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    Enem: Educadores explicam relação entre ciências exatas e interpretação de texto

    Professores defendem que o exercício de compreensão de texto é fundamental para questões de Ciência e Matemática

    Foto: Marcos Santos/USP Imagens

    Anna Gabriela Costada CNN

    em São Paulo

    Ler estimula o pensamento crítico e o poder de compreensão, aguça o pensamento analítico e não se limita apenas às disciplinas linguísticas; a habilidade de compreensão é aliada no desempenho de qualquer estudante no início da jornada acadêmica e continua a contribuir na formação intelectual por toda a vida, defendem educadores.

    Neste domingo (28), milhares de alunos farão a segunda etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com foco em Ciências Biológicas e Matemática. E, mesmo em áreas consideradas de raciocínios exatos e precisos, a interpretação segue sendo aliada.

    O professor de Filosofia na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio defende que tanto a Ciência quanto a Matemática são linguagens, com estrutura e “gramáticas” próprias, e que o exercício de compreensão de texto é fundamental, porque é na forma de textos – enunciados, proposições, demonstrações – que as ciências e a matemática chegam até nós.

    “Sem uma leitura matemática do mundo (que mede, quantifica, divide, percebe as proporções e as relações entre os fatos e os eventos), não é possível a ciência da natureza ou qualquer outra. Portanto, é fundamental a compreensão de texto para se entender a linguagem das ciências e a linguagem matemática, porque, novamente, os processos de leitura são muito similares, tanto em um quanto em outro âmbito”, explica o professor doutor em Filosofia.

    Galileu Galilei afirmou que a matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo, o que indica muito bem o modo como devemos lidar com essa modalidade de conhecimento, que é também uma forma de ler o mundo

    Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, professor de Filosofia

    Assim, explica o professor, quando percebemos que o discurso científico e as demonstrações matemáticas não são afirmações arbitrárias ou abstrações sem sentido, notamos a importância de favorecer a capacidade de interpretação e compreensão dos alunos em todas as linguagens.

    “Tanto o mundo empírico, da natureza, quanto o mundo simbólico dos números. Por isso, o exercício de compreensão de texto é fundamental, porque é na forma de textos – enunciados, proposições, demonstrações – que as ciências e a matemática chegam até nós”, acrescenta Euzebio.

    Ele destaca que a incapacidade de ler direito, sem compreensão adequada dos textos, traz uma grande dificuldade de compreender o que o enunciado de uma questão sobre ciência ou matemática pede.

    “Ler corretamente um enunciado de prova é condição necessária para sermos capazes da leitura que vem a seguir, aquela da linguagem específica da questão de biologia, de química ou de física”, afirma.

    Analfabetos funcionais no Brasil

    “Ser não apenas alfabetizado, mas ter a capacidade de interpretar e de escrever minimamente, é condição incontornável para se viver de modo satisfatório nas sociedades contemporâneas. Sabemos quando alguém não é capaz de ler ou escrever. Porém, as coisas se complicam quando, ao sabermos lidar com a linguagem escrita, mas de forma insatisfatória, acreditamos que lidamos com ela de maneira suficiente”, diz o professor Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio.

    Sala de aula em escola
    Milhões de brasileiros chegam ao Ensino Médio com incapacidade de interpretação de texto / Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press/Estadão Conteúdo

    Para a professora de Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa na Faculdade de Educação da USP Neide Luzia de Rezende a pandemia de Covid-19 tornou ainda mais grave o desempenho educacional adotado pelas escolas.

    “A escola, cada vez mais dilapidada, alunos trancafiados entre grades, com professores mal pagos e mal formados, com seus métodos atrasados, não tem fôlego democrático para fazer frente. Essa pandemia veio tornar pior o que já era muito ruim”, destaca a professora.

    Internet x Compreensão de texto

    Com a grande presença das redes sociais, principalmente entre os jovens, é impossível dissociar a inclusão tecnológica com os impactos causados pela deficiência em interpretação de texto.

    Para a professora Neide Luzia de Rezende, “ideologias manipuladas por rancores encontraram espaço para se juntarem apenas entre iguais numa simbolização rasteira, uma vez que são comunidades que comunicam apenas para si e não acessam o outro”.

    Com a emergência da internet e as variadas possibilidades de manifestação dos indivíduos, parece mesmo que um alçapão se abriu e todo um mundo de sentimentos e ideias dos mais primitivos foi jogado para fora

    Neide Luzia de Rezende, professora do Ensino de Metodologia da Língua Portuguesa na USP

    Isso é bem comum, afirma o professor de filosofia da USP. Alguém escreve algo irônico em uma rede social, que é interpretado de forma literal por quem não é capaz de perceber a figura da ironia.

    “Eu me lembro, por exemplo, de uma discussão em que pessoas criticavam a música Mulheres de Atenas, de Augusto Boal e Chico Buarque, por incentivar a submissão da mulher, quando o que é dito pela canção é justamente o contrário. Tentamos superar essa dificuldade, algumas vezes, fazendo uso de emojis ou hashtags, o que, ainda que sejam elementos linguísticos, exemplifica a ambiguidade que enfrentamos na expressão escrita”, afirma Euzebio.

    Por isso, segundo o educador, é fundamental expor os alunos às diversas formas de gêneros, estilos e figuras da linguagem escrita, e exercitá-los nelas.

    “A percepção de nuances, aliada às exigências de bons argumentos e boas razões podem nos proteger, ainda que não totalmente, das chamadas fakes news, dos constrangimentos em postagens nas redes sociais, e dar-nos condições de elaborar textos que cumpram essas exigências, seja na tarefa de se responder uma prova ou conseguir um emprego”, diz.

    Como melhorar a capacidade de interpretação?

    Só se aprende a ler, lendo, e quanto mais se lê, mais se compreende. A capacidade de alguém interpretar textos é diretamente proporcional à quantidade de textos lidos por essa pessoa, esclarece de forma objetiva o professor de filosofia.

    “Textos de todo tipo: prosa e poesia, romances, ensaios, biografias, notícias de jornal, até mesmo bula de remédio. É assim que ganhamos em repertório, que adquirimos ferramentas para lidar com os textos e com a realidade (que exige leitura e crítica da mesma forma que um texto)”, diz Euzebio.

    Segundo a professora e pesquisadora Neide Luzia de Rezende, os diferentes modos de organização da linguagem em diferentes gêneros, sejam eles orais ou escritos, revelam ângulos da vida social.

    “Ou seja, para compreender o mundo precisamos nos comunicar por meio de diferentes formas textuais: a notícia, a mídia, que informam sobre os acontecimentos; os documentos de leis e normas, sobre a gestão da vida pública; os literários que recriam ficcionalmente o mundo.

    Penetrar nesses textos é avançar no conhecimento que se tem de si e do mundo, uma vez que nos colocam diante de muitos eventos novos. E esse conhecimento se dá essencialmente por meio da linguagem em suas múltiplas manifestações culturais

    Neide Luzia de Rezende, professora de Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa na USP

    A educadora acrescenta que ler bons textos na escola ensina a conhecer o idioma, a dominar os níveis da língua em seus diferentes registros, a entender em que espaço social os textos circulam, quais suas finalidades de comunicação e – evidentemente – ajudam a ler com proficiência os enunciados das questões do vestibular.

    “Claro que tais enunciados correspondem ao universo semântico das áreas de conhecimento e muitas vezes a uma terminologia específica, por isso é importante que estudem as matérias e conheçam os respectivos conceitos, entretanto, tendo exercitado a reflexão sobre diferentes textos, incluindo aí a literatura, os sentidos emergem com mais clareza e rapidez, o que é muito importante para a realização da prova”, diz a professora.

    A contribuição da filosofia nesse processo

    O que se espera que a educação faça é nos preparar para sermos capazes de criticar, ou de fazer bons juízos, a partir do exercício da compreensão. A filosofia, que exige argumentos válidos e opera por meio da lógica, da consistência no uso da linguagem, e que chega até nós como tradição literária, pode contribuir neste processo, explica o professor de Filosofia da USP.

    “A filosofia pode nos ajudar ao nos ensinar que, mesmo quando um pensador apresenta suas ideias como definitivas e absolutamente certas, um outro pensador encontrará motivos para criticar ou não concordar com elas. Para muitos, isso é uma fraqueza da filosofia, que nunca dá respostas definitivas sobre nada, e ler esses autores e autoras seria perda de tempo”, diz.

    “Quem pensa assim se engana  porque o que a filosofia nos mostra é, ao mesmo tempo, tanto a potência quanto a modéstia do pensamento. A potência, porque somos capazes de expandir os limites que damos ao mundo, encontrando nele sempre novos significados, e a modéstia porque essa é uma tarefa que não se encerra, jamais, sempre renovada em cada geração humana”, acrescenta o professor.