Cem anos depois, Semana de Arte Moderna de 1922 passa por uma revisão crítica
Segundo especialistas é preciso olhar para as questões políticas e sociais que permearam a realização da Semana de 22, desde a ascensão de uma nova elite cafeeira à fundação de partidos
A Semana de Arte de 1922 tornou-se símbolo da modernidade do país no início do século 20, com uma influência que extravasou diferentes campos, assim como permeou movimentos de contracultura, como a Tropicália.
Cem anos depois, no entanto, especialistas acreditam que é preciso realizar uma revisão crítica das ideias propostas por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e os demais participantes da Semana, à luz de questões de nosso tempo.
“A existência da semana está muito ligada ao desejo de ascensão de uma elite cafeeira, que queria se impor de alguma forma e viu na arte uma das formas de fazer isso”, diz Heloísa Espada, curadora-chefe do Instituto Moreira Salles.
“Essa elite vivia no interior, mas queria fazer parte também de um mundo cosmopolita. Foi ela que construiu o Theatro Municipal, em 1911, e que possibilitou a existência da semana. Alguns modernistas vão se referir aos artistas de então como bandeirantes, um termo que hoje tem implicações complicadas, que enxergamos com mais clareza.”
Para Espada, não é possível mais olhar para a Semana sem levar em consideração o que ela chama de “limites e contradições”, que tem a ver com o contexto político em que ela surge, mas também com questões estéticas.
“O que foi apresentado ali entrou para a nossa história como significado de arte moderna no Brasil. Estiveram ali artistas paradigmáticos, mas em muitos sentidos aqueles nomes não eram representativos. Eles estavam no Sudeste e, em outros estados, já havia uma produção muito interessante. Para situar a Semana, é preciso ir além dela”, diz Espada, que prepara uma exposição para o segundo semestre dedicada à fotografia e ao cinema, a partir da ausência dessas duas áreas na programação da Semana.
Exclusão e hegemonia
Curadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Valéria Piccoli também acredita na necessidade de um olhar para a época da Semana que busque novas referências.
“Não se trata apenas de entender como a sua realização vai ao encontro de um projeto político de São Paulo. Mas também de localizar melhor como um evento de jovens de uma elite que naturalmente excluía a presença de outros artistas”, acredita.
Para Rafael Cardoso, autor de “Modernismo em Preto e Branco”, lançado em janeiro pela Companhia das Letras, esse processo precisa incluir artistas dos anos 1900 e 1910. “Temos que redescobrir os autores e artistas dessa época, que costuma ser descontada como ‘pré-modernismo’, um termo enganoso e historicista”, afirma. “O melhor exercício é cotejar as obras consagradas com aquelas que foram esquecidas. Em muitos casos, a comparação surpreende.”
Membro do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador da Universidade de Berlim, Cardoso critica o que chama de “ideia hegemônica” que se criou em torno da Semana.
“Não existe um modernismo, único e unívoco. Há muitos modernismos, uma pluralidade de modernismos. Se queremos entender o legado deles para a cultura brasileira, o primeiro passo é compreender as diferenças entre os diversos momentos e movimentos. A ideia hegemônica do modernismo é nociva, inclusive para avaliarmos a difusão das ideias modernistas. O resultado é que ficamos rodando em círculos em torno da questão da identidade nacional, sem avançar em outras frentes mais importantes.”
Entre essas frentes, ele coloca como fundamental entender os contextos e ramificações da Semana. “É urgente olharmos para a produção cultural de modo amplo e arejado. A historiografia da Semana de Arte Moderna ignora, em grande parte, o contexto político e social da época. Isso não faz sentido. Escreve-se sobre a arte moderna como se ela não tivesse nada a ver com a fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922; a Revolução Constitucionalista, em 1932; ou a ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945. Ao contrário, esses fatos tiveram enorme influência sobre os rumos artísticos.”
Conservadorismo ou revolução?
O conceito de uma arte brasileira, ou de uma identidade nacional por meio da arte, é posterior à realização da Semana e vai ser articulado no final dos anos 1920. É então que Mário de Andrade começa suas viagens pelo Brasil, a fim de recolher dados sobre o folclore. E que Oswald de Andrade publica o Manifesto Antropofágico, refletindo sobre a associação de elementos que configuram uma arte de fato brasileira.
“É preciso ter cuidado ao se olhar a programação da Semana a partir de questões atuais. Pensar no que aconteceu ali, o interesse pela arte indígena, por exemplo, como uma apropriação cultural só revela nossa incapacidade de fazer uma leitura da história”, diz Luiz Armando Bagolin, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
“Fica a sensação de que não fomos capazes de superar o modernismo como mito. E, nesse sentido, falamos menos dele e somos falados por essa história. Em outras palavras, olhamos apenas para o hoje e não somos capazes de ler as nuances da história”, completa.
O pesquisador José de Nicola, autor, ao lado do historiador Lucas de Nicola, de “A Semana de 22: Antes do Começo, Depois do Fim”, recém-lançado pela Estação Brasil, também chama atenção para o fato de que é preciso ler com cuidado antes de julgar aquela geração.
“A ligação com a elite existiu, é claro. Mas, veja, defender a arte conservadora reflete um olhar sobre a sociedade, é uma atividade reacionária, é dizer que tudo está bem como é. Agora, defender a ruptura é uma postura revolucionária. É preciso fazer uma distinção entre militância e questionamento político. Esperar que uma semana dedicada à arte em um país que mal acabara de abolir a escravidão e se tornar uma república é irreal.”
Ainda assim, Lucas acredita na importância de lançar perguntas para a Semana. “Fazer isso é lançar na verdade questões para nós mesmos. Sobre como continuamos a nos desenvolver como sociedade. Sem as perguntas colocadas pelos modernistas, não poderíamos estar fazendo as perguntas que fazemos hoje.”
Para Rappin Hood, um espírito a ser resgatado
Para a diretora artística do Theatro Municipal de São Paulo, Andrea Saturnino, “não há como escapar do agora, das questões que nos afetam no momento” ao se repensar 1922.
“É invariavelmente com o filtro do presente que nos voltamos à história. Quando observamos o arco de cem anos, percebemos que algumas coisas que gostaríamos que tivessem mudado não mudaram ainda. Portanto, multiplicar os olhares e abrir debates internos é um dos caminhos que acreditamos ser, nesse momento, importante a ser traçado. A Semana de 22, como marco de um movimento do qual somos todos frutos, levanta questões que nos fortalecem”, diz.
Entre os concertos, palestras e conferências organizados pelo teatro para marcar o centenário, há um sarau que será realizado no palco do Municipal sob o comando do rapper Rappin Hoodd, para quem o espírito de 1922 precisa ser resgatado.
“Olhando para trás, pensando no povo preto, não havia ali uma representatividade, um espaço. E hoje esse espaço já existe. Apesar do racismo, a juventude negra não se cala, até porque são vários os espaços e as maneiras de poder falar. Essa juventude forma um batalhão de modernistas, inclusive no modo como podem reler a Semana”, diz ele.
“Os modernistas eram burgueses que se voltaram contra a burguesia. E eu gostaria de ver isso acontecendo hoje, que os burgueses, a classe média tivessem esse espírito de contestação que eles tiveram lá atrás. Um poema como ‘Ode ao burguês’, do Mário de Andrade, isso podia ser a letra de um rap hoje. Onde estão artistas que criam obras questionadoras, como a de Geraldo Vandré, ou do rock dos anos 1980 ou mesmo do início do hip-hop? Eu não vejo isso acontecendo.”