Juíza recebeu R$ 700 mil em licença remunerada para produzir dissertação considerada incompleta
Magistrada alega perseguição e conseguiu na justiça o direito de defender o trabalho que tinha falhas gramaticais e falta de profundidade na pesquisa, segundo avaliação de pré-bancas
A juíza titular da Vara do Trabalho de Santa Inês (MA), Fernanda Franklin da Costa Ramos, recebeu R$ 722 mil dos cofres públicos em licença remunerada de dois anos, com salários mensais de cerca de R$ 33 mil, para produzir uma dissertação de mestrado que foi considerada inconsistente e mal escrita, segundo avaliações preliminares da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Após dois pareceres que indicaram a necessidade de aprofundar a pesquisa, além de sugerirem melhorias na revisão gramatical e apontarem a falta de clareza e objetividade no texto, a magistrada, que alega perseguição (abaixo, a íntegra da defesa), recorreu à Justiça Federal para poder defender a dissertação como foi entregue originalmente. O pedido foi aceito e a banca foi agendada para o próximo dia 24 de abril.
A CNN teve acesso ao mandado de segurança feito pela magistrada para defender a dissertação e também à resposta da universidade ao documento. De um lado, Fernanda explicou que realizou “um esforço hercúleo de trabalho, ausentando-se de suas atividades profissionais” para atender a sugestões da banca.
À CNN, a defesa da juíza alegou que ela teria sido perseguida “com imposição de critérios inexistentes”.
Por outro lado, a documentação analisada, que também inclui as alegações do Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR), que integra a pós-graduação da Universidade Federal do Maranhão, aponta as fragilidades do trabalho e responde sobre a hipótese levantada de perseguição.
“Nunca houve por parte de nenhum membro do Colegiado do PPGDIR o interesse em prejudicar qualquer mestrando que seja, até porque quem mais perde com isso é o próprio programa, que reduz a sua produção científica”, diz a universidade.
Para a defesa da magistrada, “a necessidade de melhoria da dissertação do ponto de vista qualitativo e quantitativo carecem de fundamentação, primeiro porque o trabalho foi qualificado pelos professores doutores que compõem a banca e segundo que a versão final da dissertação ainda não foi avaliada pelos membros da banca”, diz nota.
Cronologia
De acordo com a documentação, Fernanda havia apresentado, em 5 de janeiro, um trabalho com cerca de 60 páginas. Em um primeiro parecer, os avaliadores do programa de mestrado concluíram que o trabalho não cumpria com os requisitos para a defesa em banca.
Posteriormente, um examinador externo ao programa foi o responsável por uma segunda análise. Ele indicou as mesmas fragilidades na dissertação. Dessa forma, após o parecer do segundo examinador, a universidade concedeu mais três meses para melhor apresentação da tese, o que não teria sido aceito pela magistrada.
Nos documentos que sustentam a reprovação preliminar, a universidade alega que “para evitar que trabalhos pouco desenvolvidos fossem apresentados à banca final de defesa, de modo a proteger a qualidade e imagem do PPGDIR, o Colegiado deliberou, por unanimidade, que todos os trabalhos deveriam ter no mínimo 100 (cem) páginas da introdução às considerações finais”, de acordo com o documento.
A defesa da juíza rebate esse critério de número mínimo de páginas, alegando que o requisito não consta no regimento interno do PPGDIR e no regimento interno das pós-graduações ou em qualquer outro regulamento do curso e da instituição, indicando que foram estabelecidos exclusivamente para esse caso específico.
Sobre o trabalho entregue pela juíza, a universidade afirma que em pouco mais de 30 dias foi produzido um material equivalente a 50% do trabalho que deveria ser desenvolvido em dois anos, e que é necessário entregar um trabalho de maior qualidade.
“Sem meias palavras, o trabalho apresentado por Fernanda Franklin da Costa Ramos estava ruim e necessitava de tempo suficiente para que a pesquisadora implementasse as melhorias. Esta é toda a verdade dos fatos!” diz o documento assinado pela UFMA.
Na documentação em que pede para que a liminar que concedeu o direito de defesa da dissertação seja reconsiderada, a universidade diz que não é razoável crer que os professores poderiam articular suposta perseguição em face de mestranda.
O que diz o CNJ
A CNN consultou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que informou que o afastamento de magistrados para fins de aperfeiçoamento profissional é regulamentado e que não há descontos nos subsídios, de forma que os prazos são definidos de acordo com a demanda.
O órgão também afirmou que cabe ao magistrado restituir ao erário o valor correspondente aos subsídios e vantagens percebidos durante o afastamento, na hipótese de não conclusão do curso por fato atribuível ao magistrado.
Outro lado
A CNN procurou a juíza Fernanda Franklin da Costa Ramos, que indicou o advogado César Pires Filho para esclarecer os questionamentos feitos. Ele explicou que o Mandado de Segurança para apresentar o trabalho foi impetrado “em face de ato ilegal praticado pelo presidente do colegiado e coordenador do Programa de Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (PPGDIR) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Paulo Roberto Barbosa Ramos”.
Pires Filho também considerou a exigência de dedicação integral em relação ao mestrado, prevista em lei, e disse que “a licença concedida tem como fim último o aprimoramento, o que é previsto em diversas carreiras e inclusive na Magistratura, tendo em vista que o aperfeiçoamento técnico do profissional se reveste, sobretudo, em benefício da própria sociedade para a qual exerce suas atividades, ainda mais no caso da impetrante, cujo tema de dissertação encontra-se afinado com sua área de atuação”.
“Ademais, é de toda importância esclarecer que a licença é concedida para cursar o mestrado que, aliás, não se destina apenas à elaboração da dissertação, mas também ao cumprimento de 28 (vinte e oito) créditos de disciplinas que se estendem ao longo de todo o curso e publicação de artigos que são condição para a obtenção do diploma de Mestre ao final, além da aprovação da dissertação.
A magistrada concluiu e foi aprovada em todos os créditos das disciplinas, tendo integralizado 32 (trinta e dois) créditos ao final e publicou 08 (oito) artigos ao longo do curso (mais do que o exigido pelo programa, frisa-se), sendo aprovada, pois, em todas as etapas.
Se dedicou à elaboração de uma dissertação centrada no tema “Precarização e Escravidão Contemporâneas: reforma trabalhista, os direitos fundamentais e a dignidade humana, das promessas ao desencantamento” que foi entregue dentro do prazo estabelecido pelo Regimento Interno da Universidade Federal do Maranhão, apresentando-a no dia 26/01/2023 e sendo devidamente qualificada pelos professores que compunham a banca: professor doutor Cássius Guimarães Chai (orientador), professor doutor José Cláudio Pavão Santana (coorientador), professora doutora Mônica Fontenelle Carneiro (examinadora interna) e professora doutora Valena Jacob Chaves (examinadora externa da Universidade Federal do Pará), conforme súmula de qualificação.
As informações veiculadas sobre a necessidade de melhoria da dissertação do ponto de vista qualitativo e quantitativo carecem de fundamentação, primeiro porque o trabalho foi qualificado pelos professores doutores que compõem a banca e segundo que a versão final da dissertação ainda não foi avaliada pelos membros da banca. A defesa pública final ocorrerá apenas em 24 de abril de 2023, ocasião em que a banca examinadora e com competência para tanto, após defesa realizada pela magistrada, aprovará ou reprovará e tecerá comentários acerca do trabalho apresentado.
O mandado de segurança foi impetrado e motivado pelas violações da Coordenadoria e do Colegiado do Mestrado ao direito líquido e certo da magistrada em realizar a defesa pública final da dissertação no dia 02/03/2023, nos moldes da Portaria nº.27/2023, que já havia sido homologada pela instituição, culminando com a perseguição à discente com imposição de critérios inexistentes no Regimento Interno do PPGDIR e no Regimento Interno do Programa de Pós-Graduação e consequente suspensão da Portaria mencionada.
Dentre os requisitos impostos à magistrada para aprovação da dissertação, constava a exigência de número mínimo de 100 (cem) páginas e a análise do trabalho por um examinador externo que deveria não só emitir parecer acerca do estudo, como compor a banca examinadora.
É importante ressaltar que tais critérios não constam no Regimento Interno do PPGDIR e no Regimento Interno das Pós-graduações ou em qualquer outro regulamento do curso e da instituição, indicando que foram estabelecidos exclusivamente para esse caso específico, tanto se perfaz que conforme demonstrado no mandado de segurança são inúmeros os trabalhados de orientandos de membros do colegiado que possuem número de páginas inferior à 100 (cem), razão pela qual a segurança se fundamenta na violação aos princípios da legalidade, impessoalidade, irretroatividade, entre outros. Sem contar que o avaliador externo indicado, o professor Luiz Roberto Salles Souza, não possui publicações na linha de pesquisa da magistrada, estando afeto a questões de Direito Processual Penal, conforme denuncia o lattes.
Sendo assim, a defesa pública final não foi prorrogada a pedido da magistrada, mas imposto pelo programa de mestrado com fundamento em requisitos inexistentes no regimento interno da instituição, de modo que por se tratar de uma ilegalidade a discente fez uso da tutela jurisdicional a fim de que o direito de defender a dissertação dentro do prazo inicialmente previsto fosse observado.
O Mandado de Segurança não foi impetrado tendo como finalidade obter autorização judicial para defesa pública final de um trabalho realizado sem esmero, até porque como esclarecido o trabalho foi aprovado em qualificação com professores com aptidão técnica para isso e a magistrada concluiu o curso com distinção, mas em realidade para denunciar as ilegalidades/abusos perpetrados pelo programa de mestrado da UFMA.
A ação foi ajuizada ainda, sobretudo, pelo interesse da discente em concluir o curso dentro do período estabelecido no edital, qual seja 03/2023 a fim de que pudesse retornar às suas atividades laborais no prazo correto, sem necessidade de prorrogação, como inclusive já o fez.
Atualmente a magistrada já voltou à atividade jurisdicional em sua comarca e sem necessidade alguma de prorrogação da portaria que concedeu a licença, não por ocasião da observância do programa aos prazos estabelecidos no Regimento Interno do PPGDIR e no Regimento Interno das Pós-graduações, mas graças à tutela jurisdicional que observando a flagrante violação à legislação e ao direito líquido e certo da discente concedeu a segurança para que possa realizar a defesa final dentro do prazo previsto, sem prejuízo de suas atividades funcionais.
A juíza Fernanda Franklin da Costa Ramos esclarece que teve a defesa de sua dissertação de mestrado suspensa porque foram impostas exigências não previstas ao longo do curso. Depois que as regras irregulares foram afastadas, ela defendeu o trabalho e foi aprovada – por banca legítima e altamente qualificada – com distinção, louvor e recomendação de publicação. A magistrada reforça que a licença para aperfeiçoamento profissional é prevista na Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979) e regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).