Como Martin Scorsese ajudou a definir o estilo ítalo-americano
Carreira do diretor oferece visão fascinante do estilo que mescla Itália e EUA no cinema
NOTA DO EDITOR: Craigh Barboza ensina crítica cinematográfica na Universidade de Nova York e escreve sobre raça, entretenimento e cultura.
Martin Scorsese é, em quase todos os aspectos, um dos maiores diretores de cinema vivos. Seus filmes sombrios e frequentemente violentos combinam brilhantismo técnico com personagens grandiosos. Muitos deles, como “Os Infiltrados” (2006) e “Taxi Driver – Motorista de Táxi” (1976), estão entre os mais celebrados da história do cinema.
Mas Scorsese também é um fanático por moda, cuja carreira oferece uma visão fascinante do estilo ítalo-americano no cinema.
Observar a variedade de roupas masculinas em particular é um dos prazeres diferentes proporcionados pelo trabalho do cineasta vencedor do Oscar.
Quando encontramos o personagem de Ray Liotta, ainda um soldado da máfia, fumando do lado de fora de uma lanchonete por volta de 1960 em “Os Bons Companheiros” (o filme de gângster seminal de Scorsese que faz 30 anos este mês) enxergamos nele o modelo do cool masculino da era Rat Pack: mocassins de couro e um terno de lã brilhante (conhecido como sharkskin) de corte seco combinado com um cardigã de colarinho desabotoado.
Não é só o fato de os personagens de Scorsese parecerem apropriados para o período do filme. A maneira como eles se vestem (assim como a maneira como falam) costuma ser a chave para entendê-los.
Para “O Irlandês” (2019), o épico policial mais recente do diretor, que atraiu um recorde de 17,1 milhões de espectadores nos primeiros cinco dias de exibição na Netflix, o chefe da máfia dos anos 1970 vivido por Joe Pesci sempre usava ternos elegantes, completos com uma gola pontuda de mafioso (ou gola “capo”), um tipo de camisa que veio da memória do antigo bairro de Scorsese.
Como Scorsese lembrou certa vez em uma entrevista, o design deste tipo de camisa em particular era a marca de um homem com título de membro da máfia.
A poderosa fusão de estilo e identidade já existia mais de cinco décadas atrás, no início da carreira de Scorsese, como ficou claro em 1964 como “It’s Not Just You, Murray!”, seu premiado filme estudantil.
A comédia, lindamente filmada em preto e branco, começa com o protagonista (um panaca que deu certo na vida) falando diretamente para a câmera sobre seu traje elegante. Ele mostra as etiquetas de preço, item por item.
“Veja esta gravata”, diz ele, gesticulando para que a câmera se incline até seu rosto, “US$ 20”.
“It’s Not Just You, Murray!” e outros quatro primeiros filmes de 16 mm do diretor (todos totalmente restaurados) fazem parte de “Scorsese Shorts”, uma compilação em DVD lançada pela Criterion que recupera os primeiros trabalhos do diretor.
“Ficou claro desde o início que Marty tinha um vasto conhecimento da história da moda”, disse a figurinista Sandy Powell por e-mail. Vencedora de vários Oscars,
Powell trabalhou pela primeira vez com Scorsese no drama de vingança “Gangues de Nova York” (2002). “Ele tem um olho apurado para os detalhes e uma memória incrível. Poucos diretores podem dizer a diferença entre a largura de uma manga da jaqueta masculina de 1830 em comparação com a de 1850!”.
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Scorsese parece ter muito orgulho de seu próprio guarda-roupa e cultivou um certo tipo de elegância urbana.
Durante muitos anos, o diretor, hoje com 77 anos, fez compras na Barneys, famosa loja de departamentos de Nova York. O local foi o primeiro a vender marcas de luxo como Giorgio Armani, cujos jeans Scorsese colecionou.
Mais tarde, o cineasta mostrou ter uma queda por ternos das grifes Battistoni, Berluti e Anderson & Shepperd, que complementava com gravatas e acessórios distintos, como uma corrente de relógio. Bem, trata-se de um cara que usou abotoaduras francesas no festival de Woodstock em 1969.
O fato de o estilo ter desempenhado um papel tão importante nos filmes de Scorsese tem tudo a ver com sua família. Seus pais eram sicilianos da primeira geração de imigrantes que encontraram empregos no distrito de vestuário da cidade de Nova York, que a certa altura produzia a maior parte das roupas fabricadas nos Estados Unidos.
Em consonância com a divisão do trabalho por gênero da época, seu pai, Charles, era passadeiro, e sua mãe, Catherine, costureira. Mais tarde, eles trabalharam como consultores de guarda-roupa em “Os Bons Companheiros” e “A Época da Inocência”, que ganhou o Oscar de figurino em 1993.
Os Scorsese moravam em Little Italy, no Lower East Side de Nova York, onde ficavam algumas das melhores padarias e casas de molho italianas dos velhos tempos. Mas Little Italy também era uma comunidade difícil e isolada, com reputação de gangsterismo.
Scorsese sempre se lembra de que sua vizinhança de infância inspirou seu filme pioneiro de 1973, “Caminhos Perigosos”. Ele costumava se sentar na escada de incêndio ou telhado de seu prédio e olhar para as ruas lotadas, onde via uma mistura de norte-americanos da classe trabalhadora de ascendência italiana, meninos de rua e clientes de clubes fechados, de vez em quando vestidos com ternos sob medida com padronagens em cores fortes. O visual era completado com sapatos elegantes e engraxados, joias e outras exibições de riqueza.
“Havia um excesso, o que usavam estava além do que se via no visual dos executivos do centro da cidade”, contou Sarah C. Byrd, historiadora da moda e arquivista, sobre “Caminhos Perigosos”. O filme “oferece noções exageradas de masculinidade, poder, e os ternos provavelmente foram feitos por um alfaiate altamente qualificado”.
Em 1974, Scorsese estava saindo do sucesso de seu primeiro filme de estúdio, “Alice não mora mais aqui”, quando foi convidado a dirigir um documentário sobre os italianos, parte de uma série de TV sobre grupos étnicos. E
m vez de adotar uma abordagem convencional (vasculhar imagens de arquivo em busca de histórias típicas e contratar um narrador para fornecer o contexto), Scorsese decidiu fazer um filme sobre seus pais. Ele o chamou de “Italianamerican”.
Segundo ele, a união das duas palavras tinha a intenção de significar a ponte de dois mundos. Para acompanhar o letreiro do filme, Scorsese usou uma animada música folclórica italiana do estilo tarantela.
Qualquer pessoa que tenha visto “O Poderoso Chefão Parte 2” (outro ícone da moda ítalo-americana) deve saber que este é o tipo de música que Frankie Pentangeli tenta (em vão) fazer com que os músicos da banda toquem no coreto, durante a cena da festa de primeira comunhão. Os músicos acabam zombeteiramente tocando “Pop Goes the Weasel”.
“Italianamerican”, também incluído na coleção “Scorsese Shorts”, foi filmado como um documentário do cinema-verdade com uma pequena equipe durante dois dias na casa de infância do diretor, na Elizabeth Street.
É o tipo de filme afetuoso e às vezes hilário que faz companhia a “Caminhos Perigosos”. Seus pais, na casa dos 60 anos, estão bem vestidos com looks bastante contemporâneos: Charles veste uma camisa listrada colorida com calças escuras; Catherine, usa um vestido de babados rosa sem mangas e o cabelo cinza-arroxeado armado.
A estrela do filme acaba por ser sua mãe: contadora de histórias natural com uma sagacidade crepitante, ela aparece às vezes na cozinha com papel de parede floral azul, onde a vemos preparando um jantar de massa.
Scorsese faz algumas perguntas, como “Como você aprendeu a fazer o molho?”. Mas, na maioria das vezes, o diretor (impecavelmente arrumado com um bigode guidão e barba) apenas deixa seus pais falarem ou reagirem a ele, à equipe, uns aos outros.
Lá, em seu apartamento decorado com uma pintura panorâmica da Itália e um sofá forrado de vinil, temos alguns causos de família e velhos costumes italianos. Também ouvimos sobre o início da vida em cortiços e como os pais de Scorsese acabaram fazendo roupas.
Ser criado por pessoas que formaram a espinha dorsal da indústria da moda não é garantia de que seus filmes serão celebrados pelo guarda-roupa. Mas a figurinista Powell, que trabalhou em sete filmes com Scorsese, disse que seu alto QI no quesito estilo o ajudou a se tornar um cineasta melhor.
“Isso incutiu nele uma compreensão das limitações e alturas que alguém pode atingir na criação de figurinos”, opinou. Por exemplo, uma das primeiras coisas que Scorsese faz quando um ator chega ao set com um novo traje é tocar a roupa. Ele a inspeciona da cabeça aos pés, como um alfaiate verifica o tamanho e o ajuste.
Autenticidade primeiro
Scorsese sempre disse que “Italianamerican” foi o melhor filme que já fez, porque teria liberado seu estilo de direção. Logo depois que o documentário foi ao ar em uma estação pública local em Nova York, o cineasta começou a assumir alguns dos trabalhos mais ousados e emocionantes de sua carreira.
Como se fosse um estilista de vanguarda reinventando roupas tradicionais, ele se propôs a quebrar todos os preconceitos de como um filme deveria ser, experimentando técnicas de câmera e edição que deram aos filmes um novo tom e textura visual. Eram filmes que muitas vezes apresentavam personagens compulsivamente problemáticos e irresistíveis.
O primeiro foi “Taxi Driver – Motorista de Táxi”, uma versão cinematográfica atualizada e marcante da obra “Notas do Subterrâneo”, escrita por Fiódor Dostoiévski em 1864. A descrição de Scorsese da decadência urbana e alienação que explode em violência ganhou a Palma de Ouro de 1976 em Cannes.
E então veio “Touro Indomável” (1980), sua corajosa cinebiografia de época do campeão de boxe peso médio Jake LaMotta, que rendeu a De Niro o Oscar de melhor ator.
Mais uma vez, os trajes refletiam uma experiência vivida. LaMotta, um lutador torturado e motivado que praticamente nocauteou tudo ao seu redor, incluindo sete casamentos, preferia usar camisetas brancas com nervuras e calças pregueadas fora do ringue.
“Touro Indomável” foca na segunda esposa do lutador, Vickie (a novata Cathy Moriarty), que ele conheceu em uma piscina pública, onde ela está relaxa usando um maiô que é a cara das estrelas dos anos 1950. Antes de tudo desabar, há um casamento encantador no telhado em Little Italy, no estilo daquele que seus pais haviam feito no passado.
Para Scorsese, a autenticidade é sempre valorizada acima de tudo. “É fundamental para seu cinema, é o que o torna tão especial”, opinou o crítico Kent Jones.
“Durante anos, vimos coisas como (o filme noir) ‘Uma vida marcada’ (1948). É um bom filme, mas com uma imagem caricatural, de sotaque carregado, dos ítalo-americanos. Portanto, o choque duplo de ‘O Poderoso Chefão’ (1972) e ‘Caminhos Perigosos’, um ano depois, é inegável”.
“Esses filmes ressoaram porque eram verdadeiros, não apenas tratando apenas do crime organizado, mas de uma experiência vivida”, acrescentou. “A forma como as pessoas se reunia, a forma como se encontravam, a forma como se expressavam, com a poesia de todo o seu ser, estão ali”.
(Texto traduzido, leia o original em inglês)