Ucrânia usa desde amostras de DNA até desenhos infantis para identificar vítimas
Decomposição avançada de corpos e falta de base de dados de DNA são alguns dos empecilhos enfrentados por especialistas forenses na identificação das vítimas da guerra entre Rússia e Ucrânia
Do lado de fora de um necrotério já agitado em Kiev, agentes funerários abrem as portas de um caminhão refrigerado, e o cheiro forte da morte preenche o ar.
Vestidos em trajes de proteção e máscaras, eles descarregam sacos cadavéricos, um por um, em macas, e os levam para dentro. Os investigadores esperam, com pranchetas em mãos, para começar seu trabalho.
Dentro de cada saco está alguém cujos restos mortais foram deixados nas ruínas da guerra por semanas, e estão tão decompostos que são irreconhecíveis.
“É claro que é difícil. Mas não é um trabalho comum, é um desejo de ajudar”, disse Olena Tolkachova, chefe dos serviços para famílias do regimento de Azov.
Milhares de mortos na guerra na Ucrânia não foram identificados. Policiais, soldados, investigadores, agentes funerários e especialistas forenses — desesperados para devolver os restos para os entes queridos — estão trabalhando exaustivamente para descobrir quem são essas pessoas, para que seus corpos possam ser colocados em descanso permanente.
Na maior parte dos casos, a análise do DNA pode dar as respostas necessárias.
Dicas em desenhos infantis
Os 64 corpos que chegaram no dia em que a CNN visitou o necrotério foram retirados da planta siderúrgica de Azovstal, um dos últimos locais de resistência de defensores da Ucrânia na cidade portuária de Mariupol, onde os resistentes se renderam no meio do mês de maio.
Eles foram entregues por forças russas em troca de 56 de seus próprios soldados mortos, disse Tolkachova.
Acredita-se que o corpo de Daniil Safonov, um oficial de polícia ucraniano de 28 anos que se tornou popular nas redes sociais por postar atualizações das linhas de frente, esteja entre os restos descobertos em Azovstal.
“Estamos segurando a barra, mas está muito difícil”, ele publicou no Twitter, em 3 de abril. “Se eu não escrever mais, me perdoem, fizemos tudo o que podíamos. Glória à Ucrânia!”
Mas quando Olha Matsala, irmã de Safonov, examinou o que pensava-se ser seus restos mortais no necrotério de Kiev, ela disse que não conseguia distinguir nenhuma de suas feições. Acredita-se que Safonov tenha sido morto durante um ataque com morteiros no início de maio; seu corpo ficou deitado no calor por quase seis semanas.
“Ele era um homem extremamente bom. Ele deu sua vida pela Ucrânia. Ele me disse que aceitava que talvez nunca voltasse de Mariupol, e eu tenho medo de que seja isso o que tenha acontecido”, disse Matsala.
Mas dentro de um dos bolsos do uniforme de Safonov estava a evidência que precisavam: dois pequenos desenhos feitos com giz de cera por seu filho de seis anos, um de uma árvore de Natal, e outro de uma nuvem, que estavam milagrosamente intactos.
“Isso deixa mais fácil”, disse Matsala chorando. “Agora, posso enterrá-lo, e eu estarei mais calma sabendo que seu túmulo está próximo de mim. Eu estava esperando por ele.”
Seu alívio é raro. Em quase todos os casos, a única esperança de identificação é uma análise de DNA, o que é uma tarefa longa e complexa.
Combinação de amostras de DNA
O processo começa dentro do necrotério, onde os agentes funerários extraem amostras de tecidos dos mortos. Devido ao estado avançado de decomposição dos corpos, geralmente um pedaço de um dos ossos é a única opção.
As amostras são entregues para um laboratório de Kiev, onde analistas começam a trabalhar para construir perfis genéticos.
“Se o osso está se desintegrando, devemos fazer dezenas de tentativas para montar um perfil genético. Às vezes pode levar meses, mas nunca paramos de tentar”, disse Ruslan Abbasov, chefe do laboratório de DNA do Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia.
“Trabalhamos 24 horas por dia para que os ucranianos reencontrem seus entes queridos. Esperamos nomear cada vítima, identificar cada serviçal. E enterrá-los com dignidade.”
Usando um software especial, um especialista forense tenta encontrar pares para os restos comparando o DNA do desconhecido a uma base de dados do governo, de milhares de pessoas procurando por seus parentes.
“Quanto mais perfis tivermos, estatisticamente, faremos mais acertos. É óbvio que não temos DNA o suficiente de parentes de pessoas desaparecidas”, afirmou Stanislav Martynenko, especialista-chefe forense no laboratório.
“Levará anos após o fim da guerra para achar todos os corpos humanos não identificados”.
Dos 700 corpos não identificados catalogados até o momento, 200 já foram relacionados a diferentes famílias, segundo Abbasov.
Martynenko está por trás de muitas dessas identificações. “Quando encontramos uma identificação, sinto que fiz meu trabalho”, ele disse à CNN. “E eu preciso informar a todos sobre essa identificação começar com a polícia”.
Para ampliar a base de dados do governo, as autoridades montaram uma linha direta para que as famílias relatem o desaparecimento de alguém e agendem uma doação de material genético em uma estação de polícia. Cerca de 1.000 pessoas já se prontificaram a fazê-lo desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro.
Mas alguns daqueles perdidos na guerra nunca voltarão para suas famílias.
“Alguns corpos estão tão danificados que é impossível extrair DNA”, disse Tolkachova, do regimento de Azov, entre lágrimas. “Temos pais que nos dizem: ‘Eu entendo se não acharem meu filho, mas pelo menos me traga um pouco de terra de onde ele andou em Mariupol para que possamos enterrar'”.
Sua voz mostra a agonia sentida por aqueles que nunca saberão o destino de seus amados, nunca receberão um corpo para enterrar, e até mesmo nunca encerrar esse ciclo.
Esse é o resultado o qual especialistas forenses da Ucrânia estão lutando para evitar. Mas com mais restos chegando dia após dia, e a guerra apertando no sul e no leste da Ucrânia, a tarefa fica mais difícil.