Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    CNN Plural

    O dia que conheci o Cafundó

    A jornalista Letícia Vidica, idealizadora do projeto CNN No Plural, conta sua experiência ao conhecer uma comunidade quilombola no interior paulista

    Letícia Vidicada CNN , Em São Paulo

    Voltar a um lugar que nunca fui, mas que sempre estive. Essa foi a sensação que tive ao pisar em uma comunidade quilombola pela primeira vez. Na última sexta (19), fui ao Quilombo do Cafundó, no interior de São Paulo, para acompanhar uma reportagem do CNN No Plural. Estar lá me levou a um lugar tão familiar mas, ao mesmo tempo, tão distante.

    Lugar distante e de difícil acesso, assim como o significado da palavra Cafundó em quimbundo, língua comum no norte da Angola de onde descendem os negros escravizados que fundaram a comunidade quilombola, que fica a duas horas de São Paulo, em Salto de Pirapora, no interior paulista.

    Voltar pra trás, saber de onde eu vim. Depois, andar para frente pra saber para onde se vai.

    O Quilombo do Cafundó, localizado na região de Salto de Pirapora, no interior do estado de São Paulo / Arquivo pessoal

    Resistência

    É a palavra que melhor define o meu olhar sobre o Cafundó logo que entramos com o carro nas suas terras e pisei naquele chão. Logo na entrada, uma capela simples mas carregada de energias e significado, demonstra que o lugar tem dono e que a fé sempre foi a base de sustentação para que os negros que foram escravizados resistissem por tanto tempo. Fé sustentada mesmo quando não se tinha nada para comer, mesmo quando a possibilidade da invasão e tomada daquele território era muito real, assim como contam aqueles que lá ainda vivem.

    Tamukanda no injó de zambi. Tá escrito na casa de Deus. É o que diz o jongo singelo e poderoso que fez minhas lágrimas transbordarem ao ouvir a Cintia cantar na porta da capela, enquanto a entrevistávamos. Cintia é descendente de negros escravizados do Quilombo do Caxambu, que ficava ao lado do Cafundó, mas que, ao contrário da comunidade vizinha, não resistiu à ação dos grileiros. A última casa queimada foi a do avô dela.

    Cintia carrega os saberes, a religiosidade e as tradições dos seus ancestrais e que caracterizam o povo que viveu e vive no Cafundó. Os versos que ela cantou e me fizeram chorar é um jongo, dança e canto africano trazido pelo povo Bantu –que veio forçadamente ao Brasil da região que hoje é Angola e Moçambique. Jongo que carrego no meu sangue, mas que só fez sentido para mim quando pisei no Cafundó.

    O jongo era usado como canto de trabalho e dança, mas, sobretudo, era uma mensagem codificada para que os negros pudessem se comunicar. O que parecia só uma dança ou versos simples estava carregados de mensagens que os ‘senhores’ não podiam adivinhar. Versos que ajudaram a todo um povo resistir. Jongo que minha bisavó e suas irmãs dançavam e que ouvi em tantas histórias no almoço de domingo na casa da vó Cleuza.

    Não só o jongo como a língua também ajudaram nessa resistência a todas as violências sofridas pelos escravizados. O Cafundó tem uma língua própria –a kupópia– que tem origem no quimbundo, um idioma originário do norte da Angola de onde os negros escravizados que ali viveram vieram.

    Para a minha surpresa, ao narrar minha experiência para minha família, minha mãe me contou que suas tias sentavam no quintal para pitar cachimbo e conversar numa língua com palavras africanas, algumas que aprendi no quilombo. Um quebra-cabeça sobre minha existência que começa a fazer sentido.

    É, meus senhores, a vida e seus mistérios…

    Existência

    Cafundó não só resiste, mas existe. Existe nas suas mais de 100 famílias descendentes de negros escravizados que ali moram até hoje. Alex é um deles. Ele pertence à sexta geração de negros escravizados da comunidade, que surgiu no século 19, em meados de 1826.

    O local era fazenda, na qual seu dono –que, segundo contam, não casou e não teve filhos ‘reconhecidos’– doou as terras para alguns casais de negros e negras escravizados que trabalhavam ali. Dentre eles, Joaquim Manoel Oliveira Congo, que na sua adolescência veio do reino do Congo.

    Joaquim, Ifigênia, Antônia… todos negros e negras escravizadas que fundaram o Quilombo e de onde descende o Alex, que hoje é quem mantém a principal atividade do local: a agricultura de orgânicos, que garante a sobrevivência de quem ali vive, além do turismo que acontece no local.

    Alex, Cintia e a Rainha Regina do Cafundó. Isso, eles tem uma rainha. Pelo menos, é assim que chamam Dona Regina ou a matriarca, uma preta de pele retinta, sorriso largo e turbante colorido na cabeça que chegou ali… e que, com sua organização e ideias, transformou o quilombo levando o Cafundó para o mundo. Regina é casada com o tio avô do Alex, um griô –como chamam os mais velhos. Griô, assim como seu Juvenil, o descendente de escravizado mais velho da comunidade.

    Cheguei querendo encontrá-lo, ouvir sua sabedoria, mas logo nos disseram que ele se esconde, não é de falar muito, fica desconfiado. Porém –por obra divina ou dos orixás–, no retorno da plantação para a parte alta do quilombo, algo me paralisou. Olhei pro lado e vi um senhor me olhando e trocando quatro palavras que tocaram minha alma: ‘tá frio, né filha?’. Era seu Juvenil ou o preto velho (entidade da umbanda), pelo menos, é assim que Cintia me descreveu ele. Conheci o preto velho Juvenil e, no seu silêncio, seu olhar, jeito curvado e nas quatro palavras que proferiu a mim, ele disse tanto!

    Que honra, Seu Juvenil!

    Pois é! Meus ancestrais criaram sua própria organização e maneiras mil de resistir, viver e sobreviver aos tormentos da escravidão. Um bastão que passa de um pro outro, de geração em geração e que me e nos traz até aqui até hoje. Seguirei (seguiremos) passando o bastão!

    Tamukanda!

    A jornalista Letícia Vidica em visita ao Quilombo do Cafundó / Arquivo pessoal

     

    Tópicos