Solidão na busca por petróleo: a angústia dos mergulhadores de plataformas
Na pandemia, profissionais vêm sofrendo com isolamento prolongado; após casos de suicídio, Justiça ordena mudança na escala de profissionais do setor
“Estou com a cabeça cansada”, desabafou o supervisor de mergulho P.E.L., 51, em mensagem de WhatsApp enviada a sua família de um hotel no Rio de Janeiro, no dia 15 de setembro de 2020.
Ele havia passado 28 dias seguidos embarcado em um navio a serviço da Sistac, empresa que presta serviços de manutenção de plataformas para a Petrobras. P.E.L. trabalhava para a terceirizada havia 13 anos. Antes de poder ir para casa, em Santos (SP), foi avisado que teria de permanecer mais um dia na capital fluminense para um exame médico de rotina. E teria de retornar ao Rio três dias depois para treinamentos obrigatórios.
P.E.L. sentia-se pressionado. Sem os cursos compulsórios de aperfeiçoamento, ele não poderia embarcar novamente a trabalho. E, sem embarque, sua remuneração passaria de cerca de R$ 10 mil por mês para aproximadamente R$ 2,5 mil mensais. “Vamos lá…”, resignou-se.
O mergulhador concluiu os treinamentos em 26 de setembro. No dia seguinte, estava em Santos. Em 8 de outubro, voltou ao Rio para cumprir cinco dias de quarentena isolado num hotel. Os dias de resguardo em terra precederiam outros 28 numa embarcação.
No hotel, P.E.L. tinha todos os passos controlados pela empresa. Só saía do quarto para realizar exames e verificar se estava infectado pelo coronavírus. No dia 11, reclamou em nova mensagem enviada à família. “Estou num quarto que a visão é pra parede de outros quartos… Horrível! Uma caixa fechada”, escreveu, antes de enviar um emoji indicando desânimo. Ele também se queixava da comida e da falta de sinal de internet no dormitório.
No dia seguinte, o mergulhador não apareceu no horário combinado para a coleta de material para um exame PCR, o mais indicado para se detectar o coronavírus. Os colegas ligaram para o quarto. Ele não atendeu. Bateram na porta. Nada. Entraram à força e encontraram o rapaz caído no banheiro. P.E.L. havia se suicidado.
Esta reportagem trata deste e de outros casos de suicídio — os nomes completos das vítimas não serão divulgados a pedido das famílias. Caso precise de ajuda ou informações, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.
Pandemia, trabalho e isolamento
A morte de P.E.L. motivou uma investigação conjunta de servidores do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) do Rio e de Santos. Os órgãos públicos, vinculados às prefeituras e ao Sistema Único de Saúde (SUS), especializados em apurar as condições de trabalho e apontar se uma doença é decorrente delas, concluíram que o suicídio teve relação com o trabalho. A Sistac discorda.
O Cerest ouviu seis mergulhadores de plataforma antes de chegar a essa conclusão. A apuração identificou que a pressão e a ansiedade que P.E.L. sentia também atingem outros trabalhadores da categoria – mais intensamente no contexto da pandemia de Covid-19.
Operário distante da terra firme, o mergulhador de plataforma trabalha em alto-mar, com equipamentos pesados e depende das condições do oceano. Ele inspeciona e faz a manutenção das áreas das estruturas que ficam debaixo d’água para a exploração de petróleo. A remuneração sobe conforme aumenta o tempo que o profissional passa no mar.
Antes, os mergulhadores ficavam 14 dias embarcados trabalhando e descansavam outros 14 dias. Na pandemia, passaram a ficar 28 dias embarcados e outros 28 em terra firme, mas não necessariamente descansando. A exigência de isolamento — nem sempre em boas condições — fez o período longe de casa e da família crescer ainda mais.
A mudança afetou os profissionais que trabalham em navios e plataformas de exploração de petróleo no Brasil, como os funcionários das empresas terceirizadas que prestam serviços à Petrobras.
A deterioração das condições de trabalho desses profissionais também foi identificada pela pesquisadora Liliane Teixeira, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Em entrevista à CNN, Liliane disse que o setor do petróleo e gás está entre os que mais implementaram mudanças em rotinas e escalas, com consequências na saúde mental dos trabalhadores.
“As mudanças de escala, essa rotina de até 28 dias embarcado, são muito ruins para a saúde e para a qualidade do sono, o que desregula todo o corpo”, comenta. “Fora a ansiedade e as preocupações relacionadas à Covid a cada embarque e reencontro com a família.”
Mesmo na folga, os mergulhadores precisam dar satisfações periódicas às empresas sobre seu estado de saúde. Até sete dias antes de embarcar, precisam manter-se completamente isolados em quartos de hotel, seguindo escalas de avaliações médicas sobre eventuais sintomas de Covid-19.
Nos hotéis, a solidão é profunda. São poucas as opções para se distrair e quebrar a rotina. Os mergulhadores assistem à TV e telefonam para as famílias. Alguns tentam praticar exercícios, mas o confinamento em um quarto impõe limites.
Caso apareçam os sintomas de Covid-19 na quarentena, o mergulhador não embarca. Sem embarque, a remuneração diminui. O medo de demissão, por outro lado, aumenta. “É muita diferença de salário, e o mergulho está mandando muita gente embora com a pandemia”, relatou um dos mergulhadores entrevistados pelo Cerest.
“Há vários relatos de gente tomando remédio tarja preta”, afirma Edney Santos de Jesus, diretor jurídico do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Atividades Subaquáticas e Afins (Sintasa), que representa os mergulhadores. “A insegurança sobre o emprego e sobre a saúde, o período isolado num hotel, isso está deixando todo mundo doente.”
O trabalho como fator de risco
É consenso entre especialistas que o suicídio nunca tem causa única. É multifatorial e complexo. No caso de P.E.L., a questão profissional é um dos fatores investigados pelo Ministério Público do Trabalho na investigação que conduz sobre o acontecido.
Segundo parentes, P.E.L. nunca havia tentado se matar. De acordo com a Sistac, o mergulhador recebeu acompanhamento psicológico já que havia perdido uma filha em março de 2020, sete meses antes de tirar a própria vida. Uma investigação sobre a morte dela analisa a hipótese de a jovem também ter praticado suicídio. Os investigadores do Cerest e a família não veem, no entanto, relação entre a morte da jovem e o suicídio de P.E.L..
“Há evidências de que o momento emocional associado à mudança de turno de 28 por 28, as condições de trabalho e remuneração são fatores de estresse relevante que determinam a não aptidão para a atividade de mergulho e exposição ao isolamento em quarentena, da forma proposta”, aponta o relatório do Cerest de Santos. “O evento aponta para o nexo causal [do suicídio] com o trabalho”.
O reconhecimento do suicídio motivado por questões profissionais pelo Cerest foi levado em conta pelo INSS no processo de concessão de pensão à família do mergulhador.
A morte de P.E.L. levou o sindicato dos mergulhadores, o Sintasa, a procurar as empresas do setor e a Justiça para pedir o fim da escala de embarque de 28 por 28 dias. Em 1º de junho, a Justiça do Trabalho do Rio determinou, em decisão liminar, um prazo de dez dias para que as empresas voltem a adotar a escala de 14 por 14 dias.
A juíza Adriana Pinheiro Freitas afirmou que a mudança anterior de escala não foi negociada com a categoria dos mergulhadores e citou os casos de suicídio. As empresas pediram um prazo maior para fazer a alteração.
“Não aguento mais”
Em 4 de novembro, representantes do Sintasa e do Sindicato das Empresas de Engenharia Subaquática (Siemasa), entidade patronal, participaram de uma audiência para debater a rotina de trabalho dos mergulhadores na pandemia. A discussão prenunciou outro caso de suicídio.
Diretor do Sintasa, C.E.S.F., 53, foi convidado a dar seu testemunho e falar sobre saúde mental. Ele trabalhava desde 2008 na Belov, outra empresa de manutenção e inspeção de plataformas.
Há pelo menos um ano, sofria de depressão, o que vinha lhe impedindo de embarcar desde agosto. Na videoconferência de conciliação, C.E.S.F. exaltou-se. “Não aguento mais. Estou vivendo à base de remédios”, afirmou ele, mostrando os medicamentos.
Apesar disso, em dezembro, foi escalado como suplente — um mergulhador reserva —- em uma equipe de trabalho que embarcaria naquele mês a serviço. C.E.S.F teria, portanto, que estar de sobreaviso e isolar-se em casa para o caso de ser convocado.
No dia 17 de dezembro, C.E.S.F. ligou para seu irmão. Estava aos prantos. Queria ajuda. O irmão foi ao seu apartamento e o encontrou aflito. “Ele estava triste pois estava se separando. Também dizia que não queria embarcar, que não queria mais ser mergulhador”, relatou à CNN.
No dia 20, C.E.S.F. foi encontrado morto em casa, no Rio de Janeiro.
Sua morte não foi oficialmente ligada ao trabalho. A Belov informou que apurações internas constataram que o suicídio não tem relação com o serviço.
Depois da morte de C.E.S.F., ao menos outros dois funcionários de empresas que prestam serviços à Petrobras em plataformas morreram em situações que indicam suicídio. O mecânico J.M.F., da Sotreq, foi encontrado morto na Plataforma P-51, na Bacia de Campos, em abril. O enfermeiro E.P., da Modec, morreu em quarentena num hotel em Campos dos Goytacazes (RJ), em maio.
“Os suicídios se tornaram recorrentes e despertaram um alerta”, diz Marcelo Juvenal Vasco, secretário de Saúde e Segurança da FNP (Federação Nacional dos Petroleiros). “Os terceirizados do setor são os mais emocionalmente mais prejudicados.”
O que diz o Ministério Público
Procurado pela CNN, o Ministério Público do Trabalho (MPT) informou que tem investigações em curso sobre as relações de trabalho dos petroleiros e demais funções, entre as quais o mergulho.
Ressaltou que as condições de trabalho impostas durante a pandemia “se mostraram exaustivas para os trabalhadores, com impactos psicofisiológicos decorrentes da sobrecarga de trabalho e consequente fadiga física e mental”. Lembrou que, recomendou às empresas, em agosto, que disponibilizassem acompanhamento e atendimento psicológico aos trabalhadores, mas que isso foi feito por “alguns empregadores”.
Sobre a morte de C.E.S.F., em dezembro, o MPT confirmou que o mergulhador participou de audiência, relatou estar afastado do trabalho por depressão e que não teria condições de retornar submetido às “escalas desumanas impostas pelas empresas de mergulho”.
“No caso do suicídio do trabalhador da Sistac, houve apuração pelos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador do Rio de Janeiro e de Santos, tendo ambos relacionado o suicídio ao trabalho”, complementou o MPT sobre a morte de P.E.L..
O que dizem as empresas
Questionada, a Petrobras não se pronunciou sobre nenhuma das mortes citadas na reportagem. A empresa informou que previne suicídios entre seus funcionários e acompanha casos registrados entre empregados de empresas contratadas.
A Petrobras também declarou em nota que as terceirizadas devem “prover condições de trabalho seguras, tratar seus trabalhadores com dignidade e respeito, agir de forma íntegra e ética”, mas não informou que atitudes tomou a respeito das empresas cujos empregados se suicidaram.
A Sistac informou em nota que o suicídio e P.E.L. foi um fato “muito triste” e “sentido por todos” na empresa. A empresa disse que conhece os relatórios que ligam a morte do mergulhador a seu trabalho, mas discorda deles.
“Analisamos com todo cuidado e respeito que um caso como este precisa e merece ter e n??o concordamos com esta afirmação”, declarou. “Consideramos as acusações insuficientes e genéricas.”
A empresa lembrou que P.E.L. passava por acompanhamento psicológico e cuidado redobrado da empresa desde a morte da filha, no fim de março de 2020. Segundo a Sistac, ele mesmo tinha pedido o retorno ao trabalho após um período afastado e, em exames, mostrava estar apto a exercer as atividades.
Sobre a morte de C.E.S.F., a Belov disse que lamenta o fato e colabora com as investigações. Informou também que todos os trabalhadores offshore da empresa passam por procedimentos de “prevenção à infecção [pelo coronavírus] e medidas de apoio à saúde física e mental”.
A Sotreq lamentou a morte de J.M.F. e disse prestar assistência à sua família. “Há uma investigação em curso, e a Sotreq também se colocou à disposição das autoridades.”
A Modec informou que lamenta profundamente o caso e tem colaborado com as investigações, que ainda estão em andamento. “Em respeito à privacidade do empregado e da família, a companhia não comentará as circunstâncias do ocorrido.” A empresa ressalta que tem seguido os protocolos de saúde e segurança aplicáveis para o acesso em suas unidades offshore no Brasil, conforme recomendações das autoridades competentes e boas práticas de mercado, além de possuir ações de apoio à saúde mental e suporte psicológico individual aos seus empregados.
O advogado Luiz de Andrade Mendes, que defende o Siemasa no processo sobre a rotina de trabalho dos mergulhadores, informou que a entidade lamenta a morte dos trabalhadores.
Mendes disse que o Siemasa pediu à Justiça um período de até 28 dias para adequar a escala de mergulhadores ao padrão 14 por 14. Lembrou ainda que a escala 28 por 28 só existe por causa da pandemia, e, na opinião do Siemasa, ela é menos penosa do que a fixada em decisão liminar.
“Na 14 por 14, o mergulhador estará trabalhando ou cumprindo quarentena em hotel ou em casa visto que é necessário o resguardo antes do embarque por segurança dos próprios trabalhadores”, explicou Mendes. “Na 28 por 28, pelo menos há alguns dias livres em casa.”
O advogado disse que esses argumentos serão levados à Justiça para que a decisão liminar seja reconsiderada caso o coronavírus permaneça representando um risco aos trabalhadores do país. “Se tivermos a vacinação, essa questão acaba.”
Caso precise de ajuda ou informações, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.