geralmente aparece nas histórias quando ele não quer trabalhar. Chico Bento é um menino que mora na zona rural e tem oito anos. O personagem usa a enxada, mas as crianças do campo têm outros instrumentos de trabalho.

    “Já vi crianças de 9 anos dirigindo trator para ajudar os pais no trabalho. Essa situação já vem de antes da pandemia”, contou a professora Joana (nome fictício) de Cachoeira do Macacu, município fluminense a 97 km do Rio com economia baseada, principalmente, na agricultura.

    As crianças e jovens da zona rural do município enfrentam ainda a falta de internet durante a pandemia. O serviço só chega nessas localidades via rádio, mas a instalação é cara para as famílias pobres da região.

    Para que os alunos não parassem de estudar, as escolas distribuíram apostilas, mas muitos não conseguiram passar de ano.

    “A gente se sente invisível nessas escolas. Não tem asfalto, saneamento, iluminação pública, internet. Transporte público não tem desde 2009. A criança da zona rural vale o mesmo que a criança da zona urbana, mas não recebemos as mesmas coisas. Todo investimento fica em lugares que todo mundo vê porque na roça não aparecem”, desabafou a educadora, que também dá aulas em um colégio na zona urbana da cidade, onde também viu alunos abandonarem os estudos para trabalhar.

    “As coisas aumentaram muito, principalmente a comida. E muitos perderam familiares que eram braço de sustento dentro de casa. Muitos avós que eram os responsáveis pelo dinheiro. Conforme a Covid dizimou os idosos, muitos perderam esse apoio”.

    Forte concorrência

    O coordenador educacional da rede estadual de educação de São Paulo, Mário Massa, ficou chocado com a situação que encontrou em Nazaré Paulista, cidade a 90 km de São Paulo.

    Aqui as crianças trabalham no corte de eucalipto para o carvão vegetal que abastece as pizzarias de São Paulo. As famílias normalizam, preferem eles trabalhando

    Mário Massa, educador que dá aula em Nazaré Paulista (SP)

    A situação piorou com a pandemia por conta da também da falta de internet na zona rural e da diminuição da renda das famílias.

    “Antes trabalhavam, mas ainda estudavam. Agora, não mais. O trabalho de crianças aqui é naturalizado. Os pais têm a ideia de que eles trabalhando no eucalipto terão mais dinheiro do que trabalhar em empresa depois da faculdade. Eles chegam a ganhar R$ 2.500 por semana. Como vai concorrer com isso?”, disse o educador, que trabalha desde o ano passado na cidade.

    A situação de Nazaré encontra similaridade na capital paulista. Crianças e adolescentes que trabalham em Moema, bairro da zona sul de São Paulo, podem ganhar em média R$ 2.000 vendendo doces e flores nos semáforos, ou fazendo malabarismos para os motoristas.

    “Onde tem fome tem trabalho infantil e na pandemia as crianças que passavam fome acabaram indo trabalhar. Não ter aulas presenciais foi uma brecha para irem para as ruas porque a falta de tecnologia foi facilitador também. Se não tenho como comprar comida, como ter celular, pagar internet?”, afirmou Itamar Moreira, do FAS (Fundo de Ação Social), órgão da prefeitura, no Jardim Ângela, na região sul da capital.

    Mas, mesmo com o cansaço e as dificuldades de seu trabalho, o adolescente Cássio (nome fictício), de 17 anos, voltou para as aulas, depois de desistir durante o período de aulas remotas. Ele faz malabarismo em um semáforo na avenida Nove de Julho.

    “Trabalho desde os 13 anos. Já fui ajudante de pedreiro, garçom e desde os 15 sou malabarista. Hoje está melhor, mas teve um tempo difícil de conseguir dinheiro porque, por conta do vírus, as pessoas tinham medo de abrir o vidro do carro e falar com a gente”, contou o jovem, que tem mais dois irmãos, de 15 e 13 anos, trabalhando em sinais de trânsito.

    “Meu pai sempre procurou dar o melhor para a gente, mas, agora que está solteiro, tem que pagar o aluguel, água, luz e as dívidas. Então é difícil fazer aquela compra boa para a gente. Mas ele nunca deixou faltar nada. Eu trabalho para comprar coisas para mim”, afirmou o adolescente, que mora com o pai e os irmãos no Jardim Ângela.

    No Rio Grande do Sul, o ensino na rede estadual passou a ser híbrido desde setembro, mas a sala de aula também concorre com o trabalho, principalmente nas periferias.

    “Meninos batem nas casas para oferecer para cortar grama, serviços de pedreiro, carroceiro. As meninas vendem doce, brigadeiro. Mesmo com o sistema híbrido, poucos voltaram para a escola”, disse Felipe Nóbrega, que dá aulas em duas escolas da rede em Rio Grande, município do litoral sul gaúcho.

    Riscos

    Se em casa o aluno está sujeito a passar fome, no trabalho, os riscos são outros. “Acidentes de trabalho são mais recorrentes entre adolescentes de 14 a 17 anos. Se comparados com adultos acontecem três vezes mais. Acontecem mutilações, perdas de membros, queimaduras”, afirmou Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).

    O fórum é uma ONG (organização não-governamental) em que participam representantes do governo federal, de trabalhadores, empresas, entidades da sociedade civil organizada, Ministério Público do Trabalho e organismos internacionais, como a Unicef e a OIT (Organização Internacional do Trabalho).

    Segundo a especialista, além da evasão escolar, a pandemia agravou outras situações que levam os menores ao trabalho precoce.

    “Avaliamos que nos últimos quatro anos houve crescimento da pobreza, concentração de renda, da perda de empregos. A pandemia agravou esse cenário de retrocesso e fragilizou muito mais os mais vulneráveis.”

    Segundo Luciana Phebo, chefe do território sudeste do Unicef, as crianças e adolescentes são as principais vítimas ocultas da pandemia. “Elas não são as que mais morreram, mas são as mais afetadas pelo resto da vida. O distanciamento, a ausência nas escolas nesse momento da vida educacional, de formação de cidadãos, é um prejuízo. Em termos de evasão escolar, regredimos 20 anos.”

    Busca Ativa

    A Seeduc, no Rio de Janeiro, tem ferramentas para evitar a evasão escolar e recuperar alunos do ensino médio, como o Busca Ativa, uma parceria com a Unicef. Diferentes setores, como assistência social, Saúde, Conselhos Tutelares, entre outros, atuam na plataforma para fazer o estudante voltar para a escola. Outra campanha teve como foco buscar os alunos que não renovaram a matrícula no início do ano.

    Em relação aos estudantes dos anos finais do ensino fundamental, a Seeduc lançou a Recupera Já, que ofereceu novas oportunidades de aprendizagem aos estudantes no ano de 2021.

    A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo também tem sua Busca Ativa, mas sem parcerias. Segundo o chefe de gabinete da pasta, Henrique Pimentel, a área sabe que a evasão nos próximos anos deve ser grande por conta do trabalho dos alunos.

    “A escola compete com as necessidades, com a complementação de renda. Vamos continuar a Busca Ativa e considerar o resultado dos anos de 2020 e 2021 como um número único. Vamos avaliar quando terminar este letivo.”

    Na Busca Ativa as escolas monitoram a frequência e têm classificação se há risco de abandono. Quando aponta que o aluno vai evadir, são feitos contatos com a família e, se for o caso, o Conselho Tutelar.

    Em outubro, a Seduc lançou um programa de bolsas para evitar a evasão. “É o Bolsa do Povo Ação Estudante, que distribui R$ 1 mil, parcelado, por ano letivo para quem está extrema pobreza e pobreza voltar para a escola. Temos cerca de 360 mil alunos nessas faixas. Mas o aluno pode entrar em qualquer momento no programa”, explicou Pimentel.

    Rede de proteção

    Por meio de nota, o Ministério da Cidadania informou que trabalha  para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população vulnerável. “É compromisso desta gestão ampliar o alcance das políticas socioassistenciais e atingir, com maior eficácia, a missão de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica”, diz o comunicado.

    Entre os programas de transferência de renda para prevenção do trabalho infantil, o órgão citou o Criança Feliz, que, segundo a pasta, desde janeiro de 2019, repassou R$ 861 milhões para famílias, atingindo 298 mil gestantes e um 1,1 milhão de crianças. O ministério também informou que em novembro foi pago o Auxílio Brasil a 14,5 milhões de famílias de todo o país com um montante de R$ 3,5 bilhões.