“Dormia na rede com facão e fugi de tiroteio”, relata médica que atende Yanomamis
Aprovada em 2021 no programa Mais Médicos, Carla Cristina Ferreira Rodrigues ficou 11 meses no trabalho antes de deixá-lo
Quando Carla Cristina Ferreira Rodrigues soube, em 2021, que havia sido aprovada no programa Mais Médicos para atuar em unidades de saúde dentro do território Yanomami, achava que estava preparada para todos os desafios logísticos e profissionais que enfrentaria.
Graduada em 2016, a médica decidiu que faria a sua carreira atendendo populações negligenciadas. Passar 15 dias por mês dentro da floresta, sem cama nem banheiro e com escassez de recursos para o tratamento dos pacientes – condições que afastam a maioria dos profissionais dos territórios indígenas – já era esperado por Carla.
“Fui preparada para o pior cenário. Fiz uma ‘mochila consultório’ com alguns equipamentos e itens de sobrevivência.”
Mesmo preparada para as dificuldades, Carla deixou o trabalho 11 meses depois. O medo de morrer e a sensação de impotência de não poder salvar seus pacientes fizeram a médica desistir.
“Dormia na rede com facão. Nas aldeias próximas do garimpo, havia violência dos garimpeiros e dos indígenas, que eram cooptados. Víamos tiroteios. Em um deles, começaram a atirar mirando o polo de saúde. Tivemos de nos esconder no banheiro e pedir resgate”, afirmou.
Historicamente, poucos profissionais topam passar 15 dias de cada mês dentro da floresta, isolados.
Nos últimos anos, porém, com o avanço do garimpo e o enfraquecimento das políticas de saúde indígena, as condições de trabalho ficaram ainda mais precárias e a insegurança aumentou.
“Quando cheguei, havia nove médicos no território, todos intercambistas do Mais Médicos que não tinham revalidado o diploma e, por isso, não podiam atuar fora do programa. Eu e dois colegas que chegamos na mesma data tínhamos nos formado no Brasil. Quando chegamos ao DSEI, sentíamos que as pessoas olhavam estranho, como se não entendessem como alguém podia querer trabalhar lá. Era um clima hostil”, conta.
Quando passou a atender dentro da terra indígena, Carla encontrou situação de completa escassez. Faltavam itens básicos como luvas, dipirona e soro.
“Depois de um tempo, comecei a separar R$ 600 do meu salário todo mês para comprar e levar alguns remédios e insumos básicos.”
Os momentos mais difíceis, conta Carla, aconteciam quando essa escassez e precariedade se traduziam em mortes de pacientes.
Foi no DSEI Yanomami que a médica perdeu a primeira criança. “Era uma bebê de 4 meses com problemas respiratórios. Não tinha oxigênio, não tinha maca, nada”, diz.
Resgate
Em outro episódio, a médica foi acionada para ir até uma área mais afastada do território fazer o resgate de um indígena ferido. Foi sozinha apenas com o piloto do helicóptero e, ao chegar ao local, encontrou o paciente desacordado, com um ferimento na cabeça feito por um facão e hemorragia.
“Não tinha ninguém para me ajudar a carregar. Quando ele chegou à cidade, também demorou para conseguir uma vaga de UTI e acabou morrendo”, conta.
Carla sonha em voltar a atender os Yanomamis, com condições de trabalho melhores. “Os Yanomamis são muito diferentes do que estamos vendo nas notícias. É um povo forte, guerreiro e com quem aprendi muito. É preciso recuperar a dignidade deles.”
70% das vagas para médicos na área estão vazias
Das 27 vagas existentes hoje no Mais Médicos para atuação no DSEI Yanomami, 19 estão vazias, segundo o Ministério da Saúde. A média de permanência é de 322 dias para formados no Brasil e 733 dias para graduados no exterior.
A pasta diz que há um edital em andamento para as 19 vagas e a expectativa é de que sejam preenchidas no próximo mês.
Levantamento feito pelo Republica.org, instituto dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, mostra que, no último edital do Mais Médicos, em julho, foram abertas 19 vagas para atuação no território indígena e só uma foi preenchida.
Para Paulo Cesar Basta, pesquisador da Fiocruz, o preconceito com os indígenas, as condições precárias de trabalho e a insegurança são alguns dos fatores que explicam a dificuldade de fixação de profissionais. “Situações que vivenciei há 20 anos atuando lá continuam se repetindo”, diz.
Para Vanessa Campagnac, gerente de dados e comunicação do República.org, é preciso investir na formação de profissionais.
“Políticas baseadas no aumento de vagas em universidades ou cotas nesses locais têm potencial de diminuir a desigualdade na distribuição de profissionais.”