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    Sob quatro presidentes, prisão de Guantánamo segue ativa e como símbolo do 11/9

    Bush filho, Obama e agora Biden tentaram acabar com o centro de detenção de acusados de terrorismo, manchado por denúncias de violação de direitos humanos

    Edison Veigacolaboração para a CNN

    Se toda guerra deixa suas cicatrizes, a chamada “Guerra ao Terror”, declarada pelos Estados Unidos como revide ao ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, deixou uma incômoda marca que figura alheia a tratados internacionais e ao respeito aos direitos humanos. Trata-se do Campo de Detenção da Baía de Guantánamo, mais conhecido simplesmente como Prisão de Guantánamo.

    Encravado em uma base militar americana na baía homônima na ilha de Cuba, no Caribe, o complexo penitenciário foi criado na administração George W. Bush em 10 de outubro de 2002, com 598 prisioneiros – talibãs ou membros da Al Qaeda.

    O centro é visto por parte dos críticos (a Anistia Internacional já se referiu à prisão como a “gulag de nossos tempos”) como uma maneira de americanos conseguirem punir acusados sem precisar obedecer aos ritos da lei.

    Ao criar a categoria “combatente ilegal” para os detentos, figura que não existe no direito internacional, o governo Bush manobrou para que eles não tivessem acesso ao sistema de Justiça americano – ou a qualquer outro.

    Tal classificação os isenta da proteção de normas e tratados internacionais de direitos humanos, como as Convenções de Genebra, que se aplicam a prisioneiros em conflitos armados.

    Nesses 19 anos, 780 presos já passaram pelo local. Atualmente, são 39 — apenas dois condenados formalmente. Pelas Convenções de Genebra, prisioneiros de guerra que não estejam respondendo criminalmente por seus atos precisam ser liberados depois do fim do conflito.

    Quatro presidentes

    Sob pressão de organismos internacionais, três presidentes americanos já declararam a necessidade do fechamento da prisão. O próprio republicano Bush manifestou essa intenção.

    Em seu livro de memórias “Momentos de Decisão” (Ed. Novo Século), Bush escreveu: “Embora eu acredite que a instalação de Guantánamo depois do 11/9 tenha sido necessária, o centro de detenção se tornou um instrumento de propaganda para nossos inimigos e uma distração para nossos aliados. Eu procurei uma forma de fechar a prisão sem comprometer a segurança”.

    Seu sucessor, o democrata Barack Obama apresentou o fechamento como promessa de campanha e, no primeiro ano de seu governo, chegou a emitir uma ordem para o fechamento. Diante do fracasso para aprovar a medida, na véspera de deixar a presidência, Obama mandou uma carta ao Congresso americano.

    O democrata acusou parlamentares que se opunham ao fechamento da prisão de colocar “a política acima dos custos para os contribuintes, do nosso relacionamento com aliados e da ameaça que representa para a segurança dos EUA deixar aberta uma prisão condenada por governos ao redor do mundo e que prejudica mais do que ajuda nossa luta contra o terrorismo”.

    Ainda em 2016, uma pesquisa da CNN mostrou que 56% dos americanos eram contra fechar Guantánamo, como Obama queria. Mas o público americano é dividido. O Pew Research Center fez uma pesquisa em 2009 para saber se havia apoio para o fechamento da prisão: apenas 39% disseram que sim. Três anos mais tarde, a pergunta foi outra: você aprova a manutenção de Guantánamo aberta? E 70% dos entrevistados disseram que sim.

    Quando presidente dos Estados Unidos, Donald Trump foi defensor da manutenção de Guantánamo como prisão para aqueles acusados de terrorismo. No início de 2018, ele assinou uma ordem executiva que, na prática, revertia a política do governo Obama, prevendo mais transferências de encarcerados para a ilha caribenha.

    Em discurso proferido em janeiro daquele ano, Trump disse que fechar Guantánamo significaria imprimir maior “suavidade na luta contra o terrorismo”. “Muitas vezes não temos escolha a não ser aniquilá-los. Quando necessário, devemos conseguir detê-los e interrogá-los. Mas devemos ser claros: terroristas não são apenas criminosos. São combatentes inimigos ilegais. Quando capturados no exterior, devem ser tratados como os terroristas que são.”

    Também democrata, o atual presidente Joe Biden, por meio de sua equipe, já deixou claro que gostaria de fechar Guantánamo. Mas, segundo fontes ouvidas pela CNN, deve adotar outra estratégia: sem grandes mobilizações, sem anúncios formais e de forma gradual, justamente para não provocar reações difíceis de serem contornadas na oposição.

    Ainda em janeiro deste ano, o secretário de Defesa Lloyd Austin afirmou ao Senado americano que “Guantánamo nos deu a capacidade de conduzir detenções pelo direito da guerra, de modo a retirarmos nossos inimigos do campo de batalha, mas acredito que chegou a hora de fecharmos as instalações de detenção”, ressalta.

    Dificuldades de fechamento

    Ao cenário político enfrentado por todos os que já tentaram fechar Guantánamo, Biden ganhou um ingrediente novo: a volta do domínio talibã no Afeganistão. “Isso torna o país novamente um possível santuário para grupos terroristas, como no passado a Al Qaeda e, no passado recente, o Estado Islâmico-K”, comenta o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

    O professor se refere ao também chamado de Isis-K, um grupo autointitulado terrorista que surgiu pela primeira vez na região chamada Khorasan,  (entre o Afeganistão e Paquistão), em 2015.

    Isso deve favorecer que ex-encarcerados em Guantánamo possam retornar ao mundo do terrorismo. De acordo com relatório da Diretoria Nacional de Inteligência, uma parte considerável dos ex-detentos — 125, dos 729 citados no documento — retornou a essas atividades.

    “A saída dos Estados Unidos do Afeganistão também trouxe grandes prejuízos políticos para Biden, tendo sua aprovação caído para o menor patamar desde quando tomou posse”, afirma o cientista político. “Nesse sentido, o custo político para o fechamento do campo de prisioneiros e a transferência dos detentos será ainda maior, com a maior oposição dos republicanos e da opinião pública.”

    Os obstáculos para o fechamento de Guantánamo são de ordem logística e jurídica. Por isso, mesmo o ímpeto de Obama não foi suficiente para o sucesso da operação. O maior entrave é o que fazer com os detentos remanescentes. “Há dificuldade em transferir os prisioneiros, majoritariamente afegãos e paquistaneses, para outras instalações prisioneiras, seja em território americano, seja em países aliados”, ressalta Natalino.

    “Embora sob a custódia de militares americanos, a esses prisioneiros não se aplicam certos direitos e  garantias constitucionais, como o devido processo legal e o princípio do juiz natural”, prossegue ele.

    Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, “a mesma invisibilidade e imprevisibilidade que o terrorismo usa enquanto estratégia de guerra é utilizada pelos Estados Unidos como uma guerra não convencional aos tratados estabelecidos, transformando Guantánamo em um aparato estatal caracterizado como um limbo no Direito Internacional”.

    Se Guantánamo fosse fechada, aqueles que não fossem encaminhados a outros países precisariam ser julgados por tribunais americanos. Uma alternativa aventada seria que esses julgamentos ocorressem em comissões militares, instrumentos criados na administração Bush para tais tipos de ocorrência, vistos como menos exigentes na análise de provas e no rigor processual.

    Missiato acrescenta que “a própria Suprema Corte dos Estados Unidos deixa de avaliar os casos ao alegar que a prisão não possui jurisdição específica a ser analisada, resultando em um espaço sem supervisão jurídica, impedindo assim, a presença dos direitos humanos.”

    Esse é o pulo do gato, aliás, para que a prisão tenha sido instalada na base caribenha, de posse dos Estados Unidos desde 1903. A criação do complexo prisional ali foi uma opção por se tratar de jurisdição extraterritorial, isenta, em teoria, dos direitos e garantias existentes no território americano.

    A polarização política americana também é um fator que dificulta a ideia da desativação. Obama sentiu isso, quando enfrentou o Congresso na expectativa de obter fundos para o encaminhamento desses prisioneiros. Ao longo de seus dois mandatos, o que conseguiu foi apenas reduzir o número deles, sem concluir a operação de extinção.

    “Da mesma forma que o seu antecessor democrata, Biden terá de lidar com as resistências políticas e com as dificuldades jurídicas pra transferir os últimos prisioneiros de Guantánamo para instalações prisionais comuns em território norte-americano”, afirma o cientista político Natalino.

    Campo Delta de Guantánamo: público americano se divide sobre o que fazer com a prisão / Michelle Shephard/Getty Images

    Denúncias

    Mas sem dúvida a maior chaga de Guantánamo sobre a própria história dos Estados Unidos, sempre orgulhosos de sua primazia dentro dos princípios de um estado de direito democrático e ocidental, são os flagrantes desrespeitos a convenções internacionais de direitos humanos.

    Há denúncias de torturas e maus-tratos a detentos ali confinados, fundamentadas em relatórios de instituições como a Anistia Internacional, a World Medical Association, o Escritório dos Direitos Humanos das Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional.

    “Há ainda depoimentos de ex-prisioneiros do campo atestando os tratamentos humilhantes e cruéis a que foram submetidos, como a privação de sono e de alimentos”, reforça Natalino, frisando que a localização geográfica, fora do território norte-americano, “dificulta a fiscalização dessas instalações por órgãos de controle”, permitindo que as mesmas sejam “suscetíveis à prática de abusos”.

    “Para uma potência militar que buscou levar adiante uma cruzada internacional contra o terror e se utilizou de métodos repressivos contrários às normas internacionais de Direito da Guerra, Guantánamo foi muito conveniente”, avalia o cientista político. “Esse vácuo instrucional e jurídico existente na base militar tornou possível que se fizessem interrogatórios de detentos sob regime de tortura ou prisões sem acusações formais, julgamentos ou pleno direito de defesa.”

    Natalino define Guantánamo como “uma mácula  para a imagem externa dos Estados Unidos”. “Difícil compreender como um país que defende as liberdades e o Estado Democrático de Direito incorresse nas mesmas práticas condenáveis no trato de prisioneiros que a ditadura afegã implantada pelos talibãs”, compara.

    Especial

    CNN Brasil apresentou uma programação especial neste sábado, 11/09, em transmissão simultânea com a CNN americana e com correspondentes espalhados pelos Estados Unidos, em homenagem às vítimas do atentado que completa 20 anos. Confira:

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