Parceria espacial Brasil-Ucrânia custou R$ 1 bilhão e acabou sem lançar foguete
Cada país investiu cerca de R$ 500 milhões em empresa binacional, criada em 2003 e definitivamente extinta em 2019 por Medida Provisória


Uma parceria entre Brasil e Ucrânia consumiu quase R$ 1 bilhão dos dois países, com o objetivo de lançar foguetes da série ucraniana Cyclone-4 a partir do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão. O projeto resultou na criação de uma empresa binacional, a Alcântara Cyclone Space (ACS), sediada no país e sepultada em 2019, por inviabilidade comercial, sem jamais ter cumprido seu objetivo de concluir um lançamento e contribuir para a inclusão do Brasil no hall de países que dominam a tecnologia.
A ACS foi criada em 2003, primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Por parte do Brasil, o investimento foi de R$ 483 milhões, todo ele em dinheiro público. O acordo buscava explorar o potencial da localização privilegiada do CLA para o desenvolvimento do país no setor. Situada próximo à linha do Equador, o impulso natural da Terra faz com que os foguetes gastem menos combustível, o que proporciona veículos mais leves e capazes de transportar mais carga – no caso, satélites. Os números foram fornecidos por órgãos governamentais, para auditoria do TCU.
A base fica também em uma área isolada e próxima ao mar, o que evita riscos a populações nativas em casos de acidentes e explosões, episódios relativamente comuns no setor. Mesmo com esses atributos, os projetos do Brasil nesse campo falharam, ao tentar lançar três foguetes. Sem dominar a tecnologia, o país e foi buscar um parceiro que o ajudasse a se desenvolver neste segmento, dentro de uma política de cooperação entre países em desenvolvimento: o chamado alinhamento Sul-Sul.

Na Ucrânia, o problema era oposto: importante centro espacial desde os tempos da União Soviética, o país já dominava a tecnologia, mas não dispunha de uma base de lançamentos e a tensão diplomática com a Rússia o impedia de utilizar as instalações da potência vizinha. Pelos termos do acordo, os governos brasileiro e ucraniano capitalizariam igualmente a ACS.
Os foguetes, produzidos em Dnepropetrovsk, pela agência espacial ucraniana, chegariam de navio para lançamento no CLA, onde empresas brasileiras iniciaram a construção dos prédios-sede das instalações da empresa binacional.
Sérgio Rezende foi ministro da Ciência e Tecnologia no governo Lula. Envolvido no projeto da ACS, o professor da UFPE integrou o conselho da binacional na gestão de seu sucessor no cargo, Aloízio Mercadante (PT), e acompanhou de perto a evolução das negociações. Ele explica que a escolha do parceiro não se deu ao acaso.
Países com programa espacial completo não têm interesse em desenvolver programas com o Brasil, porque já são independentes, como EUA, França e Rússia. Dois países só cooperam de forma realmente parceira quando um tem interesse no outro. Interesse que não seja exclusivamente comercial, mas de desenvolvimento conjunto. Os dois países tinham o que oferecer um ao outro. A Ucrânia tinha um programa espacial já em 1930 e tradição na aviônica. O avião Antonov, conhecido como soviético, foi fabricado na Ucrânia, quando ela era parte daquele país.
Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia
O programa ucraniano-brasileiro previa que cada parte integralizasse o equivalente a um bilhão de dólares na empresa binacional. Desafio que se agravou em meio à desvalorização do real e diante de crises econômicas enfrentadas pela Ucrânia, agravados pela tensão com a Rússia, que levou à invasão da península da Crimeia. Episódios que fizeram com que os dois parceiros atrasassem os depósitos. O governo do país europeu chegou a pedir um empréstimo ao BNDES, o que foi negado pelo banco de fomento, por violar a legislação brasileira.
Em 2015, um decreto da presidente Dilma Rousseff (PT) denunciou unilateralmente o contrato, por “desequilíbrio na equação tecnológico-comercial”, o que gerou protestos dos europeus, que insistiam na manutenção do projeto. O assunto foi alvo de um processo no Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do Congresso Nacional, para analisar as condições do contrato e o destino dos investimentos brasileiros.
O acórdão apontou a suspeita de que os foguetes ucranianos utilizassem peças e componentes dos Estados Unidos, o que obrigaria a um acordo de salvaguardas tecnológicas. O termo foi assinado, mas não foi ratificado pelo Congresso Nacional e foi tirado de pauta em 2016, a pedido do governo. O tribunal apontou também tensões ucranianas com o governo russo, por causa da Crimeia, colocando em xeque a possibilidade de o país europeu cumprir o acordo.
“No âmbito político-diplomático, a recente situação política na Ucrânia levanta dúvidas sobre a real capacidade de o país dedicar esforços à consecução de atividades consideradas não essenciais em contexto de conflito armado, entre as quais a própria cooperação com o Brasil, e a dependência ucraniana de recursos tecnológicos e de pessoal russos para o cumprimento das etapas sob sua alçada no tratado”, diz um trecho do relatório do TCU.
Embora tenha apontado uma série do que classificou de fragilidades no contrato, por falta de estudos de viabilidade técnica, econômico-financeira e comercial do projeto, o TCU destacou no acórdão que não proporia uma tomada de contas especial por entender que o episódio passou por diversos governos e legislaturas e não seria simples responsabilizar cada envolvido.
Se feito, o ato poderia provocar uma punição por parte do Ministério Público Federal. Contudo, a corte de contas limitou-se a recomendar que: “quando da celebração, aprovação e promulgação de futuros acordos internacionais, haja maior qualidade na avaliação dos aspectos técnico-financeiros na formalização de atos dessa natureza”.
Sérgio Rezende, que assumira o ministério depois de celebrado o acordo, entende que a cooperação buscava um atalho. Ele lembra que, em 2003, o sistema de ignição do VLS-1, da Aeronáutica, entrou em funcionamento três dias antes de o foguete ser lançado, o que proporcionou uma onda de incêndios e explosões que deixou um saldo de 21 profissionais mortos.
Foi uma tragédia, que ajudou a acelerar o entendimento com a Ucrânia, que vinha de conversas antigas. Depois do acidente, percebemos o quanto estávamos atrás, e o quanto retroagimos. Foi uma catástrofe para o programa espacial brasileiro, dentro de um setor muito estratégico. A ideia com o Cyclone-4 foi ganhar tempo com uma parceria com um país que tinha interesse em cooperar conosco. Não ter mantido o programa foi um erro, a Ucrânia nunca se conformou com essa ideia.
Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia
Em abril de 2019, a denúncia do acordo foi formalizada com a aprovação da Medida Provisória (MP) 858/2018, do presidente Jair Bolsonaro (PL), o que abriu caminho para um acordo com o governo dos EUA para a utilização das instalações do CLA. O acordo não previa transferência tecnológica, apenas que os dois países pudessem arrecadar em conjunto a partir dos lançamentos comerciais feitos por outros países no Maranhão. As obras foram interrompidas e as estruturas construídas foram cobertas com lona, para eventual futura retomada.
Em fevereiro do ano passado, foi lançado o Amazônia-1, primeiro satélite 100% brasileiro, dos cinco já desenvolvidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) para observação da Terra. Ele poderá produzir imagens em alta resolução para monitoramento ambiental, com ênfase na análise do desmatamento.
Como o país ainda não domina a tecnologia e não tem parceiro para enviá-lo de Alcântara, o lançamento ocorreu na base aérea de Shihakota, na Índia, lançado por um foguete indiano. Sem uma base próprio, a Ucrânia também vinha adotando estratégia semelhante com países vizinhos, mas com lançadores nacionais.