Em meio à pandemia, como discutir a crise da mudança climática?
Ao ‘apagar’ a luz por uma hora neste sábado, mundo precisa lembrar que as urgências são intimamente conectadas


A Hora do Planeta, que ocorre a partir das 20h30 (horário de Brasília) deste sábado (27), é um movimento global no qual, durante sessenta minutos, pessoas do mundo todo apagam as luzes como forma de chamar a atenção para a crise climática e suas consequências. É um ato simbólico de pedido de socorro para o planeta. Mas como tornar esse tema urgente em meio à pandemia da Covid-19, que já vitimou mais de 2,5 milhões de pessoas em um ano?
Para especialistas ouvidos pela CNN Brasil, o primeiro ponto é mostrar como as duas crises estão intimamente conectadas. Depois, envolver governos e ressaltar a questão econômica no debate. E, por fim, apontar soluções para um “futuro verde”.
Neste ano, a escuridão acontece pela segunda vez de forma digital por causa da Covid-19. O Festival Digital Hora do Planeta brasileiro contará com uma série de lives com Gilberto Gil, Fábio Porchat, Mauricio de Sousa, Ailton Krenak e o DJ Eric Marky Terena. A programação segue das 13h às 20h30, com transmissão ao vivo nas redes sociais do WWF-Brasil.
O movimento começou em 2007, na Austrália, e tem ganhado, a cada ano, mais adeptos. Em 2020, a edição ocorreu em mais de 190 países e territórios, levando a 3,1 bilhões de impressões nas redes sociais, segundo o WWF, sendo um dos assuntos mais comentados em 37 países.
Pandemia e desmatamento
“Todos os grandes problemas estão relacionados. O coronavírus surgiu por um desequilíbrio da natureza. Os impactos ambientais têm uma ligação direta com a pandemia”, afirma Luís Fernando Guedes, diretor de conhecimento da ONG SOS Mata Atlântica. “Os dois são sintomas de que o modelo que a gente segue está com problemas. Falta d’água, pandemia e outros efeitos são resultado da destruição da natureza acima da sua capacidade de recuperação”, completa.
Não há estudos que comprovem a ligação direta entre aquecimento global e o novo coronavírus, mas a comunidade científica identifica a conexão entre as mudanças climáticas e a forma como os animais se relacionam uns com os outros e com os homens como um dos fatores primordiais na crise atual.
Em julho de 2020, o Painel Multidisciplinar e de Especialistas da Plataforma Internacional de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), uma organização independente criada em 2012 com membros de 94 países, examinou provas científicas da origem, do crescimento e do impacto da Covid-19 e de outras pandemias.
Foram 22 especialistas de todas as regiões do planeta discutindo como a pandemia surgiu. Entre os dados avaliados, concluíram que a maioria (70%) das doenças emergentes (ebola, zika, Nipah encefalite) e quase todas as conhecidas pandemias (Influenza, HIV/AIDS, Covid-19) são zoonoses causadas por micróbios de origem animal. Esses micróbios ‘transbordam’ por causa do contato entre a vida selvagem, os rebanhos e as pessoas.

Estima-se que 1,7 milhão de vírus não descobertos existam em hóspedes aviários e mamíferos. Desses, de 631 mil a 827 mil podem infectar humanos. O mais importante reservatório de patógenos com potencial pandêmico são os mamíferos, em particular morcegos, roedores e primatas, alguns pássaros e animais de rebanho (porcos, camelos e frangos).
Ou seja, conforme o planeta se aquece, representantes de todas as espécies migram em busca de lugares mais frescos – pela água e pelo ar. E passam a conviver com outras espécies e com humanos, transmitindo novas doenças. Além disso, nas causas do aquecimento global estão outras maneiras de se aumentar o risco de pandemias: o desmatamento, por exemplo, também leva espécies a mudar de habitat.
“Para a população brasileira, a pandemia fragiliza quem já sofre com a fome e a desigualdade social causadas pela injustiça climática. O uso abusivo dos recursos naturais e a concentração de poder econômico e político estão historicamente ligados ao desmatamento e aos modelos produtivos que causam o aquecimento global”, afirma Gabriele Yamaguchi, diretora de sociedade engajada da WWF.
Esforços governamentais
A ONU (Organização das Nações Unidas) definiu o período de 2021 a 2030 como a “Década da Restauração dos Ecossistemas” – isso ainda em 2019, pré-pandemia. Europa, China e Estados Unidos, com a eleição de Joe Biden, já se comprometeram a criar mecanismos governamentais que caminhem nessa direção. O Brasil está atrasado.
Um exemplo claro de como a política governamental é fundamental para pautar a mudança climática como algo central em um país é o que aconteceu nesta semana na página da EPA, a Agência de Proteção Ambiental norte-americana. A página sobre mudança climática reapareceu no site da agência.

Ela tinha sido removida em 2017 por uma ordem do ex-presidente Donald Trump. Na versão atual, o texto atesta que “a crise climática é uma prioridade e restaura o papel da ciência”. Combater a mudança climática não é opcional, é essencial na EPA, afirmou em comunicado do novo chefe da agência, Michael Regan. Um sinal disso é que nesta sexta-feira (26) Biden convidou o Brasil, a Rússia e a China e outros 36 países para participar de uma cúpula sobre o clima, a se realizar virtualmente entre os dias 22 e 23 de abril.
No Brasil, o assunto não é visto como prioritário – e não é de agora. Até hoje, as lideranças, salvo iniciativas pontuais, pensam no curto prazo, com pouca preocupação em mudar a abordagem brasileira sobre o assunto de forma estrutural. De Belo Monte às queimadas na Amazônia, uma discussão profunda sobre mudança climática não vinga nessas terras.
“Governo tem um fator didático. Precisa estar à frente, implementando as políticas. Temos lei de mudança climática desde 2009/10”, alerta André Lima, ambientalista, advogado e ex-secretário de Ambiente no Distrito Federal.
Para a promotora de Justiça de Minas Gerais Monique Gonçalves, que participou recentemente da Comissão Ambiental do Senado e tem forte atuação nas causas jurídico-ambientais, o problema está na mensagem que os governantes passam sobre a pauta climática. “O poder público não cumpre funções fundamentais. Conscientização pública, por exemplo”, analisa. “Na gestão atual, a ideia de desvalorizar a ciência também ocorre na questão ambiental. Não temos mais uma mudança climática. É emergência climática.”
A dor no bolso
Uma maneira de forçar governos e iniciativa privada a tomar medidas de combate à mudança climática é pelo aspecto econômico. Calcular o prejuízo que o desmatamento e o aquecimento global trazem para os cidadãos, o caixa de empresas e o país pode ter o efeito que apagar as luzes muitas vezes não tem. Ou, ao contrário, o lucro que uma política ambiental consistente pode gerar.
Pelo lado do lucro, várias startups ligadas a tecnologias ambientais e ecológicas ganham espaço, bem como a tecnologia de limpeza de resíduos, de despoluição. O conceito de economia circular ganha espaço na Europa e em alguns países da Ásia. Milhares de empregos vêm sendo gerados a partir de uma economia amigável ao clima, adaptada às mudanças climáticas. “Há estudos apontando que essa economia deve gerar mundialmente US$ 3 trilhões até 2030”, diz Lima.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), América Latina e Caribe terão, nos próximos anos, 6 milhões de empregos ligados às energias renováveis. O atual governo dos EUA, ao retornar ao Acordo de Paris, se comprometeu a levantar US$ 20 bilhões em ações para o desenvolvimento sustentável na Amazônia. É dinheiro e possibilidade de trabalho que movimentam uma economia como a brasileira.
A questão é que o Brasil teima em caminhar no sentido oposto. Um dado recém-publicado pelo Instituto Escolhas, fundado com o objetivo de qualificar o debate sobre sustentabilidade por meio da tradução numérica dos impactos econômicos, sociais e ambientais das decisões públicas e privadas, aponta para o subsídio do governo federal à cadeia da carne. Nos últimos 10 anos, os subsídios chegaram a R$ 123 bilhões.
Agora, o prejuízo: cada quilo de carne equivale a 145 quilos de CO2 na Amazônia legal. Em todo o país, foram emitidas anualmente 2 bilhões de toneladas de CO2 nesses 10 anos. As emissões de gado bovino de corte responderam por 14% dessas emissões. Assim, o governo brasileiro financia, indiretamente, o aquecimento global.
“O processo produtivo das nossas exportações não deveria agravar o problema das nossas condições climáticas, principalmente a questão do desmatamento”, ressalta Sérgio Leitão, diretor executivo do Instituto Escolhas. “Já é demonstrado que o estoque de terras que o país tem aberto, já desmatado, é suficiente para que o Brasil seja um grande exportador, que até dobre o volume de produção, sem precisar derrubar mais nenhuma árvore. Mas o Brasil não consegue se afastar desse processo.”
A consequência dessa postura brasileira: os produtos daqui devem receber “selos negativos” pela postura diante das mudanças climáticas, como o da Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima, que já está sendo implementado na Europa e será em breve na China e nos EUA.
“O Brasil precisa fazer a transformação necessária sob pena de encarar sérios prejuízos no comércio exterior nos próximos anos”, alerta Leitão. Para ele, só medidas restritivas financeiras, que imponham risco às atividades bancárias, podem trazer o tema ambiental para a pauta novamente.
Mudanças comportamentais
Reavivar o debate climático na agenda pública demanda, portanto, o envolvimento de vários setores e a participação da sociedade. E da fundamental divulgação de boas perspectivas para um “futuro verde”.
“Temos de mostrar soluções para essa e outras crises. Tem muita coisa boa sendo feita no Brasil e no mundo para enfrentar as mudanças climáticas. A economia orgânica, de energias renováveis, o uso da biotecnologia, a chamada bioeconomia, a agroecologia, novos modelos de produção de alimentos, tudo isso nascendo agora”, exemplifica Lima.
Os consumidores precisam estar atentos para rever seus hábitos e escolhas de consumo. Famílias devem mostrar aos filhos novos hábitos menos danosos ao ambiente. Para Gabrielle, do WWF, “não existe resposta pronta quando o assunto é a crise climática: precisamos do envolvimento de todos”.
Para Guedes, da SOS Mata Atlântica, a força e o poder estão na população que vota, que paga imposto no produto da prateleira. “Mesma história da Covid-19. Não adianta uma ONG propor uma solução. Cada um precisa usar a sua máscara, se isolar.” “Amanhã, o problema será maior. Na mudança climática não tem lockdown nem vacina que resolvam”, completa Lima.