‘Saí da quarentena, mas o considerado normal não é mais normal na China’
Professora norte-americana que mora na cidade chinesa de Wuxi conta como foi tentar voltar à rotina após a quarentena
* Devika Koppikar ensina psicologia e inglês em um programa internacional de ensino médio da China na cidade de Wuxi, cerca de 130 km a oeste de Xangai. Antes disso, ela foi secretária de imprensa do ex-deputado norte-americano Elijah E. Cummings (morto em 2019) e consultora de comunicação em Washington. As opiniões expressadas aqui são dela.
Meu feed do Facebook ficou repleto de fantasias alimentares pós-isolamento. Meus amigos sonhavam com um “milkshake de caramelo” ou um “hambúrguer de queijo feta, ovo frito e abacate com batatas fritas”. Mas se tem uma coisa que eu aprendi depois de sair da minha quarentena de duas semanas na China é que não podemos simplesmente calçar nossos chinelos e voltar à vida AC – antes da COVID-19.
Sou de Woodbridge, Virgínia (Estados Unidos), e vivo na China há quatro anos. Estava viajando pela Austrália e Nova Zelândia para o Ano Novo Chinês quando ouvi que o novo coronavírus tinha invadido a cidade de Wuhan, mais de 800 km a oeste de onde moro.
Recebi repetidas mensagens da embaixada dos EUA que “recomendava”, mas não ordenava, que os norte-americanos deixassem a China. Conforme a data da minha volta se aproximava, muitos colegas decidiram não voltar ao país até que a loucura do vírus diminuísse. “Qualquer lugar fora da China é mais seguro”, disseram eles.
Quando ouvi que todos que entravam no país precisavam ficar em quarentena obrigatória, tive uma sensação ruim. E se eu precisasse sair? Como conseguiria comida? Outra expatriada que estava na metade da quarentena dela me convenceu que era possível. “Você está na sua própria casa com todas as facilidades, e eles vão te trazer comida e outros suprimentos que você precisar”, afirmou ela.
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Três meses depois, o que o mundo aprendeu sobre o novo coronavírus?
Senti que precisava voltar para os meus alunos. Como não tínhamos permissão para entrar no campus da escola até que tivéssemos completado as duas semanas de quarentena, senti que quanto mais cedo eu começasse o isolamento, mais rápido eu poderia voltar à minha rotina. Ativista dos direitos humanos por vocação, percebi que eu era mais privilegiada do que outras pessoas que enfrentavam destinos incertos, como refugiados e trabalhadores sem documentos.
Iniciei meus 14 dias de quarentena encarando-a como um desafio espiritual e psicológico. Registrei minha jornada em casa no site Afro, descrevendo minha vida durante esse período.
No dia 22 de fevereiro, completei meu tempo em isolamento e quebrei a barreira que havia me mantido no meu apartamento por duas semanas. Curiosamente, não fiquei tão presa quanto pensei que ficaria. Tive a impressão de que minha porta estava presa por uma fita hermética e resistente. Na verdade, estava obstruída apenas por um simples pedaço de papel. O comitê da vizinhança – algo como associação de moradores – que monitorava minha quarentena colou esse papel de ponta a ponta na porta. Se eu rompesse o isolamento, o papel se rasgaria, indicando minha fuga.
Saí da quarentena há quase 40 dias e a vida está longe do normal. Apesar de o vírus ter atingido a China perto do Natal e aumentado exponencialmente até meados de fevereiro, a vida como conhecíamos é apenas observar o amanhecer.
No dia da minha “alta”, antes de ir a qualquer lugar, eu tive que comparecer ao escritório de locação do meu apartamento, onde mostrei ao comitê um gráfico das minhas medições diárias de temperatura, e um médico ainda me mediu para que eu conseguisse um certificado dizendo que eu estava “livre e limpa” com relação ao novo coronavírus.
Isso me qualificou para um código de telefone digital “verde”, o qual eu tinha que mostrar antes de entrar em qualquer loja ou transporte público. Ele ficaria “vermelho” se eu saísse da cidade ou desligasse o meu GPS. Ainda carrego esse código e mostro em alguns locais, como shoppings, mas a exigência dele ficou mais leve.
Além disso, os seguranças que ficam sentados em algumas mesas ao lado de fora do meu condomínio ficaram menos rigorosos com relação a medir a minha temperatura todas as vezes que eu saía e voltava.
Meu primeiro passeio foi caminhar pelas ruas do lado de fora do meu condomínio. Cerca de metade das lojas estavam abertas. As outras foram trancadas e as janelas mostravam mensagens como “Feliz Natal” e “Feliz Ano do Rato”, muitas semanas depois de passados esses feriados. Era uma imagem congelada no tempo, esperando derreter.
Contudo, eu estava animada por poder ir às lojas. Durante minha quarentena, mandei uma mensagem para o assistente do escritório da escola com os itens que eu precisava comprar, e o comitê da vizinhança me trouxe comida por três dias.
Agora, pelo menos, poderia comprar as marcas que eu quisesse. Mas julguei mal novamente: as prateleiras estavam praticamente vazias, e eu não tinha opção a não ser comprar produtos que não gosto muito, como manteiga com sal ou iogurte adoçado.
Eu queria muito um chocolate quente da Starbucks, mas a rede de cafeterias atendia somente pedidos de entrega. De que valeria isso? O chocolate teria esfriado até a hora de eu chegar em casa e não poderia bebê-lo ao lado de fora da loja porque as cadeiras foram recolhidas.
A maioria dos meus amigos ainda estavam em seus países ou fazendo a quarentena aqui, então eu não podia vê-los. Eles também não podiam me visitar porque meu condomínio permitia a entrada somente de moradores. Mesmo liberada do meu isolamento, ainda me sentia isolada.
Foi então que ouvi que nosso restaurante italiano local, Mammamia, estava fazendo entregas. Pedi uma pizza, pão de alho e uma salada de rúcula. Se eu tinha que comer sozinha, poderia muito bem me cuidar, pensei. Mas quando os entregadores tentaram entrar no meu condomínio, não conseguiram, e meu jantar esfriava enquanto eu lidava com uma série de erros de tradução antes de pegar a minha comida.
Conseguir garrafas de água também era um desafio. Em épocas normais, uma empresa entregava os galões no meu andar. Agora, eu tinha que carregá-los sozinha, arriscando machucar o meu ombro, o qual eu tinha acabado de recuperar de uma lesão. Eu estava começando a sentir que a única vantagem de terminar a quarentena era poder jogar fora meu próprio lixo.
Na minha escola, ainda estamos dando aulas virtuais. Alguns restaurantes reabriram para o serviço completo após receberem liberação do governo local. Agora, o Mammamia avalia cuidadosamente seus fornecedores, mede a temperatura dos funcionários e pede a eles que usem máscaras e luvas durante o trabalho.
Como cliente, preciso usar uma máscara quando não estou comendo. As mesas seguem as regras de distanciamento social e foram ajustadas para pequenos grupos de pessoas. Os shoppings estão abertos, mas fecham às 20h, em vez das 22h ou 23h habituais, para dar aos funcionários tempo para limpar e higienizar o local.
Quando eu pensei que o “normal” estava começando a aparecer, no dia 28 de março, a China fechou suas fronteiras para a maioria dos estrangeiros com o objetivo de evitar que o surto da COVID-19 retornasse através de moradores que voltavam ao país.
Ao mesmo tempo em que fico feliz por poder retornar ao campus talvez na próxima semana, fico triste por saber que esses desafios chegaram aos EUA. Rezo pela minha mãe na Flórida, uma pessoa muito sociável que precisa lidar com o isolamento e, aos 82 anos, faz parte do grupo de risco.
Lamento pelas mais de 3,8 mil famílias que precisam planejar funerais neste momento e pelos 185 mil pacientes que lutam para sobreviver. E o que dizer dos meus amigos que trabalham na área da saúde? Eles estão ficando sem equipamentos de proteção individual (EPI) e têm dificuldades em conseguir suprimentos médicos.
Como será o “normal” quando ele chegar? A resposta simples é que será como uma montanha-russa e uma roda-gigante: o progresso será volátil e lento.
Primeiro, teremos que compensar o tempo perdido em nossos trabalhos. Mesmo que muitos de nós tenham sorte e possam trabalhar virtualmente, tivemos que improvisar. Minhas aulas semanais com os alunos foram reduzidas à metade, e tive que correr com vários conteúdos para cobrir tudo o que cairá no vestibular. Minha experiência é um microcosmo do que está acontecendo em outras áreas. A recuperação levará tempo.
Ainda assim, vejo oportunidades. Agora que aprendemos que podemos rapidamente mudar para o trabalho virtual, aqueles com problemas de mobilidade ou famílias que querem um equilíbrio entre vida pessoal e trabalho podem considerar o modelo de home office (trabalho remoto). A telemedicina pode simplificar os tratamentos médicos quando a normalidade voltar. Com sorte, as empresas vão perceber agora a importância de fornecer licença médica e plano de saúde a todos os funcionários.
Outra lição importante que aprendemos com essa pandemia é que ninguém é uma ilha. Essa experiência aperfeiçoou nossa resiliência e perspicácia. A crise prova que, sob circunstância difíceis, ainda tentamos dar o nosso melhor. Como muitos disseram aqui na China: “Jiayou”, que significa “vamos seguir em frente”.