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    Como a artista Amy Sherald reinventou o beijo mais famoso da história

    Arte é baseada em foto em preto e branco do Dia da Vitória sobre o Japão, que registra o beijo de um casal na Times Square ao fim da Segunda Guerra Mundial

    Jacqui Palumboda CNN

    Esse pode ser o beijo mais famoso já capturado em câmera – o jovem da marinha americana envolvendo os braços em torno de uma mulher em um uniforme médico branco na Times Square, o corpo dele dobrado dramaticamente sobre o dela.

    Tirada em meio ao júbilo do Dia da Vitória sobre o Japão, que efetivamente encerrou a Segunda Guerra Mundial, a imagem em preto e branco capturada por Alfred Eisenstaedt foi publicada pela primeira vez na revista Life em 1945 e desde então se tornou um elemento importante na cultura popular.

    Eventualmente, a imagem caiu nas mãos da artista Amy Sherald, onde a célebre pintora se baseia em diferentes referências visuais da história americana para informar seus retratos da vida cotidiana negra – representação que foi amplamente excluída da história da arte.

    Em sua nova pintura “For love, and for country”, Sherald coopta a imagem de Eisenstaedt para fazer uma ousada declaração de amor: dois marinheiros negros compartilhando um beijo profundamente apaixonado, seus olhos estão fechados enquanto eles se perdem no momento.

    É uma obra monumental e, com mais de 3 metros de altura, maior do que Sherald costuma pintar. Em um momento em que os direitos de gays e transgêneros nos Estados Unidos estão sendo ameaçados por um número recorde de prejetos de leis anti-LGBTQ, a artista disse que queria que seus amigos se sentissem “seguros” por meio de seu trabalho.

    “Estamos em um lugar onde os casamentos entre pessoas do mesmo sexo estão sendo ameaçados e onde, muitas vezes, há violência fatal contra pessoas transgênero e não-binárias”, disse ela por uma videochamada.

    “A afeição dentro dessa comunidade é policiada e, assim, a política do prazer público entra em jogo. Há uma longa história de censura e apagamento que pesa sobre o beijo gay, e muitas vezes é excluído da visão pública. Acho que estamos vivendo em um momento em que a implantação de um beijo – e especificamente um beijo gay – poderia ser usado como um gigante”.

    Na última década, Sherald se tornou uma figura de destaque na arte contemporânea americana, mais amplamente reconhecida por um retrato de 2018 da ex-primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, que agora está na National Portrait Gallery.

    Suas figuras negras, pintadas em “grisaille” (tons de cinza), são frequentemente vestidas com tecidos coloridos, voltadas para o espectador contra uma extensão tranquila de azul celeste, lilás ou ocre.

    A releitura que Sherald fez do beijo do Dia Vitória faz parte de uma nova coleção de nove pinturas, estreando na galeria Hauser & Wirth, de Londres, durante a Frieze London, intitulada “The World We Make”. A exposição será acompanhada por seu livro de mesmo nome, no próximo mês.

    Artista Amy Sherald com obra “For love, and for country” / Kelvin Bulluck / CNN

    O título veio de um programa de rádio que Sherald estava ouvindo, uma frase brevemente mencionada que ficou com ela enquanto preparava a exposição.

    “É um reflexo do meu desejo de registrar a vida como eu a vejo ou sinto”, disse ela.

    Imagens divergentes

    Sherald usa uma câmera extensivamente na criação de cada obra de arte, encenando sessões de fotos em estúdio antes de começar a pintar. Seu trabalho não esconde sua relação com a fotografia, mas tem uma inclinação para isso, com cada tela parecendo um encontro dos dois meios.

    Mas sua pintura do beijo na Times Square, apesar de todas as semelhanças, tem uma sensação totalmente diferente da imagem de Eisenstaedt, na qual o rosto da mulher é obscurecido enquanto o marinheiro a agarra com força.

    Na releitura de Sherald, um homem com uma camisa branca bordada e chapéu de marinheiro puxa seu parceiro para perto, segurando sua cabeça enquanto ele dobra o corpo e o beija. A segunda figura, de listras, lenço vermelho no pescoço e calça cropped amarelo-canário, segura o próprio chapéu de lado enquanto se entrega ao beijo, confiando no abraço.

    A fotografia original tem uma história complicada. Embora várias pessoas tenham se apresentado ao longo das décadas alegando ser o casal, acredita-se que sejam Greta Zimmer Friedman, uma assistente de dentista de 21 anos, e George Mendonsa, um marinheiro da Segunda Guerra Mundial, da mesma idade que ela, e que a beijou espontaneamente quando a notícia da rendição do Japão foi anunciada.

    Friedman refletiu em 2005 que o encontro “não foi um evento romântico”, acrescentando: “Não foi minha escolha ser beijada. O cara apenas veio e (me) beijou ou agarrou”.

    Em 2019, durante uma enxurrada global de acusações e revelações de mulheres que foram assediadas ou agredidas sexualmente, um vândalo na Flórida pintou com spray “#MeToo” em uma escultura baseada na imagem de Eisenstaedt.

    À luz das conversas sobre consentimento, muitos comentaristas online começaram a ver o beijo do Dia da Vitória sob uma nova luz – não o auge da paixão incorporado em uma pose ao estilo de Hollywood, mas talvez um beijo forçado e não correspondido.

    “Acho que as pessoas começaram a conversar sobre isso de uma maneira diferente”, disse Sherald. “É uma geração diferente”.

    Em contrapartida, Sherald priorizou o conforto do casal que participava de sua cena. “Se eles não estivessem confortáveis, seria uma pintura diferente”, disse ela. “Mesmo sendo modelos que não se conheciam, eles conseguiram criar aquele momento em que você sente a intimidade do que está acontecendo lá”.

    Um lugar para reflexão

    A cor também influencia o clima de “For love, and for country”, já que o pano de fundo da cidade é despojado em favor de um trecho de azul sem sombras.

    “Acho que o traço mais comum na exposição é a paleta de cores, especificamente a cor azul, e […] ter como base as figuras”, explicou ela. “Mesmo que nossa interpretação da cor seja subjetiva, (eu estava) pensando em esperança, cura e divindade, oceano, céu, espiritualidade”.

    Ao longo da nova exposição de Sherald, os cenários azuis dão às telas uma sensação de devaneio no lugar de dicas de localização. Em uma pintura, “Reino”, uma criança no topo de um escorregador verde faz uma pausa para olhar para o espectador, o céu formando uma grande extensão atrás dele.

    Pintura “Reino”, de Amy Sherald / Amy Sherald / Hauser & Wirth

    Isso ecoa a sensação minimalista do trabalho recente “If You Surrendered to the Air, You Could Ride It”, que retrata um homem sentado em uma viga industrial verde com um tom frio aparentemente interminável abaixo e acima dele.

    Essa última imagem também era um aceno para uma famosa foto americana: a foto de 1932 de trabalhadores da construção almoçando, no ar em cima de uma viga na cidade de Nova York. “Eu amo tanto essa pintura”, disse ela sobre sua obra de arte de 2019. “Tenho tentado recriá-la desde que a fiz”.

    A fotografia sempre teve uma profunda influência no trabalho de Sherald. Após séculos e séculos de pinturas desprovidas da presença negra, a invenção da câmera deu aos artistas e famílias negras uma forma de apresentar a si mesmos e suas comunidades.

    “Eu pude olhar para a história da fotografia e encontrar imagens de famílias negras, pessoas negras, e isso foi muito importante para mim”, disse ela. “Penso nas fotografias que cresci vendo e na casa da minha família. Acabei de obter uma compreensão mais profunda do que eu estava fazendo”.

    Sherald se esforçou para passar esses sentimentos de reflexão e pertencimento a seus espectadores. Ela já chamou suas pinturas de “lugar de descanso” para a comunidade negra, e não importa como seu trabalho evolua, isso, para ela, nunca mudará.

    “Por causa da maneira como a história da arte evoluiu sem a voz ou a imagem do artista negro, acho que o trabalho sempre será assim – não acho que mudará”, disse ela. “É quase como meu manifesto, se você quiser. É ocupar espaço, recuperar o tempo e tentar criar mudanças no mundo através do trabalho que faço. Acho que as imagens são vistas pelos olhos, mas também são sentidas pelo coração”.

    “The World We Make” está em exibição até 23 de dezembro na Hauser & Wirth em Londres.

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