Talibã fala sobre direitos das mulheres, mas diz que “desobedientes” devem ficar em casa
Sirajuddin Haqqani, vice-líder do grupo, falou em entrevista exclusiva à CNN, mostrando rosto pela primeira vez diante das câmeras; FBI oferece recompensa de US$ 10 milhões por ele
Uma autoridade do alto escalão do Talibã repetiu a promessa ainda não cumprida do grupo de permitir que as meninas voltem ao ensino médio, dizendo que haveria “boas notícias em breve”. Porém, ele sugeriu que as mulheres que protestavam contra as restrições do regime aos direitos delas deveriam ficar em casa.
Sirajuddin Haqqani, ministro interino do Interior do Afeganistão e vice-líder do Talibã desde 2016, fez os comentários em uma entrevista exclusiva com a jornalista Christiane Amanpour, da CNN, em Cabul, no que é a primeira conversa com a imprensa registrada em câmera e mostrando seu rosto.
Em março, depois de muitas promessas de que meninas poderiam frequentar a escola secundária, o Talibã reverteu sua decisão, adiando o retorno indefinidamente.
Quando perguntado sobre as mulheres afegãs que dizem ter medo de sair de casa sob o domínio do grupo, e sobre aquelas que relataram um efeito assustador da liderança da organização, Haqqani acrescentou com uma risada: “Nós mantemos mulheres desobedientes em casa”.
Depois de ser pressionado por Amanpour a esclarecer seu comentário, ele disse: “Ao dizer mulheres desobedientes, fiz uma piada referindo-se àquelas mulheres desobedientes que são controladas por alguns outros lados e que questionam o atual governo”.
Haqqani também estabeleceu alguns parâmetros para o futuro das mulheres e o trabalho, que serão limitados pela interpretação do Talibã sobre a lei islâmica e os “princípios nacionais, culturais e tradicionais”.
“Elas podem trabalhar dentro de sua própria estrutura”, destacou.
O ministro do Talibã falou em sua primeira entrevista diante das câmeras a um meio de comunicação ocidental em anos, apenas alguns meses depois de mostrar seu rosto em público pela primeira vez. O oficial, intensamente secreto, do alto escalão é procurado pelo FBI e foi classificado pelo Departamento de Estado dos EUA como um “terrorista global especialmente designado”. É oferecida uma recompensa de US$ 10 milhões por ele.
Os comentários sobre a educação das meninas e os direitos das mulheres pontuaram uma série de alegações de que “não há ninguém contra a educação (das meninas)” no governo afegão.
“As meninas já podem ir à escola até a 6ª série e, acima dessa série, o trabalho é continuar em um mecanismo”, disse Haqqani. “Muito em breve, você ouvirá notícias muito boas sobre esse assunto, se Deus quiser”, acrescentou, sem especificar um prazo.
Depois do encontro, os assessores de Haqqani observaram que a entrevista foi um esforço para abrir um novo capítulo nas relações com os Estados Unidos e o resto do mundo.
Desde que tomou o Afeganistão em agosto passado, o Talibã garantiu repetidamente à comunidade internacional que protegerá os direitos de mulheres e meninas, mas, ao mesmo tempo, retira muitas liberdades e proteções delas.
Sem perspectiva de mudança
Muitas meninas e mulheres em idade escolar já perderam a esperança. “Todo o governo [é] contra a educação das meninas”, disse Maryam, de 19 anos, à CNN na terça-feira (17). “Não acredito que o Talibã cumpra suas promessas […] eles não entendem nossos sentimentos”.
“Passo a passo, eles estão tomando todas as nossas liberdades”, acrescentou Fátima, de 17 anos. “O Talibã agora e o Talibã dos anos 1990 são os mesmos – não vejo nenhuma mudança em suas políticas e regras”, continuou.
“Nossa única esperança é que a comunidade internacional exerça pressão extrema sobre o Talibã para permitir que as meninas frequentem a escola. Nada mais funcionará”, ultimou a jovem.
Maryam e Fátima, bem como outras mulheres com quem a CNN falou, não forneceram seus sobrenomes devido a preocupações com sua segurança.
Os comentários de Haqqani provavelmente foram pouco encorajadores aos observadores internacionais de que o Talibã leva a sério seus compromissos. “Todo mundo da liderança do Talibã tem credibilidade zero nesta questão”, disse Heather Barr, diretora associada da Divisão de Direitos da Mulher, da organização internacional Human Rights Watch.
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“Eles fizeram representações sobre seu suposto respeito por mulheres e meninas”, desde que assumiram o poder, acrescentou Barr. “Todos os dias depois disso, houve uma nova repressão a elas, e isso continuou a se intensificar ao longo do tempo”, destacou.
Os ministros das Relações Exteriores do G7 e o Alto Representante da União Europeia expressaram na semana passada sua “mais forte oposição” às crescentes restrições impostas pelo Talibã aos direitos das mulheres e meninas.
Haqqani comentou à CNN que os “julgamentos, pesquisas e tomadas de decisão da comunidade internacional são todos unilaterais”, complementando: “Ainda estamos na fase preliminar. Faz apenas oito meses desde que assumimos o governo […] ainda precisamos trazer a situação de volta ao normal”.
Depois de tomar o poder, o Talibã alertou as mulheres para ficarem em casa e seus combatentes usaram chicotes e paus contra as manifestantes. Nos meses seguintes, elas foram banidas de grandes partes da vida pública – desde aparecer na televisão até fazer longas viagens sozinhas. Um novo decreto no início deste mês institui que as mulheres devem cobrir seus rostos em público.
Quando pressionado por Amanpour sobre se todas as mulheres devem cobrir seus rostos, Haqqani respondeu: “Não estamos forçando as mulheres a usar [o] hijab, mas estamos aconselhando-as e pregando para elas de tempos em tempos […] que o hijab não é obrigatório, mas é uma ordem islâmica que todas devem implementar”.
Nas ruas de Cabul, o crescente isolamento das mulheres da sociedade levou a riscos econômicos. “Tenho que trabalhar”, disse à CNN uma mulher chamada Khotima. “Devem nos deixar trabalhar, porque temos que assumir o papel de homem da família para encontrar o pão para as crianças”.
“Quando você não tem dinheiro, quando você não tem emprego, você não tem renda. Você conseguiria comer uma comida adequada quando não tem trabalho?”, indagou outra mulher chamada Farishta.
Os EUA não são inimigos “atualmente”
Haqqani conversou com a CNN dois meses depois que o Talibã divulgou fotos raras do ministro em uma cerimônia para policiais. Antes disso, raramente ele era visto em público; seu pôster do FBI de “Mais Procurado” apresenta apenas uma imagem granulada com parte de seu rosto.
Ele é procurado pela agência para interrogatórios sobre um ataque em 2008 a um hotel que matou seis pessoas em Cabul, incluindo um cidadão americano; o governo dos EUA diz que o ministro interino admitiu ter planejado o ataque em uma entrevista anterior à mídia. Ele faz parte da família que forma a rede Haqqani, organização militante islâmica fundada por seu pai Jalaluddin Haqqani, que foi designada pelos Estados Unidos como grupo terrorista em 2012.
A autoridade afirmou à CNN que: “no futuro, gostaríamos de ter boas relações com os Estados Unidos e a comunidade internacional”, adicionando: “atualmente não os vemos como inimigos”.
Mas, ele fez repetidas garantias sobre os direitos das mulheres e educação para meninas que estavam em desacordo com as observações dos órgãos de vigilância e governos globais.
“A comunidade internacional está levantando muito a questão dos direitos das mulheres. Aqui no Afeganistão, existem princípios islâmicos, nacionais, culturais e tradicionais”, ponderou. “Dentro dos limites desses princípios, estamos trabalhando para oferecer a elas oportunidades de trabalho e esse é o nosso objetivo”, complementou.
Em dezembro, o Talibã divulgou um chamado “decreto sobre os direitos das mulheres”, que não mencionava o acesso à educação ou ao trabalho e foi imediatamente criticado por mulheres e especialistas afegãos, que disseram que essa era uma prova de que o grupo militante não estava interessado em defender as liberdades básicas das milhões de mulheres.
As meninas afegãs que cursam acima da 6ª série deveriam voltar à escola em março, pela primeira vez desde a tomada do Talibã, mas foram instruídas a ficarem em casa até que um uniforme escolar apropriado, que esteja de acordo com a Sharia e os costumes e cultura afegãos, fosse projetado, informou na época a Bakhtar, agência de notícias administrada pelo Talibã.
Haqqani destacou à CNN que o atraso era necessário enquanto os líderes projetavam o “mecanismo” pelo qual as meninas podem retornar à educação. “Houve algumas falhas nos preparativos que estavam em andamento. O trabalho está sendo feito nessas questões”, disse.
Especialistas expressaram ceticismo de que seus motivos sejam diferentes, como foi o caso entre 1996 e 2001, quando o primeiro regime Talibã proibiu as meninas de estudar.
“Eles sempre diziam que as condições ideais não são agora, [mas eles deveriam] resolver”, disse Barr. “Nesses cinco anos, esse momento nunca chegou. Então, muito claramente para mulheres e meninas, isso sempre foi uma mentira, e é assim que está parecendo desta vez também”.
O ministro interino também foi questionado sobre o status de Mark Frerichs, um veterano e contratado dos EUA que foi sequestrado em Cabul no final de janeiro de 2020 e acredita-se que ele esteja detido pela rede Haqqani.
Um vídeo de prova de vida, aparentemente filmado em novembro de 2021, surgiu em abril deste ano, no qual Frerichs disse: “Gostaria de pedir à liderança do Emirado Islâmico do Afeganistão, por favor, me liberte. Me liberte para que eu possa me reunir com a minha família”.
Sobre isso, Haqqani disse à CNN: “Isso é o que eles pensam, que ele está conosco […] Não há nenhum obstáculo do lado do Emirado para a libertação dele. Se os Estados Unidos aceitarem as condições do Emirado Islâmico, a questão da libertação dele poderá ser resolvida em um dia.
“Sobre as suposições de que ele possa estar conosco, quero dizer que somos parte do Emirado Islâmico, estamos comprometidos em obedecer às ordens de Amirul Momineen, o Líder Supremo”, acrescentou. “Os esforços estão em andamento no nível do governo e uma equipe é designada para negociar com eles”.
Quando procurado para comentar, um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA ressaltou à CNN: “A libertação segura e imediata do cidadão americano e veterano da Marinha, Mark Frerichs, é imperativa. Deixamos isso claro para o Talibã e pedimos que o libertassem imediatamente em praticamente todas as conversas que tivemos nos últimos dois anos”.
*Rob Picheta, Jack Guy e Madalena Araujo, da CNN, contribuíram para esta reportagem