Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    Mães da saúde: ‘fui para uma guerra que não esperava ser convocada’

    No enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, mães atuam na linha de frente e relatam os desafios encontrados durante a jornada; confira os relatos

    Paula Mariane , da CNN, em São Paulo

    Em meio à pandemia, centenas de profissionais da área da saúde estão na linha de frente ao combate ao novo coronavírus e, por esta razão, tiveram que sacrificar momentos e demonstrações de afeto para proteger os familiares. Nesta categoria, encontram-se as mães – médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem, auxiliares, entre outras – que hoje vivem uma rotina de privações com os próprios filhos para salvar outros filhos. E também outras mães. 

    A médica Janaíne Raiane Chagas de Melo, que atua na Unidade Básica de Saúde (UBS) de Águas de Chapecó, interior do estado de Santa Catarina, é uma delas. Segundo ela, é necessário lidar com o medo e insegurança para prestar o atendimento necessário às pessoas. “Atuar na linha de frente sabendo que o inimigo é invisível e totalmente letal me dá uma insegurança muito grande, e eu sempre penso que o doente que está na minha frente também está com medo”. 

    Mãe da Luna, que recentemente completou um ano de vida, Janaíne relembra a parte técnica que aprendeu durante a sua formação para passar por esse momento. No entanto, ela reitera a importância do lado humano no contato com os pacientes. “Somos treinados e capacitados para isso. Tento manter a calma e faço o melhor por aquele doente. Só eu posso dar a ajuda que ele precisa naquele momento. Seja com uma medicação ou com uma palavra de conforto”. 

    Para a técnica de enfermagem Milene Estela de Oliveira, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (IDPC), localizado na capital paulista, “atuar na linha de frente tem sido bastante desafiador”. 

    “Tenho colegas que têm feito bastante [horas] extras por necessidade da instituição, pois aumentou absurdamente o número de pacientes e diminuiu muito o número de funcionários. Grande parte [dos profissionais] está afastado com suspeita ou já confirmado com o novo coronavírus”, diz.

    Milene não está preocupada à toa. O Brasil se destaca negativamente no cuidado aos profissionais da saúde. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), o número de profissionais de enfermagem mortos pela Covid-19 no país chegou a 98 na última quarta-feira (7). Com este número, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos, país mais atingido pela pandemia, onde foram contabilizadas 91 mortes, conforme o levantamento da National Nurses United (NNU). 

    De acordo com o Conselho Internacional de Enfermagem (ICN, na sigla em inglês), 90 mil profissionais de enfermagem estão infectados com a doença, e mais de 260 já morreram ao redor do mundo. Ou seja, o Brasil, sozinho, reúne 35% das mortes dos profissionais. 

    “Não sabemos o que será daqui a alguns meses. Estamos lidando com o desconhecido”, diz a técnica de enfermagem.

    Mudanças na rotina

    Janaíne passou a ter uma nova rotina cada vez que entra em sua casa. Em suas palavras, trata-se de uma “grande cerimônia estressante”. O sapato, por exemplo, fica fora para ser limpo com uma mistura de água sanitária com água comum. A médica também começa a se despir mesmo antes de entrar em casa. O destino dessa roupa é o cesto de roupa suja, que precisa ser lavado rapidamente.

    “Minha filha me vê andando pela sala em direção ao banheiro e já chora para querer meu colo e atenção. E eu, infelizmente, tive que pedir pra esconder ela de mim. Isso me doeu muito. Negar um colo para um filho”, lamenta. 

    A criança ainda é muito pequena para entender tudo o que está acontecendo, segundo a médica. Mas o seu lado de mãe percebeu que ela sentiu mudanças importantes em sua vida. Afinal, o dia a dia de Luna não era só ficar em casa, como é agora. A natação, por exemplo, foi cancelada, assim como os seus passeios. “(Agora), ela só observa o mundo através da janela da nossa sala”, diz Janaíne.

    A mesma cena se repete no lar de Milene, mãe da Giovanna, 14, e da Gabriella, 3. A relação com as filhas mudou bastante, segundo a técnica de enfermagem, mas em medidas diferentes. Enquanto Giovanna entende que a mãe está na linha de frente, a caçula Gabriella ainda reclama de que não pode abraçar a mãe assim que ela volta do hospital.

    “Agora, quando estou quase chegando, envio uma mensagem para meu esposo, ele a distrai”, diz Milene. Enquanto o marido distrai a pequena, a técnica corre para o banheiro para tomar banho. “É de partir o coração, mas é para o bem deles”.

    Leia também:

    Estudo indica aumento em casos de depressão durante pandemia

    Nordeste lidera formaturas antecipadas na área da saúde para combate à Covid-19

    Brasil ultrapassa EUA em mortes de profissionais de enfermagem por Covid-19

    Em alguns casos, as medidas precisam ser mais extremas. Ana Paula Girardi, coordenadora de Enfermagem da UTI Neonatal da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba (SP), precisou se distanciar do convívio com os pais. 

    A distância foi bem sentida. Isso porque, antes da pandemia, os pais de Ana Paula iam, todos os dias, à casa dela para cuidar das netas após elas saírem da escola. Com o início da proliferação dos casos de Covid-19, o medo de contaminar os pais, que fazem parte do grupo de risco, surgiu. 

    Diante da nova realidade, Ana Paula – mãe de duas filhas, a primeira com 7 anos e a mais nova com 3 anos – precisou tomar uma decisão. “Optei, com meu esposo, que as meninas ficariam com eles durante a semana. Foi uma forma de protegê-los”, disse. 

    Os diálogos com os pais e as filhas tiveram que serem transferidos para o ambiente virtual. “Converso diariamente com elas por chamada de vídeo. Com os meus pais foi mais difícil no início, pois eles não tinham tanto contato com internet. Agora já estão habituados a isso”, diz Ana Paula. 

    Contato à distância resume a vida de diversos profissionais da saúde atualmente. Milene, por exemplo, não vê os seus pais há dois meses. “Morro de saudades”, diz.

    Por isso, as demonstrações de afeto também deixaram de ser físicas. A enfermeira obstetra Sandreli de Oliveira Rodrigues, que atua na maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba, acredita que o seu maior sacrifício está sendo deixar de abraçar tanto as pessoas de casa quanto do trabalho.

    “Sinto falta com meu irmão toda a semana, de ver a minha mãe, de me jogar na cama dos meus filhos dizendo que quero beijo, de abraçar todo mundo, de tomar café com minhas amigas, de ver minha casa cheia, com a família reunida”, confessa. 

    “Chegar em casa, fazer ‘o ritual de descontaminação’ e depois não chegar perto dos meus filhos, é difícil. [Também] tenho grande preocupação com meus sogros, que têm 79 e 86 anos. Eles ficavam na minha casa e hoje ficam longe. Não é fácil mantê-los isolados”, afirma Sandreli.  

    Os pacientes

    A primeira vez que a médica Janaíne atendeu uma pessoa diagnosticada com Sars-CoV-2, ela chorou. Quase que instantaneamente, ela entendeu a gravidade do problema e as consequências que uma pandemia pode ter em uma cidade pequena como Águas de Chapecó. O município possui apenas 6.486 habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

    “Eu não queria acreditar que aquilo [a doença], que estava longe em dezembro, estava tão perto de mim em quatro meses”, diz ela.

    Na última sexta-feira (8), Janaíne soube que o paciente se recuperou e está curado.

    A enfermeira Ana Paula, que trabalha em uma UTI Neonatal, relembra os primeiros momentos de tensão que vivenciou devido à pandemia. E envolvia diretamente duas pessoas: a mãe e o seu bebê. “A gestante estava com suspeita de Covid-19. Foi tenso para todos os profissionais, mas fizemos tudo com muita segurança”. 

    Tudo deu certo. O bebê nasceu com saúde e a mãe também estava melhor. Porém, com a possibilidade de infecção de outras pessoas por Covid-19, a solução encontrada pela equipe médica foi deixar os dois juntos em um quarto isolado, mas sempre acompanhados de uma profissional de enfermagem.

    E ficar próximas das mães é algo que Sandreli, enfermeira especializada em obstetrícia, sente muita falta. “[Sinto falta de] prestar assistência a um parto e chegar bem pertinho da nova mamãe e dizer: parabéns, mulher guerreira, você conseguiu!”. 

    Apesar da complexidade da situação, Sandreli ressalta a importância da união entre os colegas de trabalho. “Graças aos colegas, na mesma situação, conseguimos acalentar um ao outro. Quando ‘um surtava’, o outro acolhia. Juntos, fazemos o melhor que conseguimos”. 

    E é necessário. O número de profissionais da saúde que estão passando por problemas psicológicos só cresce. De acordo com um levantamento feito pela Associação Paulista de Medicina (APM) no mês de abril, dos 2.312 médicos ouvidos pela pesquisa, 86,6% relataram que os seus colegas de trabalho estão deprimidos, pessimistas, revoltados ou insatisfeitos.

    “Mas mesmo com certo medo unimos forças para atender a necessidade do hospital”, afirma Sandreli. 

    O sentimento de culpa

    Mesmo agindo com as melhores intenções possíveis – até o ponto de arriscar a própria vida para salvar a vida do próximo – o sentimento de culpa é algo que estas mães carregam em comum.

    A preocupação de que pode levar o vírus para dentro da própria casa é iminente na cabeça de Janaíne. A culpa e a ansiedade também estão presentes nesses tempos de pandemia. Porém, há também um orgulho que faz a médica olhar para frente: ela quer que sua filha Luna se orgulhe de seu trabalho e que ela saiba que a mãe lutou com todas as forças para salvar o máximo de vidas possíveis.

    “Gostaria de dizer que fui para uma guerra que não esperava ser convocada. Não recebi uma carta ou um aviso que estaria na frente do combate, eu só fui”, declara a médica.  

    O sentimento é compartilhado por Ana Paula. O medo fez com que ela mandasse as suas filhas para longe de casa, junto de seus pais. A distância tem um grande motivo: Ana não quer ter contato com os seus pais, pertecententes ao grupo de risco, que estão sendo responsáveis por cuidar dos netos durante a pandemia. “Se eu for para as meninas um terço do que os meus pais são para nós, já ficarei realizada.

    Já a enfermeira Sandreli entende que a vida que escolheu faz com que ela e todos os seus companheiros façam sacrifícios. E esses esforços, é claro, podem trazer uma série de problemas na relação com amigos e familiares. É o caso da técnica de enfermagem Milene, que admite que o estresse passou a ser constante em sua vida. “Peço desculpas para as minhas filhas e meu esposo se tenho falhado em algo”, diz ela.

    Para superar essa fase, Milene se agarra em suas crenças. Mas ela sabe que não vai ser fácil.

    Provas de amor, alegria e esperança 

    Ana Paula diz que saudade é algo que dói. Lembra principalmente dos pais e dos familiares. É claro que a internet e o telefone ajudam nesse processo, mas ela sente falta, principalmente, de ‘olhar’ as pessoas que ama. No entanto, ela sabe que o distanciamento é mais do que necessário nesse momento.

    “O desapego ou afastamento nesse momento é uma prova de amor e proteção”, diz.  

    Sandreli também concorda com a fórmula do isolamento social. Segundo ela, se todas as pessoas fizerem tudo certo, os abraços deixarão de ser virtuais logo, logo. “O importante é que não falte ninguém para abraçar”, afirma ela.

    Por isso, o entendimento sobre a gravidade do problema que toda a sociedade está passando é fundamental. Milene, por exemplo, agradece a compreensão dos seus pais e o carinho deles ligarem todos os dias antes dela sair apenas para saber se tudo está bem.

    É claro que é difícil falar que tudo está bem. Mais de 10 mil pessoas morreram no Brasil até o sábado (9). Muitas pessoas estão chorando agora por perder os familiares. Na opinião de Janaíne, esse cenário vai mudar logo e todos vão se reencontrar e se abraçarem novamente. “E o choro vai ser de alegria. Espero que as prioridades de nossas rotinas mudem e que a gente aprenda a se conectar somente com o que é essencial”, afirma a médica. 

    Ela também espera que as pessoas possam ter um olhar diferente sobre elas mesmas.  “Que a gente trate qualquer ser humano sem distinção de raça, religião e classe econômica. A pandemia nos ensinou exatamente isso, que qualquer pessoa pode ser afetada. Do chinês multimilionário ao desempregado que faz bico para sobreviver com a família”.

    Até o fechamento dessa reportagem, mais de 4 milhões de pessoas já haviam sido infectadas pela Covid-19 no mundo, segundo o levantamento da Universidade Johns Hopkins. 

    Tópicos