São Paulo usa dados de coronavírus com atraso de 10 dias; MS, com até 80 dias
Pesquisa aponta desigualdades regionais na atualização dos dados que vão para os boletins do Ministério da Saúde
O boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo nesta sexta-feira (14) aponta pouco mais de 269 mil casos de coronavírus na cidade. O boletim do governo, atualizado com apenas uma hora de diferença, afirma que a capital tem menos de 234 mil casos da doença confirmados. A diferença é de quase 36 mil casos, o que significa um atraso de dez dias já que o número se parece com o de 4 de agosto.
Não é de hoje que essa diferença entre os números dos governos estadual e municipal aparecem. Dois meses atrás, em 14 de junho, essa diferença era seis vezes menor, mas existia. Enquanto o governo apontava que a capital paulista tinha 91 mil casos, a prefeitura trabalhava com um número 6 mil casos maior, 97 mil.
A defasagem não é só em relação aos dados da capital. A cidade de Ribeirão Corrente, no norte do estado, registrou o primeiro caso de coronavírus na segunda-feira, 10. No boletim estadual, no entanto, os números da cidade aparecem zerados.
O secretário de Saúde da cidade, Etiene Siquitelli Silva, chegou a gravar um vídeo pedindo atitudes responsáveis de quem mora em Ribeirão Corrente depois do primeiro caso, na segunda. “Hoje no comecinho da tarde eu tive a notícia do nosso primeiro caso postivo na cidade de Ribeirão Corrente, paciente que estava sendo acompanhado pela rede particular. Fez o exame hoje de manhã e assim que recebeu o resultado entrou em contato conosco”, disse.
Mortes atualizadas 80 dias depois
Se no número de casos há defasagem entre as secretarias municipais e estaduais, no de mortes há uma constante revisão. O tema é estudado pelo pesquisador do departamento de Estatística da USP, o professor Antônio Patriota.
Ele se debruçou nos boletins do Ministério da Saúde e encontrou desigualdades regionais na atualização dos dados. Há, por exemplo, regiões mais rápidas e precisas no abastecimento de informações no banco de dados da pasta. Outras, têm taxas maiores de retificação.
De modo geral, a pesquisa de Patriota encontrou uma taxa de 2% de revisão de mortes por coronavírus 80 dias depois da data da ocorrência. Isso significa que uma a cada cinquenta mortes que consta no boletim do Ministério sofreu uma mudança de data ou inclusão oitenta dias depois de acontecer de fato.
Quanto mais recentes as mortes, mais frequentes são as revisões. Pra se ter uma ideia, 40% das mortes são incluídas no boletim 40 dias depois de acontecer. Isso significa que a cada 5 mortes lançadas no boletim, duas delas vai sofrer alterações mais de um mês depois de terem acontecido.
Para ele, as alterações frequentes podem provocar conclusões precipitadas pra quem não entende essa “metamorfose permanente” dos dados. “Então é importante saber dessa caractéristica dos dados segundo a data de ocorrência, pra evitar tomar alguma conclusão equivocada”, diz.
O Ministério da Saúde diz que os dados são atualizados quando um problema é encontrado, como duplicidades ou inconsistências. Mas que a correção é feita pelas secretarias estaduais e municipais, que são notificados assim que o erro é encontrado. Por isso as mudanças frequentes. A pasta afirma que essas alterações são feitas com base em resultados de exames, laudos e prontuários.
Tudo no papel
Uma das maiores causas da demora pra inserção de dados nos sistemas é o fato de os atestados de óbitos serem preenchidos a mão, pelos médicos, em papel.
“Isso é digitado no sistema, o sistema do Ministério da Saúde. É feita a digitação e a codificação é manualmente, então é caso a caso, isso depende da letra do médico, então nós temos que entender tudo, analisar a ordem das causas e isso leva um certo tempo”, explica a gerente do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade da Prefeitura de São Paulo, Cássia Malteze.
O programa foi criado pra melhorar o uso do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), que é a plataforma usada pelo Ministério da Saúde pra registrar todas as mortes que acontecem no país. Cássia estima que entre a morte por coronavírus ser confirmada e isso entrar no sistema leva de três a quatro dias. Pra cada atestado de óbito cadastrado, os técnicos precisam de 15 a 20 minutos. Com uma média de 80 mortes por coronavírus por dia em São Paulo, são até 26 horas diárias de trabalho só pra cadastrar as mortes.
O problema é que, em alguns casos, a declaração do óbito fica com o cartório e não com a agência funerária ou com o hospital. Isso acontece principalmente no caso de pessoas que morrem em casa. Por isso, em alguns casos a demora para o envio pelos cartórios demora e entre a morte e o cadastro são dez dias de intervalo.
Uma das ideias que poderiam dar agilidade pra essa dinâmica é dar aos médicos a mesma autonomia que os advogados têm, um certificado digital. É como um carimbo que autentica os documentos preenchidos pelo computador. Isso economizaria o tempo pra processar os dados e acabaria com esse delay que deixa os números desatualizados por dias.
Três sistemas
Quando prefeituras e governos criticam a lentidão e a instabilidade em sistemas do Ministério da Saúde eles se referem especialmente ao e-SUS, mas também ao Sivep Gripe e ao SIM. Cada sistema tem sua dinâmica própria e sua função, mas os três precisam ser abastecidos para monitorar o espalhamento do coronavírus no Brasil.
O e-SUS é um grande sistema que está em todas as unidades de saúde do país. Justamente por isso ele é abastecido com casos leves e pessoas que apenas procuram uma unidade pra fazer o teste. Todo teste realizado para coronavírus precisa ser cadastrado no sistema. É por isso que cada teste é numerado. O resultado também precisa ser inserido no e-SUS. É por ele que o Ministério da Saúde sabe quantos casos existem no país e quantos testes foram realizados.
O Sivep Gripe é um sistema antigo, mas que ganhou uma importância especial nos tempos de pandemia. Ele é administrado pelos hospitais, que precisam notificar todo brasileiro internado com sintomas gripais no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe. Por ele o Ministério da Saúde tira o extrato de internados e recuperados/altas hospitalares de pessoas com coronavírus. A cada passo de um paciente no hospital (internação, UTI, alta, morte, encaminhamento pra outro hospital), um novo registro no sistema precisa ser feito.
O SIM, Sistema de Informação sobre Mortalidade, tem acesso bem mais restrito. Ele é usado pelas prefeituras para cadastrarem cada morte que acontece nas cidades. Na maior cidade do país, antes da pandemia, apenas cinco pessoas tinham acesso ao SIM. Com a chegada do coronavírus a equipe foi dobrada e os novos servidores passaram a cuidar apenas dos casos de morte por Covid-19.
Legado pro futuro
Uma das expectativas de quem sofre com os constantes problemas dos sistemas, como a instabilidade e a lentidão no acesso, é que a pandemia sirva pra melhorar a forma como os bancos de dados da saúde dos brasileiros são tratados. O prontuário eletrônico, que já é realidade em hospitais particulares, continua sendo um sonho no SUS, mas ainda bem distante da realidade.
Enquanto isso, a equipe do coordenador de epidemiologia da prefeitura de São Paulo, Roberto Tolosa Júnior, vai sofrendo com a caneta e o papel. “Essa pandemia veio a forçar todos os sistemas, levou todos os sistemas ao seu limite, ainda mais no país, que tem regiões heterogêneas, lugares com mais recursos, menos recursos, lugares isolados, concentrações… Então eu acredito que é necessário repensar os sistemas de informação do país”, defende.