Acusado de matar Marielle manteve contato com bicheiros, diz promotora
As investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes em 2018 representaram um divisor de águas para autoridades fluminenses.
O caso levou ao desdobramento de outros dez inquéritos policiais, que resultaram na descoberta da relação entre banqueiros do jogo do bicho e milícias no Rio de Janeiro.
Desde então, foram realizadas 70 prisões, com ao menos vinte mortes relacionadas. Desse total, 1/3 delas envolveu, sobretudo, a disputa por territórios no controle dos jogos ilegais no estado, segundo Antonio Ricardo Lima Nunes, diretor do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa (DGHPP).
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Nesse cenário, se desvenda o chamado “Escritório do Crime”, matadores de aluguel, que cobravam até 1 milhão de reais pela encomenda de uma morte.
Dois nomes centrais aparecem na investigação: Adriano da Nóbrega, miliciano morto há oito meses em uma operação policial na Bahia e apontado como chefe do grupo, e Ronnie Lessa, policial militar reformado, que está preso acusado do assassinato de Marielle e Anderson, assim como o também ex-PM Élcio Queiroz.
De acordo com as autoridades, décadas atrás, o caminho de Ronnie Lessa se cruzou com o de Rogério de Andrade, sobrinho do famoso “capo” do jogo do bicho, Castor de Andrade. Rogério tornou-se herdeiro de parte dos negócios do tio e também é patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
“Nós identificamos conversas telefônicas na investigação da Marielle em que Ronnie Lessa conversa com pessoas se referindo a Rogério de Andrade como ‘R.A’”, diz a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ.
“Está constatado na própria investigação do caso Marielle, que está em curso, que Ronnie Lessa tenta montar de alguma forma, atividade ilegal, relacionada a jogo, a bingo clandestino, tudo relacionado a essa questão da contravenção”.
Ronnie Lessa também se dividia entre o trabalho como policial e como guarda-costas de Rogério de Andrade. É por causa de uma batalha violenta pela herança de Castor de Andrade que o sobrinho decide reforçar sua segurança pessoal nos anos subsequentes.
Paulinho, primogênito de Castor, é assassinado um ano depois da morte do pai, em 1998. O primo, Rogério de Andrade, é acusado de ser o mandante do crime. “Tal qual as máfias italianas, em que o poder era exercido pelas famílias, na contravenção do jogo do bicho existe isso também”, diz Sibilio.
“Veja que Castor de Andrade morre, fica o filho, o filho e o primo, eles se digladiam, há uma disputa de poder”, completa.
Mesmo com Paulinho fora do jogo, a situação não estava dominada. Rogério teria de disputar a herança do tio com outro personagem desta história: Fernando Iggnácio, o genro de Castor de Andrade. “Esse litígio está vigente até os dias atuais, deixando muita morte no caminho”, afirma o escritor e pesquisador do assunto, Chico Otavio.
Carro-bomba
No meio dessa batalha, lá está Ronnie Lessa, pronto para proteger Rogério de Andrade, correndo o risco de também ser atingido a qualquer momento. Em 2009, Ronnie Lessa sofreu um atentado. Uma bomba foi colocada no carro dele, e o policial perdeu uma das pernas na explosão.
Em 2010 outra bomba explodiu. Dessa vez, o filho de Rogério de Andrade, de 17 anos, morreu. Segundo a investigação, a bomba seria para o próprio sobrinho de Castor de Andrade. O tipo de explosivo colocado no carro de Rogério seria o mesmo usado no atentado à Ronnie Lessa, um ano antes.
Ronnie Lessa fazia a segurança de Rogério de Andrade quando a bomba explodiu e matou o filho dele. O bicheiro teria então perdido a confiança em Lessa, que buscou um outro aliado: o ex-policial militar e miliciano Adriano da Nóbrega, que trabalhou na segurança da família Paes Garcia, dos bicheiros falecidos Waldomiro Garcia, o Miro, e Waldemir Garcia, o Maninho, ligados à escola de samba Salgueiro.
A revelação do Escritório do Crime deu luz ao tipo de violência empregada. “Esse grupo criminoso atua há mais ou menos 10 anos no Rio de Janeiro”, diz Nunes, do DGHPP.
“Algumas dessas investigações demonstram que a finalidade é a disputa de territórios por contraventores que utilizam esses criminosos como seus matadores de aluguel”, afirma.
O jogo do bicho
Os jogos ilegais no Brasil, como o do bicho, que existe a quase 200 anos, as máquinas caça-níqueis e os bingos, movimentam 20 bilhões de reais, por ano, com ao menos 450 mil pessoas trabalhando nessas atividades.
Os bicheiros famosos por essas práticas, como Castor de Andrade, povoaram o imaginário dos brasileiros com apostas que pareciam inocentes.
Tornaram-se conhecidos e ganharam o coração de famosos e anônimos por patrocinarem escolas de samba e por ajudar times de futebol e comunidades carentes. Mas por trás dessa história folclórica, se escondem crimes, violência e corrupção.
“O miliciano apenas mudou de nome. Nos anos 1980, era o Esquadrão da Morte com os mesmos policiais a serviço [dos bicheiros]. Hoje são os milicianos, os sucessores daqueles, mas com o mesmo modelo”, diz Denise Frossard, juíza aposentada, que condenou em maio de 1993 a cúpula do jogo do bicho – quatorze pessoas – a 6 anos de prisão por formação de quadrilha armada.
Maior golpe dado até então contra a máfia da jogatina. “Essa banda podre sempre estará com eles [os bicheiros], porque é a tradição deles, eles não vivem sem transformar em aliados esses principais predadores, os mais próximos, como também políticos, juízes, promotores, como a história registrou”, sentencia Frossard.
Todos os citados nessa reportagem foram procurados, mas não quiseram se pronunciar.