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    Mais mulheres e crianças engrossam população de rua, diz padre Julio Lancelotti

    Ipea estima, em estudo publicado em março de 2020, que o número de pessoas em situação de rua havia chegado a 222 mil

    Anna Satie, da CNN, em São Paulo

    Ao caminhar por grandes centros do país, a impressão é de que houve um aumento da população em situação de rua desde a chegada da pandemia do novo coronavírus.

    No entanto, isso é só o que se tem: uma impressão, já que não existem dados atualizados que a corroborem. O último censo nacional da população em situação de rua aconteceu em 2008 e, apesar da tentativa de grupos de direitos humanos de incluir essas pessoas no próximo censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que acontecerá neste ano, ainda não será dessa vez.

    “O censo é feito com domicílios e, como essas pessoas não têm domicílio, ficam de fora. Para incluir, precisaria alterar a metodologia para os demais dados”, explicou Wagner Silveira, coordenador de divulgação estadual em São Paulo do IBGE.

    Ele conta que há uma iniciativa do instituto para fazer um levantamento específico dessa população. “Há um projeto, que tem que ser custeado pelo governo federal”, disse. “Mas ele avançou muito pouco. Por causa da restrição orçamentária e a crise, isso ficou em segundo plano. Essa é uma preocupação da sociedade, com todo esse problema da pandemia, deve ter aumentado [o número de pessoas em situação de rua] absurdamente. Mas só poderíamos fazer isso efetivamente com uma pesquisa mais ampla.”

    Wagner relatou que, enquanto isso não acontece, há prefeituras que estão fazendo censos por conta própria e algumas até entraram em contato com o IBGE para perguntar sobre metodologias e questionários. “Porém, em âmbito nacional, por enquanto, não tem nada oficial”, afirmou.

    Os dados do Cadastro Único, disponíveis até setembro de 2020, mostram que havia 149.654 famílias que se declararam em situação de rua no país, ante 140.199 de janeiro do mesmo ano. No entanto, esse número não é exato, uma vez que só inclui as pessoas que preencheram os dados para tentar inclusão em programas sociais do governo.

    Essa lacuna é o que leva o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Marco Natalino a aplicar um modelo que estima quantas pessoas estão em situação de rua em todo o país desde 2012.

    A fórmula leva em conta dados do Cadastro Único, do Censo Suas (Sistema Único de Assistência Social) e informações como tamanho da população, índice de vulnerabilidade social e o número de unidades públicas, atendimentos e vagas para acolhimento.

    O último estudo, publicado em março de 2020, mostrava que o número de pessoas nessa situação havia chegado a 222 mil, e que tendia a aumentar com a crise econômica acentuada pela pandemia.

    “Alguns municípios informam anualmente esse dado, fazem estimativas próprias. O que eu faço é tentar, com base em outros indicadores, extrapolar esse número dos municípios que fornecem”, explicou Natalino.

    “Já faz 10 meses desde esse dado [o estudo mais recente] e não tenho informações nacionais sobre o que aconteceu desde então. Mas sabemos que o número está mais alto e vinha crescendo.”

    Aumento aparente

    Para o pesquisador, esse crescimento acontece em taxa impressionante.

    “É surpreendente ver o quanto está crescendo a população em situação de rua desde 2015, que foi quando eu fiz a primeira estimativa. Eu já tinha a hipótese que a crise econômica, o desemprego e a falta de oportunidade no geral, principalmente nas grandes metrópoles, geraria essa situação de aumento, mas foi além do que eu estava imaginando”, disse ele.

    A fala de Natalino reflete nesse ponto a experiência do padre Julio Lancelotti, que coordena a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo e está à frente de várias iniciativas de atendimento à população em situação de rua.

    O padre citou o último censo realizado pela cidade de São Paulo, divulgado em janeiro de 2020, que apontava 25 mil pessoas vivendo nessa situação na cidade. “Já naquela época, colocamos que esse número era abaixo do real. A gente percebe que isso é uma percepção que todos têm, que o número de pessoas que estão pelas ruas é maior do que era perceptível antes”, disse.

    “Só no centro de convivência da entidade conveniada na Mooca, onde eu acompanho mais, antes da pandemia, 4 mil pessoas passavam por lá pela primeira vez a cada mês. Durante a pandemia, esse número foi para 8 mil.”

    Além do aumento numérico, o padre contou que viu muito mais mulheres com crianças e grupos familiares, além de uma mobilidade maior.

    “Tem muita gente andando, passando pelas ruas, que passam por São Paulo, mas estão indo para outros lugares em busca de alguma resposta, estão procurando sobreviver”, disse.

    Medidas de acolhimento

    Marco Natalino, do Ipea, analisa que, em nível nacional, não houve coordenação para uma resposta única de acolhimento para essas pessoas durante a pandemia.

    “Não há conclusão ainda, mas o que aconteceu foi que não houve uma medida nacional grande o suficiente para orientar os atores nos municípios, e cada município agiu de uma forma. Essas orientações não foram suficientes ou ancoradas em ações de financiamento que dessem substância a elas e permitissem que os municípios pudessem as concretizar.”

    Ele explicou que, como os recursos para serviços de assistência social são principalmente municipais, cada cidade montou a própria estratégia, com experiências e infraestruturas diversas.

    “Uma coisa que parecia óbvia, que era o uso de espaços públicos que não seriam utilizados naquele momento, como escolas, foi preterido. Quase nenhum município quis ir por esse caminho, preferiram construir estruturas novas, sem saber quanto tempo duraria essa situação”, disse.

    Ele contou sobre uma experiência em Cuiabá, no Mato Grosso, em que algumas dessas pessoas foram acolhidas em hotéis e cuidadas por pessoas da área de hospitalidade, que não tinham treinamento para lidar com a situação.

    “As pessoas eram praticamente proibidas de saírem dos quartos, não podiam sair nem para fumar um cigarro na calçada. Então, elas fugiam. Você vê que, por vezes, a falta de conhecimento e a tentativa de cerceamento são tão grandes que as pessoas preferem sair”, disse.

    Para o padre Júlio, as medidas do poder público durante o período de crise sanitária não foram muito diferentes do que são em tempos normais.

    “As respostas do poder público são todas institucionais, burocráticas e de tutela, e, por isso também, são muito rejeitadas. Uma resposta de autonomia seria a renda mínima, locação social, e não colocar todos dentro de espaços onde são tutelados”, conta ele.

    “É só ir até o Pátio do Colégio [marco no centro de São Paulo] no fim do dia, ver a quantidade de gente que está na rua. A Praça da Sé é quase um acampamento. E a Prefeitura diz que tem vagas, mas vagas são para estacionamentos. Para pessoas, é preciso ter um lugar”.

    Invisibilidade

    Natalino avalia que não são só os números ou as medidas adequadas que estão faltando. “Não há política de contar, nem de fazer vigilância em saúde ou socioassistencial, para saber onde essas pessoas estão, quais são suas características, suas necessidades, para de fato atendê-las.”

    “A invisibilidade social da população em situação de rua é reproduzida na incapacidade do Estado de contá-los, de pensar em suas necessidades”, disse. “O número é um elemento de avaliação da demanda de uma política pública e tem que ser parte de processo dos serviços aos quais a população tem direito.” 

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