Supremo dos EUA tem votos de madrugada, de cortesia e regra não escrita
Em uma longa entrevista à CNN, o juiz do Supremo Stephen Breyer mostrou uma brecha (ainda que timidamente) para alguns dos costumes internos da Suprema Corte norte-americana
Muitas das negociações da Suprema Corte dos EUA acontecem de forma privada, quando os nove juízes se reúnem sozinhos em torno de uma mesa retangular em uma pequena sala decorada com painéis de carvalho.
Os resultados de algumas dessas deliberações internas se tornam públicos quando as decisões dos casos, totalmente informadas e discutidas abertamente, são proferidas. Mas outras decisões tomadas em privado são cercadas por mais sigilo e são mais enigmáticas. É o que acontece quando os juízes decidem quais casos merecem revisão ou quando o tribunal emite decisões tarde da noite sem quaisquer votos ou explicações registradas publicamente.
Em uma longa entrevista à CNN na quarta-feira (13), o juiz do Supremo Stephen Breyer mostrou uma brecha (ainda que timidamente) para alguns dos costumes internos da Suprema Corte, incluindo casos de pena de morte e decisões à meia-noite. Mas Breyer, o progressista mais velho entre os nove juízes, também enfatizou a necessidade de sigilo nas sessões da Corte, conhecidas como “a conferência”, para que cada um possa falar livremente enquanto os casos são debatidos.
O funcionamento interno da conversa dos juízes provavelmente passará por mais escrutínio nos próximos meses.
Uma comissão do presidente Joe Biden que estuda a Suprema Corte revelou na quinta-feira (14) documentos que mostram que os membros do grupo se concentram, entre outros tópicos, no uso de decisões de emergência tomadas pela corte, seu processo de triagem para decidir quais casos ouvir, a ética judicial e o acesso público aos processos judiciais.
A conferência
Em suas sessões privadas semanais, os nove membros do Supremo decidem quais petições pendentes tratar e, separadamente, votam nos casos que já foram discutidos.
O presidente do Supremo, John Roberts, define a agenda e começa a discussão na sala de conferências fora de seus aposentos privados. A sala se distingue por uma lareira de mármore preto, acima da qual está pendurado um retrato do grande presidente do Supremo John Marshall (1755-1835). Os oito juízes além de Roberts falam em ordem de antiguidade, até chegar no último juiz a entrar na Corte, a juíza Amy Coney Barrett, que então emite sua opinião.
“O que acontece é altamente profissional. Há uma volta inteira na mesa. Os juízes discutem a questão no caso… o presidente da Suprema Corte e o juiz (Clarence) Thomas e eu e assim por diante. … As pessoas dizem o que pensam. E fazem isso de forma educada e profissional”, contou o juiz Breyer.
Ele enfatizou que nenhuma palavra áspera ou rude ocorre nessas sessões, apesar de algumas das recriminações amargas que mais tarde emergem nas opiniões escritas dos juízes.
Os juízes recebem cerca de 7.000 petições anualmente de pessoas que perderam casos em instâncias inferiores. Eles acabam escolhendo e decidindo cerca de 60 dessas disputas na sessão anual que começa todo mês de outubro. Quatro votos entre os nove são necessários para aceitar um caso para revisão e agendar argumentos orais. Mas, para uma resolução da disputa em questão, é necessária uma maioria de cinco votos.
Das centenas de novas petições tratadas a cada semana, os juízes discutem apenas cerca de uma dúzia. A lista não é pública.
Qualquer juiz pode pedir que um caso pendente seja colocado na lista para discussão, geralmente depois que os escrivães tenham selecionado aqueles que podem ser digno de mérito ou meritórios. Todos os outros casos têm a revisão negada imediatamente.
Os juízes têm arbítrio quase total sobre quais casos aceitam e tendem a procurar por questões em que tribunais inferiores anunciaram decisões conflitantes, para que, assim, a instância superior possa trazer uniformidade à lei em todo o país.
O juiz Breyer destacou duas práticas básicas, transmitidas a ele pela agora aposentada Sandra Day O’Connor, a primeira juíza do país, que serviu de 1981 a 2006 e agora mora no estado de Arizona.
“Sandra O’Connor me disse que existem duas regras não escritas que são provavelmente tão importantes quanto qualquer outra regra escrita. A primeira é que, na conferência, ninguém fala duas vezes até que todos tenham falado uma vez”, contou Breyer. “Fui o juiz mais jovem da corte por 11 anos e era o último a falar, então essa foi uma regra muito favorável a mim. Todos acham que os demais foram tratados de forma justa. A segunda regra é que não há troca de votos. Não é como o Congresso”.
Os juízes são conhecidos, no entanto, por às vezes por mudar o voto durante as deliberações sobre um único caso, enquanto negociam uma decisão da maioria, como no caso de 2012 que apoiou a Lei de Cuidados Acessíveis (também conhecida como Obamacare, que regulamentou a assistência médica a parte da população).
O juiz Breyer se recusou a dizer se os votos na triagem inicial de novos casos deveriam ser revelados para o público, como alguns críticos do tribunal pediram (na entrevista de quarta-feira, ele afirmou que não leu o depoimento de testemunhas que compareceram à comissão e se recusou a comentar a função do grupo.)
Sobre a necessidade geral de confidencialidade, o juiz disse: “Transparência é geralmente uma palavra que significa algo bom, mas eu diria que, sobre a conferência, é importante não haver transparência. … É muito importante que as pessoas digam o que realmente pensam sobre esses casos, e é isso que acontece. Eu me preocupo em mudar isso e de alguma forma trazer o público para a conferência”.
Breyer reconheceu que, ao pensar sobre quais petições aceitar para revisão, ele às vezes considera não apenas se um tribunal inferior decidiu erroneamente um caso ou se existe um conflito entre os tribunais de apelação inferiores, mas também como seus colegas podem dar o voto final sobre a questão.
“Posso jurar a você que nunca pensei em qual será o resultado final? Não, não vou jurar isso. … A instituição, como todas as instituições e como todos os seres humanos, é falível. E não funciona perfeitamente”.
No passado, alguns juízes foram mais diretos ao se referir à negação de um caso, mesmo quando acreditavam que um tribunal regional de primeira instância havia errado, porque temiam que a maioria da Suprema Corte pudesse levar a decisão adiante para estabelecer jurisprudência nacional. Essa prática foi apelidada de “negação defensiva” de uma petição.
Em seu novo livro, “The Authority of the Court and the Peril of Politics” (“A Autoridade da Corte e o Perigo da Política”, sem edição no Brasil), o juiz Breyer levantou outro motivo para evitar certos casos relacionado à opinião pública. Ele observou que, no final dos anos 50 e início dos anos 60, a Suprema Corte adotou uma abordagem estratégica para os casos relacionados à questão racial após a decisão de cancelamento da segregação escolar de 1954, no caso Brown versus Conselho de Educação.
“Por alguns anos depois de tomar sua decisão, a Corte escolheu cuidadosamente quais casos absorver, às vezes evitando aqueles que poderiam frustrar suas ambições tomadas no caso Brown. Um exemplo são aqueles casos que pediram ao Tribunal para anular leis que proibiam casamentos interraciais”, escreveu Breyer.
O tribunal acabou invalidando tais leis, no caso de 1967 de Loving versus Virginia, e Breyer descreveu o intervalo de 13 anos entre as decisões Brown e Loving como decorrente de “uma parte calculada da estratégia de aplicação das decisões da Corte”.
Pena de morte e “voto de cortesia”
A maneira como os juízes lidam com os casos no corredor da morte atraiu atenção dentro e fora do tribunal. Como em casos que não são punidos com pena de morte, quatro votos são necessários para ouvir o mérito de uma questão legal. No entanto, um réu no corredor da morte que busca uma “suspensão” ou adiamento da execução precisa de cinco votos, como é padrão para a maioria das apelações apresentadas ao tribunal.
Essa variação, no entanto, gerou uma lacuna preocupante. Os condenados podem convencer quatro juízes de que suas reivindicações devem ser apresentadas, mas não conseguem garantir um quinto voto para o adiamento da execução.
De vez em quando, um juiz que acredita que o pedido do réu carece de mérito oferecerá, no entanto, o quinto voto crucial para bloquear temporariamente a execução e permitir que as questões jurídicas sejam consideradas.
O juiz Roberts deu o quinto voto em um caso de 2016, escrevendo: “Não acredito que esta aplicação [da lei] atenda aos nossos critérios normais para a suspensão. Este caso não merece a revisão do Tribunal: as alegações apresentadas na petição são puramente específicas de um fato, dependentes de interpretações contestadas do direito estadual, isoladas de nossa revisão por julgamentos alternativos abaixo, ou alguma combinação dos três. Quatro juízes, no entanto, votaram para conceder a suspensão.
Para dar-lhes a oportunidade de considerar mais plenamente a adequação deste caso para revisão, incluindo estas circunstâncias, voto para conceder a suspensão como uma cortesia”.
Mas uma “quinta cortesia”, no jargão do tribunal, não foi concedida de forma consistente, principalmente nos últimos anos, quando os conservadores da corte não se mostraram propensos a intervir nas controvérsias estaduais sobre a pena de morte.
Questionado pela CNN sobre o consequente resultado de vida ou morte que ocorre quando um preso condenado pode ter quatro votos para ouvir seu apelo, mas não tem um quinto voto para adiar a execução, Breyer respondeu: “Raramente acontece, raramente acontece”.
Quando pressionado sobre quantas vezes, mesmo que raramente, isso pode acontecer, ele não soube responder. “Eu não acompanhei. Como eu disse, nenhuma instituição funciona perfeitamente”.
O juiz Breyer sugeriu que estava disposto a fornecer um quinto voto em casos tão restritos e achou que seus colegas deveriam agir da mesma forma, mas não disse que o tribunal deveria garantir formalmente que um preso seja poupado da execução imediata se ele tiver quatro votos para uma reclamação ser ouvida .
Em todas as entrevistas dados para promover seu livro, Breyer resistiu às críticas ao tribunal ou a seus colegas. Anteriormente, no entanto, ele expressou claramente as preocupações sobre a imposição “arbitrária” da pena de morte, visto que discordou de uma decisão emitida pouco antes das 3 da manhã em 12 de abril de 2019.
Foi um caso no Alabama. A maioria conservadora do tribunal retirou a suspensão da execução, dizendo que o prisioneiro não cumpriu o prazo para contestar o método: uma injeção letal de três drogas que o prisioneiro argumentou que lhe causaria muita dor e sofrimento.
Acompanhado por três colegas progressistas na época, o juiz Breyer argumentou que a maioria estava ignorando erroneamente os juízes dos tribunais inferiores, que adiaram a execução.
“Proceder desta forma põe em causa os princípios básicos de justiça que deveriam estar subjacentes ao nosso sistema de justiça criminal. Continuar neste assunto no meio da noite sem dar a todos os membros do Tribunal a oportunidade de discutir amanhã de manhã é, creio eu, lamentável”, escreveu Breyer. Ele acrescentou mais tarde: “em jogo, neste caso, está o direito de um condenado recluso para não ser submetido a punição cruel e incomum em violação da Oitava Emenda”.
Seis votos
Alguns depoimentos perante a comissão de Joe Biden na Suprema Corte destacaram problemas decorrentes das regras privadas dos juízes, que podem ser conhecidos por ex-escrivães e outros no mundo dos tribunais superiores da alta instância, mas são estranhos à maioria das pessoas que levam casos aos juízes.
Recentemente, o juiz Samuel Alito observou em um discurso na Universidade de Notre Dame que o tribunal exige seis votos quando busca reverter uma decisão de um tribunal inferior sem ouvir argumentos orais.
Essas reversões sumárias, como são conhecidas, acontecem em raras ocasiões quando uma decisão de um tribunal inferior está claramente em desacordo com o precedente da Suprema Corte e os juízes contornam as instruções e argumentos públicos usuais. Mas os seis votos necessários não eram conhecidos publicamente. A maioria das decisões judiciais obtém uma maioria simples de cinco votos.
Questionado sobre o raciocínio por trás da exigência de seis votos, o juiz Breyer disse apenas: “É um costume”.
Quando questionado se havia algum motivo para manter o requisito confidencial, ele disse: “Não há motivo”.
Pedidos à meia-noite
As decisões de madrugada têm sido um marco nos casos de pena de morte, já que presidiários condenados tentaram se defender das execuções noturnas programadas. Mas os juízes têm liberado cada vez mais depois do expediente, mesmo à meia-noite, também as decisões em casos que não envolvem pena de morte. Em 1º de setembro, uma maioria de cinco juízes rejeitou um pedido de clínicas de aborto no Texas e permitiu que uma proibição estadual do aborto depois de seis semanas de gravidez entrasse em vigor.
O juiz Breyer estava entre os quatro dissidentes do caso, que continua a se desenrolar nos tribunais. A lei do Texas entra em conflito com a decisão Roe versus Wade de 1973, que tornou o aborto legal em todo o país.
Quando questionado sobre o processo que levou ao pedido à meia-noite, o juiz Breyer disse: “Por que aconteceu tão tarde? Porque provavelmente as pessoas só terminaram de escrever bem tarde. Tem que ser impresso. Há uma série de etapas administrativas que são executadas”.
Ele atribuiu a ação do meio da noite não aos juízes, talvez escrevendo furiosamente a declaração da maioria e as várias opiniões divergentes, mas à equipe de publicações do tribunal e a um processo administrativo.
Segundo o juiz Breyer, o trabalho dos juízes é revisado para garantir que não haja erros de digitação e que as citações de casos sejam precisas.
“Isso não aconteceu porque ficamos sentados na mesa de trabalho escrevendo até meia-noite”, disse Breyer, em seu jeito caracteristicamente otimista. “Provavelmente terminamos várias horas antes”.
(Texto traduzido. Clique aqui para ler o original em inglês).