Artista indígena de Samoa renova pintura de Gauguin através da fotografia
Yuki Kihara, nascida em Samoa, fez releitura de obras do artista a partir da perspectiva das Ilhas do Pacífico
Numa madrugada de 2008, antes da abertura do Museu Metropolitano de Arte, em Nova York, o artista Yuki Kihara sentou-se em frente a dois quadros do artista francês Paul Gauguin e os inspecionou na galeria abafada e vazia.
O artista japonês e samoano, que estava expondo no museu na época, estava particularmente interessado em “Duas Mulheres Taitianas”, de 1899, que apresenta duas figuras femininas em um cenário parecido com o Éden. Uma segura uma flor e se inclina em sua companheira, que apresenta uma bandeja de frutas para o espectador, mas não olha bem para cima para encontrar o olho. Catorze anos depois de vê-la pela primeira vez, Kihara reinterpretou a pintura, junto com muitas outras obras de Gauguin, em uma série de fotografias intitulada “Acampamento Paraíso” para a Bienal de Veneza.
“Não é como reencenar ou reformular, porque quando eu digo ‘upcycling’, significa que estou realmente melhorando a partir do original”, disse Kihara em uma chamada de vídeo.
“Upcycling” é um termo que tem sido usado, principalmente no ramo da moda, para designar o reuso criativo de algo. Seja reformar uma jaqueta ou dar um novo propósito a uma obra de arte, o termo pode ser usado para diversas situações.
Kihara é o primeiro artista indígena do Pacífico da comunidade Fa’afafine de Samoa – pessoas que são designadas como homens ao nascer, mas que expressam uma identidade feminina – a representar a Nova Zelândia na prestigiosa mostra de arte global.
Em “Acampamento Paraíso”, com curadoria de Natalie King, Kihara entrelaça temas de direitos LGBTQ+, ambientalismo e descolonização. Em suas exuberantes imagens, tiradas na Ilha Upolu em Samoa, com um elenco de quase 100 pessoas, dá o papel principal a Fa’afafines, mantendo a familiaridade das composições de Gauguin, mas deixando sua perspectiva exploradora.
Na arte moderna, o olhar colonial do paraíso de Gauguin tem sido formativo. O pintor, que morreu em 1903, passou uma década de sua vida na Polinésia Francesa exotizando as jovens mulheres indígenas que encontrou através de um prolífico número de telas, e teve relações predatórias com elas também – um legado complicado que foi abordado na exposição “Retratos de Gauguin” na Galeria Nacional, em Londres, em 2019. As adolescentes que ele pintou incluíam uma adolescente de 13 anos chamada Teha’amana a Tahura, que os especialistas acreditam ser sua segunda esposa, embora sua identidade tenha sido debatida.
Descobrindo e reciclando
Quão fiéis à realidade são as obras de Gauguin, e quanto é construído? Para Kihara, as cenas, supostamente ambientadas no Taiti, pareciam muito familiares.
“Quanto mais eu olhava de perto o fundo, e depois olhava mais de perto os modelos, isso me fazia lembrar pessoas e lugares em Samoa”, disse ela.
Através de sua extensa pesquisa sobre fotografia colonial, Kihara encontrou uma clara ligação com o arquipélago – especificamente através das imagens de Thomas Andrew, um fotógrafo neozelandês que viveu em Samoa durante a segunda metade de sua vida, de 1891 até 1939.
Kihara descobriu composições idênticas ao trabalho de Gauguin, assim como provas de que Gauguin em 1895 visitou a Galeria de Arte de Auckland, onde algumas das imagens de Andrew estavam alojadas.
“Embora Gauguin nunca tenha realmente colocado os pés em Samoa, algumas de suas principais pinturas foram na verdade diretamente inspiradas por fotografias de pessoas e lugares [de lá]”, disse ela.
Kihara também acredita que as modelos de Gauguin podem não ser mulheres cisgêneros, referindo-se à pesquisa do estudioso Māori Dr. Ngahuia Te Awekotuku, que escreveu que os modelos “andróginos” que ele pintou eram provavelmente Māhū – a comunidade indígena polinésia que, como a Faʻafafine de Samoa, é considerada como um terceiro gênero e expressa uma identidade feminina.
Com estas conexões em mente, Kihara se propôs a melhorar as famosas obras de Gauguin a partir de uma perspectiva do Pacífico. Em sua obra inspirada em “Duas Mulheres Taitianas”, chamada “Duas Fa’afafine (Depois de Gauguin)”, as duas modelos Faʻafafine estão em frente aos jardins bem cuidados de um resort local, vestindo tecidos tradicionais. Kihara optou por apresentar flores silvestres locais e um prato de rambutan como seus adereços, criando uma iconografia totalmente nova.
De acordo com Kihara, seu retrato desafia o próprio conceito de paraíso. “A idéia de paraíso é na verdade heteronormativa”, disse ela, referindo-se ao Jardim do Éden da Bíblia, lar de Adão e Eva. Na literatura e nas artes populares, bem como no imaginário comercial dos recém-casados em lua-de-mel, “o paraíso foi perpetuado por muitas pessoas, incluindo Paul Gauguin”, disse ela. “Ele vem de um cânone do olhar ocidental que impõe esta ideia”.
Chamar um lugar de paraíso, ela acrescentou, passa por cima das complexidades dessas regiões idílicas para onde turistas viajam para escapar, excluindo a história de violência colonial nessas terras e a ameaça iminente de um desastre climático, uma batalha na qual Samoa está na linha de frente.
Após a conclusão da Bienal, Kihara planeja exibir o trabalho para sua própria comunidade em Samoa, Nova Zelândia e Austrália.
“Estou levando a integridade e a dignidade de volta para onde ela nos pertence, no Pacífico”, disse ela.