Mais tecnologia e fiscalização: visões que unem ambientalistas e ruralistas
Receita é apontada por lados antagônicos como solução para evitar maior degradação da Amazônia sem perder produtividade no agronegócio
Quando postos à mesa, os dados sangram: o avanço da pecuária, aliado ao intenso cultivo de soja, alimenta-se da floresta amazônica. Em outras palavras, a mata vira pasto.
A boa notícia é que o caminho para resolver essa dinâmica nociva é um raro consenso entre ruralistas e ambientalistas: a adoção urgente de tecnologia de ponta somada a uma fiscalização mais eficiente para que as leis sejam cumpridas.
O dilema a ser resolvido é o do uso da terra versus a preservação. Levantamento realizado pela plataforma Mapbiomas mostra que, entre 1985 e 2020, a área de agropecuária no Brasil cresceu cerca de 81 milhões de hectares. E que 15% da área do bioma Amazônia (aproximadamente 63 milhões de hectares) está ocupada atualmente com agropecuária. Só a pecuária avançou, nesses 36 anos, 38 milhões de hectares na Amazônia — um aumento de cerca de 200%.
Corroborando esses dados, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 89 milhões de cabeças de gado, praticamente 42% de todo o rebanho brasileiro, estão ruminando no solo dos nove estados que formam a chamada Amazônia Legal.
Ruralistas e pecuaristas apontam que são regidos por normas rígidas e agem como protetores da natureza. Já os ambientalistas tendem a culpar o avanço do agronegócio pela degradação das florestas.
“Mesmo com toda essa área já convertida, e muitas vezes para pastos com baixa produtividade, o ritmo do desmatamento aumentou novamente nos últimos três anos”, diz a gerente de ciências do WWF-Brasil, Mariana Napolitano.
“O agronegócio precisa se comprometer com uma cadeia completamente livre de desmatamento na Amazônia e demais biomas, investindo mais em ferramentas de rastreabilidade para garantir a origem dos produtos e tecnologia para tornar as áreas degradadas mais produtivas.”
O desafio parece ser esse: aumentar a produção utilizando o que já não é mais floresta. O cientista político Christian Lohbauer defende esse ponto. Ex-executivo da Bayer, candidato à vice-presidência pelo partido Novo em 2018, atualmente ele preside a CropLife Brasil, uma associação de empresas de insumos agrícolas e biotecnologia que costumeiramente defende questões como o uso de agrotóxicos e a liberação de transgênicos.
“Um olhar sobre a história agrícola revela que o seu crescimento não tem a ilegalidade como base”, argumenta. Para ilustrar, recorre a dados. Lembra que a produção de grãos no Brasil cresceu cinco vezes nos últimos 40 anos, enquanto a área plantada aumentou 1,7 vezes.
“E esse cálculo não inclui as culturas de café, cana-de-açúcar e laranja. Ainda assim, toda a agricultura brasileira ocupa menos de 8% do território nacional”, afirma.
Para Fabio Feldman, consultor sênior de articulação política do think tank Centro Brasil no Clima, não é bem assim. “O agro tem responsabilidade na supressão que realizou até aqui para plantio da soja, pecuária e outras culturas. É impossível brigar com as imagens de satélites, mapas e a realidade”, afirma.
“Não podemos dizer que o agronegócio brasileiro inteiro desmata, porque o agronegócio brasileiro inteiro não está na Amazônia”, diz Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, rede de entidades civis. “Mas o agronegócio tem grande parte de responsabilidade com o que acontece com a floresta.”
Conselheiro da Sociedade Rural Brasileira, o advogado Francisco de Godoy Bueno vê, ao contrário, o agronegócio como um guardião da floresta.
“A legislação de uso e ocupação do solo no Brasil é bastante restritiva e impõe para o proprietário rural a obrigação de preservar florestas de modo absoluto ou mediante planos de manejo sustentáveis. Na Amazônia, para se ter um hectare de produção é preciso ter outros quatro de preservação, no mínimo”, destaca ele.
“É a produção agropecuária amazônica que financia, em parte, a proteção da floresta. Especialmente nas terras sob posse ou propriedade privada”, acredita.
Ele se refere principalmente ao Código Florestal, de 2012. A legislação prevê regras rigorosas para a manutenção de vegetação nas propriedades rurais. Há variáveis. A regulamentação, contudo, determina um percentual de reserva legal nas propriedades — na Amazônia Legal, corresponde a 80% da propriedade.
Além de diversas legislações ambientais, há também acordos como a moratória da soja, firmado em 2006 entre governos, agroindústria e organizações ambientais. Pelo pacto, ninguém deveria comprar soja produzida em região de desmatamento da Amazônia.
Em balanço divulgado 12 anos depois pelo próprio Ministério da Agricultura, os resultados eram visíveis: a média anual de desmatamento nos 89 municípios participantes havia caído 85%.
Se existe um arcabouço de leis em vigor, a fiscalização é que anda pouco eficiente. De acordo com um levantamento realizado neste ano por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, houve um esvaziamento nos órgãos responsáveis em punir infratores de crimes ambientais no Brasil desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Conforme levantaram os pesquisadores, a média anual de multas por crimes ambientais pagas entre 2014 e 2018 chegou a 688. Nos dois primeiros anos do atual governo, 2019 e 2020, essa média caiu para 44. No total, eram cerca de 5 mil processos por ano. Em 2019 foram 113. No ano seguinte, apenas 17.
Procurado pela CNN, o Ministério do Meio Ambiente não se manifestou. Já o da Agricultura enviou uma nota (leia mais abaixo), em que informa que “há que se ressaltar que temos um grande desafio: promover o desenvolvimento sustentável no bioma amazônico”.
“Como grande exportador agrícola, o Brasil tem percepção muito clara do papel que a agricultura pode desempenhar na promoção do desenvolvimento econômico, da inclusão social e de externalidades ambientais positivas. Mas também somos plenamente conscientes do quanto a mesma agricultura é vulnerável aos impactos das mudanças climáticas, e dos riscos daí decorrentes à segurança alimentar do planeta”, acrescenta o texto.
É agro, pode ser tech
Agora, ao consenso. Para não faltar comida na mesa e a balança comercial agropecuária ser favorável, e a floresta amazônica continuar funcional e preservada, a única saída viável parece ser a tecnologia.
Estudos já indicam que os efeitos da desenfreada ação antrópica sobre a floresta já estão revertendo em prejuízo para o setor agro.
Um deles considera as temperaturas ideias para todo o ciclo do cultivo da soja e compara com o que já vem sendo registrado hoje na região, com consequências para que a produtividade não seja a ideal.
De acordo com os pesquisadores, a elevação da temperatura já faz com que a produção de soja renda US$ 100 a menos por hectare por ano. Considerando que são 35,8 milhões de hectares atualmente dedicados à essa monocultura, a conta é de US$ 3,55 bilhões.
Se as previsões se confirmarem, aumenta a possibilidade de a Amazônia entrar no chamado ponto de não retorno.
“Hoje é possível e desejável aumentar a produtividade nas áreas já implantadas sem expansão sobre os habitats naturais ainda preservadas”, frisa Feldman.
“A partir do uso de técnicas e tecnologias, hoje amplamente empregadas pelo setor e exigidas pelos consumidores, a rastreabilidade e monitoramento das cadeias produtivas são requisitos imprescindíveis no agro e no combate à criminalidade ambiental por parte dos governos.”
A receita está pronta. Falta seguir o modo de fazer. “A adoção de tecnologia, decorrente da inovação e a regulamentação são essenciais no contexto de sustentabilidade no campo”, concorda Lohbauer.
O presidente da Associação Brasileira do Agronegócio, Marcello Brito, também defende esse ponto. E lembra que não se pode generalizar o setor agro como vilão. “A mesma ciência que nos aponta oportunidades e desafios também mostra o forte aumento no ‘compliance’ do agronegócio nacional, um dos melhores do mundo quando comparado a países no mesmo grau de desenvolvimento que o nosso”, afirma.
“A agricultura é solução para as mudanças climáticas, não há mais duvidas quanto a essa afirmação”, argumenta Brito.
“Mas, naturalmente, falo aqui da moderna agricultura de baixo carbono, com práticas de intensificação, manejo, rotação, plantio direto, ILPF [lavoura-pecuária-floresta], SAFs [sistema agroflorestal] e mais uma série de práticas produzidas pela melhor ciência. O que antes eram experiências em pequenos espaços hoje pode ser visto em fazendas de milhares de hectares de plantios, ou até em vastas áreas de pecuária carbono neutro.”
“A ciência já nos deu acesso a esse conhecimento, agora é vez de o setor se reinventar”, completa. “O desafio será como difundir essas inovações aos pequenos e médios produtores.”
Astrini acrescenta que, na prática, já ficou provado que a agropecuária não precisa desmatar para crescer. “Entre 2004 e 2012, o Brasil experimentou uma queda de 80% do desmatamento da Amazônia e, no mesmo período, a gente teve ou manutenção ou avanço da produção agropecuária. O agronegócio é capaz de aumentar a produtividade com tecnologia, sem abrir novas áreas”, ressalta ele.
A parte de cada um
Brito reconhece que é preciso cumprir deveres de casa. “Não necessariamente [competentes] à cadeia do agronegócio, mas à sociedade brasileira, que de forma omissa assiste, ano após ano, a degradação de nossos biomas sob um silêncio ensurdecedor”, diz.
Ele cobra que cada consumidor escolha conscientemente os produtos, para coibir práticas ecologicamente incorretas. E, claro, espera ações políticas compatíveis às necessidades destes tempos de catástrofe ambiental.
“A cada quatro anos temos a chance de rever o nosso projeto de país”, comenta.
“Para os jovens que tiveram filhos ou idosos que tiveram seus netos em 2021, não é mais surpresa para ninguém que esses estarão vivos e com saúde em 2100 e, sim, verão o próximo século. Não se trata de deixar um mundo melhor para uma geração abstrata que nunca conheceremos, mas para os nossos entes queridos, que hoje já nos abraçam e formam nosso círculo familiar.”
“Se esse já não é um motivo suficiente para um novo comportamento social, é porque como sociedade perdemos a real do que realmente importa: a vida”, acrescenta ele.
O que diz o governo
A CNN procurou o Ministério da Agricultura e o do Meio Ambiente para se manifestar sobre o desmatamento na Amazônia. O do Meio Ambiente não respondeu.
A pasta da Agricultura aponta o Plano ABC como seu principal mecanismo nesse equilíbrio entre agronegócio e preservação. “O Plano ABC é referência mundial de política pública na promoção de tecnologias e práticas sustentáveis no setor agropecuário e foi executado de 2010 a 2020”, diz a pasta, em nota.
“Para os próximos 10 anos, o Plano foi atualizado. Chama-se ABC+ e pretende reduzir a emissão de carbono em mais de 1 bilhão de toneladas até 2030, a partir do aumento de áreas que utilizam técnicas sustentáveis, a ampliação do tratamento de resíduos animais e o abate de gado em tecnologia de terminação intensiva”, acrescenta o texto.
A nota continua, dizendo que o “ABC+, que este ano recebeu recursos recordes no Plano Safra, estimula uma agropecuária de baixa emissão de carbono, conservadora dos recursos naturais, que, ao mesmo tempo, observa os principais ambientais preconizados na legislação ambiental brasileira”.
Lohbauer é um dos que elogiam o plano ABC, apostando na iniciativa como um meio efetivo de adaptação do agronegócio ao contexto da crise climática. “Em dez anos, de 2010 a 2020, o plano trouxe resultados positivos”, comenta ele, ressaltando que quase 50 milhões de hectares do Brasil já se adaptaram às diretrizes do modelo.
Outros pontos destacados pela nota do Ministério da Agricultura são as “ações da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo (SAF), que fomentam a adoção de soluções tecnológicas nos processos produtivos para promover o desenvolvimento sustentável de agricultores familiares” e o apoio financeiro a “vários projetos que a Embrapa desenvolve, baseados na concepção de atividades de bioeconomia, que também envolvem a adoção de sistemas agroflorestais. Manejo de açaí nativo, cupuaçu, mel de abelhas nativas, piaçava, são alguns exemplos”.