Medo e transtornos mentais: estudo inédito mapeia efeitos de violência na Maré
Pesquisa conduzida nas comunidades na zona norte do Rio mostra que população teme balas perdidas e não se acostuma à violência
“O medo é constante. É incerto sair de casa e voltar vivo. Ir ao mercado e não levar uma bala perdida ou ‘achada'”. Adriano Mendes, 25, nasceu e foi criado no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Como outros jovens de sua idade da mesma área, o mestrando em planejamento urbano e captador de recursos de uma ONG na região já presenciou tiroteios, viu “gente morta na rua” e teve a casa invadida durante operações policiais.
“Quando eu era criança, presenciava [tiroteios] sem entender. Mas a partir dos 15 anos tive mais consciência das violências passadas ao longo da vida. E entender outras violências que poderiam ocorrer comigo”, afirma.
Mendes descreve o temor que foi detectado por um estudo sobre os efeitos da violência na saúde mental de quem vive na Maré, complexo composto por 16 favelas e com um total de 140 mil moradores.
Segundo a pesquisa, 50,2% da população da Maré sempre sente medo de ser atingida por um tiro. Quando o estudo juntou a esses grupos os moradores que disseram ter receio “muitas vezes” e os que têm medo “com frequência” de serem atingidos por bala perdida, a parcela da população é 63%. Esse percentual sobe para 71% quando o temor é sobre outra pessoa.
A pesquisa, que ouviu 1.411 moradores com 18 anos ou mais, foi realizada pela ONG Redes da Maré, pelos departamentos de serviço social e psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pela People’s Palace Projects, organização de pesquisa da Queen Mary University of London, da Inglaterra.
Por seu caráter inédito – nenhum outro estudo em favelas cruzou dados sobre pobreza, violência e saúde mental -, ela foi publicada na segunda-feira (13) no site da revista inglesa “The Lancet” (1), publicação considerada mundialmente a mais importante na área de ciências médicas. Em outubro, o estudo sai na edição impressa da revista.
Um dos coordenadores do estudo, Paul Heritage, pesquisador e diretor da People’s Palace Projects, disse que o indicador do temor entre os moradores é alarmante.
“O medo afeta todas as partes da vida, é isso que a pesquisa tentou mostrar. O medo inviabiliza uma vida. É uma situação do Rio, mas com mais intensidade nessas comunidades. Sabemos que podemos fazer entrevistas no Leblon [zona sul do Rio] e iriam falar do medo. Mas é diferente do que ter medo ao ir para escola, ao mercado, pegar o transporte público”, disse Heritage.
Confrontos armados
Em 2018, quando começou o estudo, o Estado do Rio passou por uma intervenção federal com a presença de militares em operações e patrulhamento em pontos apontados como críticos para a segurança pública. O Complexo da Maré foi um dos alvos da operação. Essa guerra conflagrada entre forças de segurança e bandidos retroalimenta o medo.
“Quando vejo o caveirão [nome popular do blindado da Polícia Militar do Rio], não tenho como descrever a sensação de medo. Aquele carro preto imenso atirando para todos os lados… não tem como me sentir protegida”, disse Michele Cristina Silva, 39, que vive com dois de seus três filhos e um neto numa casa na Maré. Ela também já deixou de contar quantas vezes ouviu tiros ou viu conhecidos e vizinhos baleados.
De acordo com a pesquisa, entre 2018 e 2020 o Complexo da Maré passou por 71 operações policiais, com 58 mortes e 57 feridos. No mesmo período, foram 83 confrontos entre grupos armados, incluídas aqui quadrilhas de traficantes e milicianos, com 34 mortes em decorrência desses tiroteios e 31 feridos.
Já um levantamento da Fogo Cruzado, plataforma digital que registra dados de violência armada nas regiões metropolitanas do Rio e de Recife com base em informações de seus usuários, mostra números mais específicos de vítimas de balas perdidas. No Complexo da Maré, foram cinco mortos e 11 feridos entre 2018 e 2020.
Dos moradores ouvidos no estudo, 44% presenciaram um confronto armado nos doze meses anteriores à pesquisa e destes, 73% passaram por essa situação mais de uma vez. Outros 17% já viram alguém ser morto ou baleado e 55% desse montante vivenciou isso mais de uma vez.
Um a cada quatro moradores (25,5%) teve alguém próximo ferido ou assassinado. A proporção dos que viram alguém ser espancado ou agredido nos doze meses antes da pesquisa é 24% e 63% deles viram isso acontecer outras vezes.
Traficantes x milicianos x policiais
O comportamento das ocorrências de tiroteio muda dentro do complexo, como mostra o estudo, que dividiu a Maré em três áreas: 1, 2 e 3. As duas primeiras são dominadas por traficantes de facções rivais – o Terceiro Comando Puro e o Comando Vermelho -, mas a pesquisa não identificou em quais áreas específicas eles atuam.
A área 3 é de poder da milícia. Nas regiões 1 e 2, respectivamente, 50% e 48% dos moradores disseram ter presenciado um tiroteio. Na área 3, registros de confrontos armados e operações policiais praticamente não existem: somente 5% dos entrevistados relataram ter passado por essa situação.
“Tenho pânico de bala perdida porque dão tiros de qualquer canto. Imagina matar um dos meus filhos e falar que é bandido? Já vi um vizinho baleado na porta da minha casa, filho de uma amiga”, desabafou Michele sobre o que sente, principalmente em relação a operações policiais.
Saúde mental afetada
“Tenho o privilégio de fazer terapia. Tive princípio de depressão, ansiedade, tenho enxaqueca que não passava com remédios. Aumentei as sessões e melhorou. Tenho vontade de sair daqui, mas tenho o conflito de pensar que posso estar abandonando minha raiz”, contou o universitário Celso Cândido, 20, morador da Vila do Pinheiro.
O que o morador relata também aparece no estudo feito na Maré. Ao menos 31% dos moradores relataram algum prejuízo na saúde mental por conta da violência nas comunidades.
Quando a pesquisa fez um recorde para quem presenciou um tiroteio, uma exposição mais direta à violência, os danos têm mais frequência: 44% disseram que sua saúde mental foi abalada e 29% percebem efeitos sobre a saúde física.
“Esses transtornos são boa parte causados pela violência, mas há uma questão estrutural. Não ter saúde e segurança também é uma violência”, diz Cândido.
Com um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,722 – abaixo do município do Rio, que é de 0,799 -, o conjunto de comunidades tem hoje 56,7% de seus moradores desempregados, de acordo com o levantamento. Como parte de sua infraestrutura, há 3 mil estabelecimentos comerciais e 50 escolas.
A ideia de fazer a pesquisa, segundo Luna Arouca, coordenadora do eixo de saúde da Redes da Maré, é trazer visibilidade para a saúde mental no território, mas também como esse fator é negligenciado pelo poder público.
“O intuito é mostrar o impacto da violência na vida das pessoas e como isso terá reflexos sobre o sistema de saúde e outras demandas que os moradores vão apresentar. Queremos chamar atenção sobre a forma como a política de segurança pública negligencia esse impacto. Quando se está dentro da Maré e tem helicóptero Águia passando na sua cabeça, é uma sensação de desespero, de pré-morte”, afirma Luna.
A coordenadora também lembra que a estrutura de atendimento à saúde nas comunidades da Maré é precária. “Muitos moradores têm essa demanda de atendimento psicológico e não conseguem ter acesso a esse serviço. Ou não conseguem chegar ao atendimento por causa de operação policial ou confronto”, diz a coordenadora da Redes.
Segundo Luna, três CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que ficam em bairros no entorno da Maré fazem atendimento aos moradores das comunidades do complexo e algumas equipes de saúde vão até as favelas para ter encontros com moradores.
“Tive síndrome do pânico porque todo dia 5h tinha operação [policial]. Aqui a gente não tem muito costume de ir ao médico, tomava chá para conseguir dormir”, conta Michele sobre um “autodiagnóstico” que fez após uma das vezes que sua casa foi invadida por policiais durante uma operação. A pesquisa mostrou que ao menos 13% da população da Maré já teve a casa invadida durante incursões policiais.
A mãe de Celso Cândido, Flávia, relata experiência similar à de Michele. “Minha casa foi invadida em 2019 em uma operação. Desde então, tomo medicação para ansiedade e pressão. Minha casa é própria, mas mudei para um lugar onde, se começar um confronto, eu consigo sair rapidamente. Mas agora pago aluguel.”
Visão distorcida
As consequências na saúde da população das comunidades que compõem a Maré mostram que é falsa a ideia de que os moradores de favelas teriam se acostumado à violência em seu cotidiano.
Apesar de a população desses territórios ser profundamente afetada por confrontos armados, agressões, abordagens policiais e outras violações, os números da pesquisa mostram o contrário. Até mesmo a própria vida é colocada em questão por parte dos moradores: 12% relatam pensamentos sobre suicídio e 30% sobre morte.
“A pesquisa derruba essa ideia de que estão acostumados. De que tem um menino com uma arma na esquina e se aceita isso. É o contrário. É resiliência. É aceitar o que acontece e conseguir passar por ali. Mas cada vez que seu corpo tem que registrar o menino com aquela arma ou a polícia que entra e atira, tem cada vez mais impacto. Não se acostuma”, explica Paul Heritage.
Remédios
Mas como tornar a vida suportável quando o medo é constante? As respostas estão dentro do próprio Complexo da Maré, como demonstra a parte do estudo que buscou respostas para os moradores enfrentarem essas situações.
“A Maré tem muita potência, atividade, produção cultural, recursos. A pesquisa é também sobre que tipos de recursos podemos usar para melhorar nossos sofrimentos e a Maré tem nesses recursos”, explica o coordenador.
Entre os dados que a pesquisa chamou de Fatores de Resiliência estão que 69% dos moradores são satisfeitos com suas amizades, 46% praticam atividades físicas, 85% estão satisfeitos com as pessoas com que moram, 71% praticam uma religião, 83% tem acesso à internet e 82% tem um amigo de verdade. Apesar de todo o medo mostrado na pesquisa, 67% respondeu que não sente receio em circular pela Maré.
“São dados positivos. Quando 82% falam que têm um amigo de verdade eu abro um sorriso. Eles têm laços. Esse é o remédio coletivo. Existe o alerta, mas também estes caminhos”.
Outro lado
A pesquisa feita no Complexo da Maré não especifica que corporações policiais atuam nas favelas. A CNN procurou as secretarias de Estado das polícias Militar e Civil do Rio para repercutir sobre os resultados do estudo e as falas de seus coordenadores.
A Polícia Civil respondeu por meio de nota. “As operações da Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) do Rio de Janeiro são pautadas nos pilares de inteligência, investigação e ação e têm alcançado redução em índices registrados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), que são os melhores desde o início da série histórica. As ações ganharam mais efetividade, possibilitando a localização e prisão de líderes de organizações criminosas e sufocando as finanças dessas quadrilhas, sempre priorizando a preservação de vidas, tanto de policiais quanto dos cidadãos”.
O órgão não divulgou os índices mencionados na nota. A Polícia Militar não respondeu até a publicação da reportagem. A CNN também acionou a Secretaria Municipal de Saúde, responsável pelo atendimento primário aos moradores, mas não obteve resposta.