“Isso é arte!”: Damien Hirst começa a queimar suas próprias pinturas
Artista deu a compradores opção de ficar com obra física ou com apenas um token digital, com a original sendo jogada ao fogo. Milhares optaram pela segunda alternativa.


Uma fumaça subiu da galeria do artista Damien Hirst em Londres na terça-feira (11), quando mil de suas pinturas “spot” – as famosas “bolinhas” do artista – foram incendiadas. Milhares mais serão reduzidas a cinzas antes do fim do mês.
No entanto, não foi um acidente. Todo o segundo andar da Newport Street Gallery foi preenchido com um cheiro de fogueira enquanto jornalistas e equipes de filmagem se aglomeravam para assistir Hirst, de 57 anos, alimentar seis incineradores de vidro com pinturas e mais pinturas como parte de seu último comentário sobre o valor da arte e as forças que a ditam.
O evento transmitido ao vivo – levado para telas no foyer da galeria e no Instagram – fazia parte do projeto de Hirst “The Currency”, que começou há seis anos com a criação de 10 mil pinturas pontilhadas únicas. Em vez de vender as obras, o artista britânico as guardou em um cofre e ofereceu aos colecionadores a chance de comprar uma das 10 mil NFTs correspondentes.
Ele então deu aos compradores uma escolha: trocar seu token digital pela pintura física que ele representa ou permitir que a obra de arte queimasse. Os proprietários de 4.851 delas escolheram o último.
No evento de terça-feira, realizado um dia antes da feira de arte Frieze London, o espaço da exposição – com sua longa bancada central, os assistentes da galeria vestidos com macacões laranja e Hirst em um par de calças prateadas presas por suspensórios – parecia uma oficina de destruição do Papai Noel.
Apesar das conotações sombrias da queima de arte, o artista foi jovial ao destruir seu trabalho – sorrindo, fazendo caretas e conversando com jornalistas amontoados no canto de imprensa.
Embora Hirst tenha recusado entrevistas de antemão, ele respondeu alegremente às perguntas por trás da barreira: “Para mim, não há aposta”, disse ele quando perguntado sobre o valor dos NFTs sobre as obras físicas.
“Só existe arte”, exclamou.
Um dia antes, no Instagram, Hirst abordou o assunto com mais detalhes.
“Muitas pessoas pensam que estou queimando milhões de dólares em arte, mas não estou”, escreveu ele. “O valor da arte digital ou física, que é difícil de definir na melhor das hipóteses, não será perdido, será transferido para o NFT assim que forem queimadas.”

Uma questão de valor
Produzidas em 2016, as pinturas originais foram todas assinadas, numeradas e receberam títulos exclusivos. Os nomes foram criados aplicando o aprendizado de máquina a algumas das letras de músicas favoritas de Hirst, resultando em títulos como “Nunca se levantando” e “Desde fazer amor no amor”.
Não há duas obras idênticas, e não há dois pontos em uma única pintura com a mesma cor.
Cada obra de arte foi então vinculada a um NFT, um token digital apoiado em blockchain que pode ser comprado e vendido. No verão passado, os candidatos bem-sucedidos receberam um token aleatório de US$ 2 mil (o equivalente a R$ 10.600 nesta semana) cada.
Com pleno conhecimento do iminente ultimato de Hirst, os proprietários negociaram suas NFTs no mercado secundário. Um NFT mudou de mãos por mais de US$ 176 mil, de acordo com dados da Heni, o mercado digital que sediou a venda inicial. O preço médio de venda foi significativamente menor, de US$ 20.742, embora ainda fosse mais de 10 vezes o preço original pedido.
Em julho, após um ano de negociação, os proprietários puderam “resgatar” suas NFTs. A maioria dos 5.149 colecionadores que optaram por trocar seus tokens já receberam as pinturas. O resto das obras físicas será queimado na galeria privada de Hirst até o fim de outubro.
Os incinerados na terça-feira, na verdade, pertencem ao artista (ele reteve mil dos 10 mil para si mesmo). Depois que seu prazo terminou em julho, Hirst escreveu no Twitter que decidir o que fazer com sua parte das obras deixou sua “cabeça em parafuso”.
Ele também se debruçou sobre a questão que sustenta o projeto: as versões físicas ou digitais valerão mais?
“Não tenho ideia do que o futuro reserva, se os NFTs ou os físicos serão mais valiosos ou menos”, escreveu Hirst. “Mas isso é arte! A parte divertida da jornada e talvez o objetivo de todo o projeto.”
Brincando com fogo
Hirst é, junto com Tracey Emin, considerado um membro chave do movimento Young British Artists que surgiu em Londres na década de 1980. Ele (ou, muitas vezes, seus assistentes) vem fazendo suas pinturas pontuais características há mais de três décadas. Os pontos coloridos das pinturas variam em densidade, tonalidade e nitidez, tornando-as ao mesmo tempo únicas e quase indistinguíveis umas das outras.
O trabalho do artista muitas vezes aborda – e, devido ao valor que pode ser vendido, levanta – questões sobre dinheiro no mundo da arte. Uma de suas obras mais conhecidas é um molde de platina de um crânio humano, coberto com mais de 8.600 diamantes, que foi vendido por cerca de 50 milhões de libras (então cerca de US$ 100 milhões ou R$ 530 milhões) em 2007.
Ele não é, no entanto, a única pessoa no espaço NFT que brincou com fogo. Em março de 2021, uma empresa de blockchain chamada Injective Protocol comprou uma obra do artista de rua anônimo Banksy por US$ 95 mil antes de queimá-la em frente à câmera e vender uma NFT do vídeo por quatro vezes mais.
No mês passado, enquanto isso, o colecionador de arte de Miami e empresário de criptomoedas Martin Mobarak divulgou um vídeo no qual ele alegou queimar um trabalho de Frida Kahlo de 1944 para lançar seus próprios NFTs com tema Kahlo correspondentes. O Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura do México abriu uma investigação sobre o incidente, pois destruir o trabalho de Kahlo é uma ofensa criminal no país.
Hirst disse que queimar sua arte tinha como objetivo não apenas questionar o valor das NFTs, mas explorar a ideia de que o valor de mercado, assim como o próprio dinheiro, é sustentado pela confiança. Em um vídeo apresentando o projeto no ano passado, ele o descreveu como um “experimento de crença”.
“A coisa toda é a obra de arte”, explicou ele na época. “É quase como o comportamento dos seres humanos que estão todos envolvidos nisso… simplesmente terá vida própria.”