Guerrilhas, sequestros e luta por terra: a tensão na fronteira Brasil-Paraguai
Atuação de grupos como o EPP, que sequestra e cobra “impostos” para se financiar, afeta diretamente fazendeiros brasileiros e pode ter ligação com tráfico
A movimentada e violenta fronteira entre Brasil e Paraguai ganhou um novo fator de risco. A região, que há anos é rota internacional do tráfico de drogas e território disputado por facções criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital), passou a ser também área de atuação de grupos guerrilheiros paraguaios. E a presença deles naquela área já virou tema de preocupação para autoridades brasileiras, incluindo policiais federais e diplomatas.
Existem no Paraguai duas guerrilhas de origem comum e linhas de atuação semelhantes. Ambas têm cerca de cem membros cada, segundo autoridades paraguaias. O EPP (Exército do Povo Paraguaio) foi fundado em 2008. Já o ACA-EP (Agrupamento Camponês Armado – Exército do Povo) foi criado em 2019 por dissidentes do EPP.
Historicamente, os dois grupos têm propósitos políticos alinhados a ideais de esquerda, ao marxismo e ao leninismo. Lutam, em tese, pela distribuição de terras a camponeses no Paraguai e são contra, entre outras coisas, que brasileiros detenham parte das áreas agricultáveis de seu país – hoje, cerca de 60% das fazendas de soja do leste do Paraguai pertencem a brasileiros.
Os guerrilheiros transitam principalmente por estados da região nordeste do Paraguai cobrando “impostos” de grandes agricultores ou realizando sequestros e pedindo resgates para se financiarem. Mais recentemente, porém, ambos passaram a atuar também em áreas próximas ao Brasil, no leste paraguaio.
Ali, têm atacado com mais frequência propriedades rurais de brasileiros e, segundo a Polícia Federal do Brasil, interagido com facções criminosas brasileiras, as quais controlam plantações de maconha semeadas naquela região e o transporte de cocaína que passa da Bolívia pelo país vizinho até chegar ao mercado brasileiro.
“A região norte do Paraguai, que corresponde a área de atuação do grupo criminoso [no caso, o EPP], apresenta recorrência no que se refere ao tráfico de drogas e na existência de plantações de maconha. A interação deste grupo criminoso com organizações criminosas voltadas ao tráfico de drogas, tanto paraguaias, quanto brasileiras vem ocorrendo”, declarou à PF, em resposta a pedido de informações feito pela CNN Brasil. “A Polícia Federal acompanha com extrema atenção as informações acerca da atuação deste grupo.”
Elo com série de assassinatos
Essa atenção da PF se justifica, porque a presença da guerrilha na fronteira é uma das possíveis causas de uma série de assassinatos que aterroriza moradores das cidades vizinhas de Ponta Porã (MS), no Brasil, e Pedro Juan Caballero, já no Paraguai, há meses.
Em agosto deste ano, o embaixador brasileiro no Paraguai, Flavio S. Damico, já havia alertado o Itamaraty sobre essa possibilidade em telegrama ao qual a CNN teve acesso. As mensagens foram obtidas após pedido feito ainda em agosto ao Itamaraty, com base na Lei de Acesso à Informação.
Naquele mês, seis assassinatos, incluindo o de dois brasileiros – Robson Martinez Souza, 21, e Jeferson Martinez de Souza, 18 –, foram atribuídos a um grupo autodenominado “Justiceiros da Fronteira” e repercutiram na imprensa.
As mortes ganharam destaque porque, junto com os corpos das vítimas, investigadores encontraram bilhetes assinados pelos tais justiceiros. Damico alertou o governo brasileiro que um desses bilhetes indicava que o EPP seria um dos alvos dos criminosos.
“Em bilhete encontrado na cena dos crimes, mencionava-se que o alvo dos ‘Justiceiros da Fronteira’ seria o grupo armado ‘Exército do Povo Paraguaio’”, descreveu. “Tal incidente teria ocorrido dois dias após o EPP deixar mensagem em uma estação de rádio de Pedro Juan Caballero, na qual exigia que os ‘Justiceiros da Fronteira’ deixassem de matar inocentes.”
Desde esses seis assassinatos de agosto, pelo menos outros 22 já foram registrados na fronteira entre Brasil e Paraguai. Policiais investigam uma suposta disputa por poder entre traficantes, mas não descartam completamente a relação das guerrilhas com as mortes.
Fogo em fazenda de brasileiro
O embaixador Damico, que assumiu a embaixada brasileira no Paraguai em 2019, já escreveu ao menos seis telegramas ao Itamaraty sobre temas relacionados às guerrilhas paraguaias.
Em abril deste ano, por exemplo, Damico relatou um ataque da ACA-EP a uma fazenda de um brasileiro no Paraguai em outra mensagem enviada ao Brasil.
Segundo Damico, a fazenda, localizada no estado de Concepción, que faz fronteira com o Brasil, foi atacada por três homens com armas longas, usando gorros e uniformes militares. Eles teriam ateado fogo na propriedade “em retaliação à suposta recusa do proprietário da estância em pagar o chamado ‘imposto revolucionário’”, de acordo com o embaixador.
Damico ainda informa que, segundo autoridades do Paraguai, o ataque à fazenda poderia marcar a retomada das atividades armadas do ACA-EP, que já tinha atacado outras fazendas também no estado de Concepción em 2019.
Sequestro articulado no Brasil
Em julho, a PF encontrou um corpo de um jovem paraguaio na margem brasileira do Rio Apa, que também delimita a fronteira entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Jorge Ríos Barreto, 23, havia sido sequestrado dias antes em Cidade de Leste, outro município paraguaio na fronteira com o Brasil.
Depois que o corpo foi encontrado, a PF prendeu um casal de brasileiros suspeito de ter mantido contato com a família de Barreto para negociar o pagamento de um resgate. Investigações apontam que Barreto foi mantido em cativeiro no Brasil. A polícia do Paraguai informou que o sequestro teria sido realizado pela ACA-EP.
“A guerrilha existe no Paraguai há algum tempo, mas sempre foi um assunto interno paraguaio acompanhado por autoridades brasileiras”, declarou à CNN o coronel da Polícia Militar Wagner Ferreira da Silva, diretor do DOF-MS (Departamento de Operações de Fronteiras do Mato Grosso do Sul), órgão estadual que também realiza ações de combate ao tráfico entre Brasil e Paraguai. “Agora, essas ações na fronteira agregam um ‘novo ingrediente’ nesse ‘caldeirão’ de problemas que existem entre Brasil e Paraguai.”
Atuação mais intensa desde 2018
Antes de o embaixador Damico assumir a representação diplomática do Brasil no Paraguai, o embaixador brasileiro no país era o diplomata Carlos Alberto Simas Magalhães, que chefiou a embaixada entre 2017 e 2019.
Ao deixar o posto, Magalhães escreveu um relatório sobre seu trabalho no Paraguai e incluiu a EPP como uma das “principais dificuldades” do país vizinho a serem monitoradas pelo governo brasileiro. O documento também foi obtido pela CNN após pedido baseado na Lei de Acesso à Informação.
Segundo Magalhães, a EPP, especificamente, intensificou suas ações contra brasileiros que vivem no Paraguai no fim de 2018. “Em relação à guerrilha autodenominada ‘Exército do Povo Paraguaio’ (EPP), nota-se, a partir de novembro de 2018, intensificação de ações contra cidadãos brasileiros, especialmente empresários do ramo agropecuário, nos departamentos próximos à fronteira com o Mato Grosso do Sul”, escreveu.
O diplomata acrescentou que a posse de terras paraguaias por brasileiros é “alvo de intensa politização, marcada muitas vezes por retórica antibrasileira” do lado de lá da fronteira. A discussão serve de pretexto para ações de guerrilheiros. Por isso, para o diplomata, o Brasil deveria colaborar de forma efetiva com o combate às guerrilhas paraguaias.
“Entendo que a cooperação poderia dar-se na busca de meios para viabilizar o controle do território paraguaio via sensoriamento remoto. Além disso, seria desejável o fortalecimento do apoio brasileiro à capacitação em inteligência de militares paraguaios”, recomendou Magalhães, ainda em 2019. “Gestões para a doação de helicópteros da PF e para o uso de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANTs), propostas aventadas em contatos bilaterais anteriores, poderiam ser retomadas.”
A PF informou que realiza operações de erradicação de maconha no Paraguai em cooperação internacional com autoridades do país vizinho. Não citou ações específicas sobre o combate à guerrilha e não se pronunciou sobre o trabalho do governo paraguaio. “A posição da Polícia Federal é de não fazer juízo de valor com relação à atuação do governo paraguaio no caso, ressaltando o respeito à soberania da República do Paraguai.”
Procurados pela CNN, o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores do Brasil não se pronunciaram acerca de um possível auxílio brasileiro no combate à guerrilha.
Ações do Paraguai
O combate às guerrilhas no Paraguai está a cargo de uma força-tarefa conjunta formada por por efetivos militares, policiais e da Senad (Secretaria Nacional Antidrogas). O grupo foi formado em 2013 e tem seu trabalho criticado desde então.
“A força-tarefa não conseguiu acabar com a guerrilha e acumula uma série de abusos contra inocentes, incluindo assassinatos”, criticou o advogado, professor e pesquisador paraguaio, Juan Martens, doutor pela Universidade de Barcelona, na Espanha.
Em fevereiro deste ano, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michele Bachelet, emitiu um comunicado a respeito da morte de duas menores de idade e do desaparecimento de uma terceira durante uma ação da força-tarefa conjunta. Bachelet expressou “profunda preocupação” com o caso. Martens lembrou que ele não é isolado.
O advogado e pesquisador confirmou que as guerrilhas paraguaias atuam cada vez mais próximas ao território brasileiro. Disse que suas pesquisas indicam que o EPP tem um pacto de não agressão com o PCC. Segundo ele, porém, não é possível afirmar que o grupo atua também no tráfico internacional de drogas, assim como aconteceu com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), nos anos 1980 e 1990.
“As guerrilhas atuam sob uma bandeira antibrasileira, de reivindicação de terras paraguaias para paraguaios”, ressaltou. “Se envolvem-se com o crime organizado, perdem a legitimidade e algum apoio que ainda recebem da população, também porque essa população está cansada dos abusos do Estado no combate aos guerrilheiros.”
A CNN enviou questionamentos ao Ministério da Defesa, ao Ministério das Relações Exteriores e ao Ministério da Justiça do Paraguai sobre as guerrilhas que atuam no país. Não recebeu resposta de nenhum dos órgãos.